Edição 451 | 25 Agosto 2014

Vargas e o ideal de conciliação política

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Luciano Gallas

Dossiê Vargas: “Durante seu governo foram definidos um modo de se fazer política e um determinado modelo de Estado e de desenvolvimento dos quais se pode observar traços ainda hoje no Brasil”, diz Luciano Aronne de Abreu

De acordo com o historiador Luciano Aronne de Abreu, Getúlio Vargas implementou um relevante processo de ajustes nas estruturas política e administrativa do país, definindo um modelo de desenvolvimento que teve expressivas contribuições para a construção do Brasil contemporâneo. “O chamado ‘Estado de Compromisso’ que se formou em torno de Vargas nos anos 1930 ainda se mantém em pauta como uma espécie de ideal político brasileiro, independentemente de ideologias ou partidos políticos, em nome do que hoje se chama de governabilidade. Ao longo desse tempo, evidentemente, de acordo com as condições próprias de cada contexto, certos grupos ou classes sociais podem ter sido incluídos ou excluídos nesse pacto, ou pode ter havido ajustes em seus espaços de poder e correlações de forças. Mas a lógica de se estabelecer uma espécie de ‘Estado de Compromisso’, o mais amplo possível, se mantém”, aponta Abreu nesta entrevista, concedida por e-mail à IHU On-Line.

Entretanto, para além deste modo de se fazer política e de seu ideal de conciliação entre as diferentes forças político-partidárias e ideológicas, Vargas deixou sua marca também na consolidação de uma estrutura sindical, ainda que tutelada pelo Estado, e na sistematização legal de importantes direitos sociais. “O exemplo mais conhecido e inúmeras vezes citado como a principal herança da Era Vargas seria sua legislação social e sindical, cujas bases se mantêm ainda hoje como referência nas discussões sobre direitos sociais e trabalhistas no Brasil”, enfatiza o historiador, para quem, desde a Era Vargas, o Estado brasileiro vem reafirmando seu papel de regulador, indutor e promotor do desenvolvimento nacional. “Recentemente, as medidas de estímulo ao setor produtivo e ao consumo adotadas pelo governo federal são mais um exemplo do papel central que o Estado continua a desempenhar no Brasil. Talvez se possa dizer que a grande concentração de poderes no Executivo e sua prevalência sobre o Legislativo seja também herança do modelo de poder construído a partir dos anos 30, assim como a imposição de limites mais estreitos de autonomia aos governos estaduais”, declara.

Luciano Aronne de Abreu possui mestrado em História do Brasil pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul - PUCRS e doutorado em Estudos Históricos Latino-Americanos pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos – Unisinos. Atualmente é professor do Programa de Pós-graduação em História da PUCRS. Direciona a ênfase de seus estudos para a História do Brasil República, atuando principalmente nos temas História do Rio Grande do Sul, Era Vargas e Autoritarismo. É autor dos livros Getúlio Vargas: a construção do mito (Porto Alegre: Editora da PUCRS, 1997) e Um Olhar Regional sobre o Estado Novo (Porto Alegre: Editora da PUCRS, 2007). É também co-organizador das obras História e Ideologia: perspectivas e debates (Passo Fundo: Editora da Universidade de Passo Fundo, 2009) e Estado e Desenvolvimento: política e relações internacionais no Brasil Contemporâneo (Porto Alegre: Editora Asterisco, 2010), dentre outros trabalhos. Ele participou do IHU ideias no último dia 21-08 com a palestra Getúlio Vargas 60 anos depois: influências à economia, à política e ao trabalho no Brasil.

Confira a entrevista.

 

IHU On-Line - Por que Getúlio Vargas é tão importante para entendermos o Brasil da atualidade?

Luciano Aronne de Abreu – Tal questão é bastante ampla e complexa, com respostas certamente muito variadas entre os historiadores e demais especialistas no assunto. No entanto, arrisco dizer que durante seu governo foram definidos um modo de se fazer política e um determinado modelo de Estado e de desenvolvimento dos quais se pode observar traços ainda hoje no Brasil. No primeiro caso, pode-se dizer que o chamado “Estado de Compromisso” que se formou em torno de Vargas nos anos 1930 ainda se mantém em pauta como uma espécie de ideal político brasileiro, independentemente de ideologias ou partidos políticos, em nome do que hoje se chama de governabilidade. Ao longo desse tempo, evidentemente, de acordo com as condições próprias de cada contexto, certos grupos ou classes sociais podem ter sido incluídos ou excluídos nesse pacto, ou pode ter havido ajustes em seus espaços de poder e correlações de forças. Mas a lógica de se estabelecer uma espécie de “Estado de Compromisso”, o mais amplo possível, se mantém.

