Edição 451 | 25 Agosto 2014

“Não acredito em biografias definitivas”

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Ricardo Machado e Andriolli Costa

Dossiê Vargas: Lira Neto, autor de uma trilogia sobre a vida de Getúlio Vargas, ressalta que ainda há muito a se explorar sobre aquele a quem considera a maior figura pública de toda a história brasileira

Estudos, leituras, cartas, revisão de documentos, checagem e a vida de 72 anos de Getúlio Vargas, uma das figuras mais controversas e ilustres do Brasil do século XX, resumida em uma biografia, cujo último volume é lançado no momento em que seu suicídio de completa 60 anos. A epopeia getulista divide em três tomos os importantes períodos vividos pelo político brasileiro, acompanhando Vargas dos tempos do Rio Grande do Sul à entrada na cena política da Capital da República, passando pela ditadura do Estado Novo e seu retorno à Presidência. Encerra-se, como não podia deixar de ser, com o suicídio — e sua entrada definitiva para a história.  

Se após a extensão deste trabalho é possível chegar a uma síntese, para o jornalista, esta é de que Vargas não deve ser observado à visada única de suas facetas. “Não há ‘três Getúlios’: um revolucionário, um ditador e um democrata nacionalista, por assim dizer. Ele foi um só, com todas suas ambivalências e contradições.” 

Na quarta-capa do primeiro livro da trilogia Vargas, o historiador Boris Fausto afirma que Getúlio é “para o bem ou para o mal a maior figura pública do Brasil no século XX”. Ao fim de seu trabalho, Neto chega a uma constatação mais ousada. Para ele, por sua influência em tantas instâncias da sociedade brasileira, Vargas seria “a maior figura pública de toda a história brasileira” — para o bem e para o mal. Nesta entrevista, concedida por e-mail à IHU On-Line, Lira Neto trata dos desafios em retratar seu biografado, relaciona as aproximações e distanciamentos de nosso atual cenário político como da época getulista e ressalta que ainda há muito material a ser explorado sobre o assunto.

Lira Neto cursou Jornalismo na Universidade Federal do Ceará - UFC. Foi ombudsman de O Povo, o segundo jornal a implementar o cargo em uma redação brasileira além da Folha de S. Paulo. Sua primeira biografia foi O poder e a Peste (Fortaleza: Ed. Fundação Demócrito Rocha, 1999), que tratava da vida do médico Rodolfo Teófilo e seu combate a uma epidemia de varíola que matou um quinto de toda a população de Fortaleza no fim do século XIX. O jornalista já revisitou a vida de diversas outras personalidades, como o Padre Cícero, sobre a cantora Maysa e sobre o primeiro presidente do regime militar do Brasil, Humberto Castello Branco. 

Seu mais recente projeto é a trilogia sobre Getúlio Vargas, cujo terceiro volume, Getúlio (1945-1954): Da volta pela consagração popular ao suicídio (São Paulo: Companhia das Letras, 2014), acaba de ser lançado. Os dois primeiros volumes são Getúlio (1930-1945): Do governo provisório à ditadura do Estado Novo (2013) e Getúlio (1882-1930): Dos anos de formação à conquista do poder (2012).

Confira a entrevista.

 

IHU On-Line - Passados 60 anos da morte de Getúlio Vargas, o que ainda há para ser descoberto de uma das figuras mais marcantes do Brasil no século XX?

Lira Neto - Por princípio, não acredito em biografias definitivas. Nesse sentido, penso que sempre haverá espaço para novas pesquisas e enfoques sobre qualquer personagem histórico, quem quer que seja ele. Nenhuma vida, acredito, cabe inteiramente em um livro. E Getúlio, de modo específico, é um personagem inesgotável. Seu acervo compreende centenas de milhares de documentos e constitui um universo de possibilidades ainda a ser explorado. Busquei trabalhar o maior número possível de fontes, para oferecer ao leitor a visão mais completa e multifacetada do biografado. Mas, claro, não esgotei o assunto. Há muito a ser escrito, analisado e interpretado por outros pesquisadores que se disponham a mergulhar no universo “getuliano".

