Edição 451 | 25 Agosto 2014

Os direitos humanos e trabalhistas soterrados pela informalidade da extração mineral

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Ricardo Machado

Para o advogado Guilherme Zagallo, o principal desafio às atividades mineiras diz respeito à superação dos trabalhadores sem direitos trabalhistas

Um levantamento da Organização Internacional do Trabalho – OIT, realizado em 2013, com foco na América Latina e Caribe, apontou que 50,9% dos trabalhadores em mineração e em pedreiras estão na informalidade. “Em nosso país isso não é diferente, a grande mineração, ou seja, aquela que se destina à exportação, possui um alto nível de formalização, mas a maioria dos trabalhadores faz parte das pequenas mineradoras, de extração de areia, garimpos ilegais, etc. Do aspecto dos direitos trabalhistas, o grande ponto é superar a informalidade”, destaca o advogado Guilherme Zagallo, em entrevista por telefone à IHU On-Line.

Diante da complexidade de tal contexto, Guilherme Zagallo aponta que a única alternativa é acabar com a ilegalidade. “A mineração ilegal tem que ser extinta. Para isso é preciso uma fiscalização maior da atividade mineral. Isso porque dentro da normalidade temos regras, licenças ambientais, planos de concessão, direitos de mineração, e isso facilita a própria atuação do Estado no controle”, argumenta, embora reconheça que o objetivo está longe de ser alcançado. O entrevistado considera que os avanços na legislação referente aos processos de mineração ainda são muito tímidos e que a legislação em pauta para votação no Congresso tem pouco a ajudar nas questões de fundo. “A mineração no Brasil precisa ser revista de forma mais ampla. O que está contido na proposta do governo é minimalista e não enfrenta os problemas, ainda que haja uma ou outra melhoria, e não assegura que a atividade minerária vai contribuir com o desenvolvimento do país”, critica.

O projeto de expansão da mineração no Brasil é muito arriscado na avaliação de Guilherme Zagallo e os impactos econômicos no Produto Interno Bruto – PIB são pequenos. “Atualmente somos um grande país minerador, embora essa atividade tenha pouco peso no PIB brasileiro. Em 2011, tínhamos 4,1% do PIB oriundos da mineração. Do ponto de vista econômico, o impacto da mineração é pequeno. No entanto, manejamos mais de 1,5 bilhão de minério bruto, exportamos mais de 300 milhões de toneladas de minerais de metálicos por ano, temos um consumo muito grande de minerais não metálicos no mercado interno, sobretudo para a construção civil. Triplicar todos esses processos sem que tenhamos objetivamente uma maior formalização do setor e uma estrutura de fiscalização mais densa é um risco”, complementa.

Guilherme Zagallo é advogado da Campanha Justiça nos Trilhos e relator nacional de direitos humanos da Rede de Direitos Humanos Plataforma Dhesca Brasil.

Confira a entrevista.

 

IHU On-Line – Quais são os grandes desafios correspondentes aos direitos trabalhistas no que diz respeito às atividades de mineração no Brasil?

Guilherme Zagallo – O principal desafio é superar a informalidade. A organização Internacional do Trabalho – OIT produziu, em 2013, um estudo com foco na América Latina e Caribe, mas isso vale em grande parte para o Brasil, indicando que 50,9% dos trabalhadores em mineração e em pedreiras trabalham na informalidade. Em nosso país isso não é diferente, a grande mineração, ou seja, aquela que se destina à exportação, possui um alto nível de formalização, mas a maioria dos trabalhadores faz parte das pequenas mineradoras, de extração de areia, garimpos ilegais, etc. Do aspecto dos direitos trabalhistas, o grande ponto é superar a informalidade. 

Há vários fatores que influenciam nesta prática informal. A atividade mineral é muito pouco fiscalizada no Brasil, o número de agentes do atual Departamento Nacional de Produção Mineral é muito pequeno. A fiscalização do Ministério do Trabalho, apesar de ter um corpo de servidores bem maior, não dá conta, pois as funções desse Ministério são voltadas para todas as atividades de trabalho brasileiras. Seja por ausência da fiscalização macro das atividades de mineração, seja a fiscalização específica do Ministério do Trabalho, isso faz com que o setor se transforme em um grande descumpridor tanto das leis trabalhistas quanto das especificidades legais da atividade minerária.