No segundo caso, dos anos Vargas para cá, pode-se dizer que o Estado brasileiro tem reafirmado de diferentes maneiras seu papel central como regulador, indutor ou mesmo promotor do desenvolvimento nacional. Mesmo durante as décadas de 1990 e 2000, quando as privatizações e a redução do tamanho do Estado e de sua intervenção na economia se colocaram na ordem do dia dos debates políticos, pode-se dizer que este manteve um importante papel de regulador e indutor de investimentos e do desenvolvimento do país, ainda que com uma maior participação e influência da iniciativa privada. Recentemente, as medidas de estímulo ao setor produtivo e ao consumo adotadas pelo governo federal são mais um exemplo do papel central que o Estado continua a desempenhar no Brasil. Talvez se possa dizer que a grande concentração de poderes no Executivo e sua prevalência sobre o Legislativo seja também herança do modelo de poder construído a partir dos anos 30, assim como a imposição de limites mais estreitos de autonomia aos governos estaduais. Por fim, o exemplo mais conhecido e inúmeras vezes citado como a principal herança da Era Vargas seria sua legislação social e sindical, cujas bases se mantêm ainda hoje como referência nas discussões sobre direitos sociais e trabalhistas no Brasil.

 

IHU On-Line - É correto afirmar que o modelo de desenvolvimento econômico implementado por Vargas constituiu-se em eixo central do projeto econômico colocado em marcha pela ditadura militar após o golpe de 1964?

Luciano Aronne de Abreu – O modelo de desenvolvimento econômico adotado por Vargas caracterizou-se pela substituição de importações, sobretudo nos setores de infraestrutura e indústrias de base, marcado por um forte dirigismo estatal, mas sem excluir o investimento de capitais privados nacionais ou internacionais, como ilustram os clássicos exemplos da Companhia Siderúrgica Nacional (1943) e Petrobras (1953). Esses mesmos princípios também estiveram presentes no modelo dos militares, porém num outro contexto e numa etapa de desenvolvimento muito mais complexa, seja pelo tipo de indústrias existentes, por exemplo, seja pelo novo tipo de relações comerciais e de investimentos internacionais que então se colocavam. É claro que havia importantes relações entre esses modelos e que durante os anos Vargas foram construídas as bases para a expansão e diversificação da economia nacional nas décadas seguintes, mas não acho que se possa dizer que o modelo de desenvolvimento de Vargas se constituía exatamente no eixo central do projeto dos militares.

 

IHU On-Line - Em que medida este modelo segue em vigor ainda hoje?

Luciano Aronne de Abreu – Em sentido estrito, como sugeri na questão anterior, o modelo de desenvolvimento de Vargas não se manteve em vigor no período dos militares, assim como o modelo destes também não se mantém nos dias de hoje. Pode-se dizer que a grave crise econômica que o Brasil viveu desde os anos 1980 até meados da década de 1990 se deveu precisamente ao esgotamento daquele modelo substitutivo de importações, exigindo dos governos seguintes, de Fernando Collor de Mello a Dilma Rousseff (e provavelmente de seus sucessores), a adoção de importantes ajustes fiscais e tributários, privatização de estatais e uma maior abertura da economia nacional ao capital internacional, por exemplo. De todo modo, pode-se dizer que o Estado brasileiro se mantém ainda hoje como o principal agente regulador, indutor ou mesmo promotor do desenvolvimento nacional. Ainda que o setor privado nacional tenha se modernizado e fortalecido muito nas últimas décadas, associado ou não a capitais internacionais, políticas públicas de incentivo à produção ou de crédito ao consumo continuam sendo essenciais para o crescimento do país. Além disso, empresas estatais como a Petrobras, por exemplo, seguem tendo um peso determinante no conjunto da economia nacional e no comércio internacional do Brasil. Talvez esse forte “estatismo” da economia e do desenvolvimento brasileiro seja uma das mais fortes heranças daqueles modelos anteriores.

 

IHU On-Line – Que comparação é possível realizar entre o período autoritário do Estado Novo e a ditadura imposta ao país pelo golpe civil-militar de 64?