 

IHU On-Line - Por que não podemos compreender o Brasil do século XXI sem compreendermos Getúlio Vargas?

Lira Neto - Em primeiro lugar, Getúlio foi o chefe de governo que mais tempo passou à frente do poder no Brasil. Foram, ao todo, quase duas décadas no comando do Executivo. Só isso seria suficiente para justificar sua importância para os rumos de nossa história. Porém, além disso, sua trajetória política deixou marcas profundas na vida política, social, econômica e cultural do país. Hoje, 60 anos após sua morte, ainda discutimos sobre o maior ou menor tamanho do Estado, a necessidade de flexibilização ou não das leis trabalhistas, as contingências e limitações do sistema representativo. Assim, mais de meio século depois, Getúlio e seu legado continuam a dividir opiniões e a despertar sentimentos extremados, de devoção e repulsa.  

 

IHU On-Line - O último volume de sua trilogia biográfica sobre Getúlio Vargas conta a história dos últimos nove anos de vida do ex-presidente. O que há de realmente novo neste livro que será lançado? Que aspectos desta figura ainda são desconhecidos?

Lira Neto - Para este terceiro e último volume, lancei mão de dois expressivos conjuntos de fontes, até hoje inexplicavelmente pouco trabalhadas pela historiografia. O primeiro deles é a coleção de cartas trocadas entre Getúlio e a filha, Alzira Vargas , no período compreendido entre 1945, quando da sua derrubada pelos militares, e 1950, data da eleição que o conduziu de volta ao poder, por meio de uma votação popular consagradora. São mais de 1.600 páginas de uma correspondência reveladora, que explicita as articulações políticas para o retorno gradativo à vida pública, bem como desnuda aspectos do cotidiano e do pensamento do biografado durante o chamado “retiro” em São Borja. O segundo conjunto de fonte engloba os papéis avulsos deixados por Alzira, que objetivava lançar um segundo volume de memória, mas que permaneceu até aqui inédito.

 

IHU On-Line - Ao levarmos em conta a atual conjuntura nacional, como o projeto de desenvolvimentismo nacional dialoga com o projeto getulista iniciado em 1930?

Lira Neto - É sempre temerário fazer analogias entre épocas históricas distintas. Mas, sem dúvida, ainda que possamos avançar o sinal e cairmos em certo anacronismo, é possível tentar estabelecer certas simetrias entre os dois períodos. Getúlio, como sabemos, era defensor de um projeto nacional-desenvolvimentista, com grande ênfase na ação do Estado, alternativa combatida pelo chamado neoliberalismo e pelos defensores da “mão invisível” do mercado. Os governos de Lula  e Dilma  buscaram recuperar, em certa medida, o intervencionismo estatal como estratégia para tentar superar os abismos sociais em um país ainda tão desigual e excludente. Curioso notar que, na sua origem de líder metalúrgico, Lula era um antigetulista.  Repudiava a ideia do sindicalismo tutelado, típico do varguismo. Mais tarde, buscou pontos de contato e identificações com o getulismo, buscando inclusive mimetizar, quando do anúncio da exploração do pré-sal, a mão tisnada de petróleo, uma imagem histórica de Getúlio à época da fundação da Petrobras.

 

IHU On-Line - Ao dividir a biografia de Getúlio Vargas em três momentos — dos anos de formação à conquista do poder; do governo provisório à ditadura do Estado Novo; e os últimos nove anos —, como podemos entender esses “três Getúlios”? No que exatamente eles se diferenciam entre si?