Luciano Aronne de Abreu – Essa comparação é recorrente nos estudos de diferentes historiadores e demais estudiosos da temática. São comuns a estas ditaduras, por exemplo, justificar a necessidade de um governo forte em nome da ordem e da segurança nacional, como forma de enfrentar uma situação de crise econômica, de corrupção e descontrole da administração pública, bem como combater supostos movimentos subversivos e ameaças comunistas. Por outro lado, devem-se observar também algumas importantes diferenças entre elas. No caso da ditadura Vargas, o próprio governo e seus intelectuais admitiam seu caráter autoritário, definido como o tipo de regime mais adequado à realidade nacional, em detrimento do liberalismo vigente no período anterior. Nesse sentido, foram fechados todos os partidos políticos e órgãos legislativos, outorgada uma nova Constituição ao país e nomeados Interventores para os governos estaduais. Já os militares, ao contrário, procuraram negar o caráter ditatorial dos seus governos e manter no país uma aparência institucional democrática, instituindo um sistema bipartidário e preservando o funcionamento dos órgãos legislativos, ainda que com poderes limitados, realizando eleições para os governos estaduais, ainda que indiretas, e mantendo a rotatividade da Presidência da República, ainda que sempre sob o controle do Exército.

 

IHU On-Line - Passados mais de 70 anos, a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) permanece ainda a principal base legal brasileira no que se refere à garantia de direitos sociais?

Luciano Aronne de Abreu – A CLT foi um instrumento de regulação e sistematização dos direitos sociais no Brasil. Alguns direitos e garantias sociais que vinham sendo reivindicados pelos trabalhadores desde princípios dos anos 1920 foram regulados e sistematizados pela CLT, a partir de então sob a garantia e chancela do Estado e não mais com base apenas em acordos de sindicatos ou associações de trabalhadores e empresários. De todo modo, pode-se dizer que a CLT não apenas continua sendo a principal garantia dos direitos sociais no Brasil, mas se constitui mesmo numa espécie de sinônimo destes. Ainda que a CLT tenha sofrido vários ajustes de 1943 até hoje, o conjunto básico de direitos dos trabalhadores se manteve ao longo do tempo, como salário mínimo, férias, descanso semanal remunerado e jornada de trabalho, por exemplo. As recentes discussões sobre a flexibilização das leis sociais são sempre polêmicas e enfrentam muitas resistências de sindicatos, associações de trabalhadores e de certos partidos políticos, o que indicaria o papel central que a CLT ainda mantém na definição e regulação das relações trabalhistas no Brasil. 

 

IHU On-Line - Em que pese o legado deixado por Vargas, não vivenciamos atualmente a necessidade de uma ampla reformulação do Estado brasileiro, dadas as atuais necessidades e exigências políticas, econômicas e sociais?

Luciano Aronne de Abreu – Acho que sim, as tão faladas e sempre adiadas reformas política, fiscal e tributária, por exemplo, são essenciais para o desenvolvimento do Brasil, além, é claro, de fortes investimentos em infraestrutura e na qualificação da educação. De meados dos anos 1990 para cá, o Brasil passou por um amplo processo de modernização produtiva e de abertura de sua economia, tendo havido também importantes ajustes políticos e administrativos em diversos setores. No entanto, não fomos capazes de produzir reformas mais profundas nesses campos, ainda muito tradicionais no país. 

 

IHU On-Line - Que diálogo é possível construir entre as figuras do estadista, do ditador e do mito em Getúlio Vargas?

Luciano Aronne de Abreu – Todas essas imagens se referem a um mesmo personagem, porém visto por diferentes ângulos e com relação a diferentes questões, pode-se dizer assim. O Vargas estadista, por exemplo, não está apenas ligado ao ditador por sua forma de atuação política, mas foi mesmo forjado por ela. De outro lado, o chamado mito Vargas tem oculta sua face ditatorial e iluminada a de estadista, como sendo o grande construtor da unidade nacional e defensor dos verdadeiros interesses coletivos da nação, em geral, e dos trabalhadores, em particular. No caso do mito, porém, ainda que sua construção tenha sido muito trabalhada pela própria propaganda do regime e pelos intelectuais a ele associados, deve-se observar que sua consolidação se deu somente após o suicídio de Vargas, a partir das diversas manifestações populares então ocorridas no Brasil e da exaltação de suas heranças e liderança pelos próceres do trabalhismo.

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