Lira Neto - A opção por uma divisão cronológica obedeceu a questões metodológicas e às contingências editoriais. Na verdade, não há “três Getúlios”: um revolucionário, um ditador e um democrata nacionalista, por assim dizer. Ele foi um só, com todas suas ambivalências e contradições. A cientista política Maria Celina D’Araújo  é uma das maiores autoridades na chamada Era Vargas e escreveu certa vez um texto primoroso, antológico, para demonstrar que Getúlio foi afetado e envolvido pelas mudanças da sociedade brasileira que ele próprio ajudou a operar. O ditador do Estado Novo, por exemplo, contribuiu de maneira significativa para a emergência de uma sociedade de massas, fenômeno que será o motor e o sustentáculo de sua volta ao poder.

 

IHU On-Line - Que semelhanças e diferenças há entre o populismo inaugurado a partir da década de 1930 no princípio da Era Vargas e o populismo do século XXI?

Lira Neto - Mais uma vez, considero arriscado e reducionista estabelecer relações mecânicas e automáticas entre períodos e personagens tão diversos e tão separados no tempo. Além do mais, a própria menção ao termo “populismo” com acento pejorativo embute, costumeiramente, uma armadilha conceitual e um viés ideológico. Getúlio construiu as bases do Estado moderno no Brasil, por meio da profissionalização da administração pública, assim como foi o responsável pela coalizão nacional entre burguesia industrial, trabalhadores urbanos e setores oligárquicos, o que a rigor permitiu a própria construção do capitalismo no Brasil.

 

IHU On-Line - Como explicar o fato de que mesmo sendo um ditador, durante o Estado Novo, Getúlio Vargas tenha se tornado uma figura até hoje admirada por milhares de pessoas?

Lira Neto - Além da ação da poderosa máquina de propaganda do Estado Novo, que contribuiu de modo significativo para o culto à personalidade de Getúlio Vargas, não podemos esquecer o inegável legado da legislação trabalhista e os frutos efetivos da política desenvolvimentista. Ao regulamentar a relação entre capital e trabalho em um país historicamente recém-saído da escravidão, Getúlio conquistou a adesão e a simpatia de largas faixas do operariado e das classes médias urbanas. Ao fundar a Petrobras, o BNDES, o Banco do Nordeste e outras tantas instituições da mesma envergadura, conduziu um país agrário, semifeudal, ao rumo da industrialização. Some-se tudo isso ao final trágico, à autoimolação que ajudou a consolidá-lo como mártir, e temos como compreender a permanência de sua figura histórica e de sua mística no imaginário coletivo.

 

IHU On-Line - Que atravessamentos são possíveis de serem realizados entre a repressão militar que garantiu um projeto de governo durante o Estado Novo e a atuação da Força Nacional para viabilizar os megaprojetos atuais do Estado, vide Belo Monte, remoções para obras da Copa do Mundo?

Lira Neto - O Estado Novo foi um regime policialesco, com perseguição implacável a adversários políticos, tortura institucionalizada, Legislativo fechado, imprensa sob censura, Judiciário  manietado. Por mais que queiramos, por mais preocupantes que sejam as denúncias de hoje sobre a criminalização dos movimentos sociais, não há como comparar uma coisa com a outra. 

 

IHU On-Line - Que Getúlio Vargas é esse que emerge das interações entre o homem da vida pública e o homem na vida privada?

Lira Neto - Penso que o Getúlio que emerge nos três volumes da biografia é exatamente este indivíduo contraditório, complexo, controverso, impossível de ser definido em uma única frase ou avaliado em apenas uma de suas muitas dimensões. Como bem escreveu o professor Boris Fausto  na quarta capa do primeiro volume da biografia, Getúlio Vargas é “para o bem ou para o mal a maior figura pública do Brasil no século XX”. Eu ousaria dizer que, mais do que isso, pelas marcas que deixou na política, na sociedade, na economia e na própria cultura nacional, ele é a maior figura pública de toda a história brasileira – para o bem e para o mal.

 

Leia mais...

- Getúlio Vargas: “Estou resolvido ao sacrifício, como um protesto, marcando a consciência dos traidores”. 59 anos depois. Entrevista especial Lira Neto de 24-08-2013;

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