 

IHU On-Line – Atualmente, quais são as regiões do país mais impactadas pelos projetos de mineração? Que localidades apresentam os quadros mais graves de negligência aos direitos trabalhistas e humanos?

Guilherme Zagallo – Temos dois tipos de impactos e ambos são bastante intensos. O primeiro, da grande mineração, situado no Sul do Pará, tem como principal foco a produção de ferro e níquel, na região do Carajás, o que gerou e gera remoções. A Vale, por exemplo, está fazendo uma nova ferrovia e construindo a maior mina a céu aberto do mundo, isso tudo com fortes impactos sociais e ambientais. Além da grande mineração, a Amazônia tem as regiões do garimpo, sobretudo do ouro, com fortes implicações ambientais, entre elas a utilização indiscriminada de mercúrio, que faz com que a substância ingresse na cadeia alimentar. O problema é que o mercúrio é persistente, pois permanece muito tempo após o encerramento da mineração, contaminando tais regiões. Ainda podemos destacar a exploração de urânio no interior da Bahia, no município de Caetité,  já no âmbito da grande mineração, cuja preocupação é com a contaminação de recursos hídricos. Então quanto aos pontos mais críticos de mineração industrial, eu indicaria o Sul do Pará e o interior da Bahia; já quanto à mineração mais difusa e informal, destaco os garimpos da Amazônia. 

 

IHU On-Line – Quais são os possíveis impactos das atividades relacionadas à extração de ouro pela Belo Sun?

Guilherme Zagallo – Ainda há uma resistência muito forte em relação à implantação da Belo Sun,  e não foi concedida a licença. A preocupação do Ministério Público e dos movimentos sociais que atuam em Altamira, Pará, é que a construção de Belo Monte  resultaria na duplicação da população do município, passando de 100 mil para 200 mil habitantes, sem que a cidade tenha uma infraestrutura mais adequada para receber esta população. Várias promessas e obrigações, contidas como condicionantes nas licenças ambientais concedidas, vêm sendo descumpridas. Neste contexto de implantação da maior obra em curso no país, Belo Monte, com investimentos que superam os R$ 30 bilhões, o projeto de mineração de ouro em uma mesma região agrava os impactos sociais, sem contar que está próximo a duas áreas indígenas importantes. Por isso, há uma grande preocupação de que a situação piore ainda mais. Essa obra, inclusive, tem uma relação com a mineração, e uma das justificativas para construção de empreendimentos hidrelétricos, tais como a própria Belo Monte e as hidrelétricas do Rio Madeira, é justamente o crescimento das atividades mineiras puxadas pelo aumento da demanda da China, que elevou muito o preço das commodities. Belo Monte, embora não tenha sido construída especificamente para atender um projeto de exploração mineral, acaba tendo como um dos principais fatores de produção de energia o atendimento a esse crescimento da produção planejada para os próximos anos. 

 

IHU On-Line – Nesse sentido, que impactos em termos de migração de trabalhadores são gerados tanto na extração de minério quanto na execução de grandes obras?

Guilherme Zagallo – De modo geral, a construção dessas áreas demanda um volume de trabalhadores muito maior que aqueles a serem utilizados na operação dos empreendimentos. Então ocorre uma pressão migratória muito grande para as comunidades com infraestrutura precária, e isso cria, durante alguns anos, uma pressão extrema por infraestrutura de serviços básicos — como educação, saúde, etc. Há, em geral, uma migração predominantemente masculina, que causa outros problemas, como aumento da prostituição, violência sexual, que já foi registrado em vários episódios que não estão restritos à mineração, mas também à construção de hidrelétricas na Amazônia. Uma parte desta população não retorna ao local de origem após a construção, então temos um crescimento sem que no futuro a população tenha um aproveitamento na fase de operação dos empreendimentos. Ou seja, pós-obra temos uma pressão social maior do que tínhamos antes em função desta migração. Isso é um problema que não foi resolvido em nenhum dos empreendimentos, ainda que haja uma população de trabalhadores que migram de obra em obra, os chamados “barrageiros”. O próprio governo reconhece isso e defende, para próximos empreendimentos — talvez para minimizar a reação dos movimentos sociais e das comunidades —, a construção de obras cuja jornada de trabalho se assemelhe a das plataformas de petróleo, sem a construção de cidades, tentando diminuir a reação das populações locais onde os empreendimentos se estabelecem.

 

IHU On-Line – Do ponto de vista ambiental, que impactos decorrentes do crescimento demográfico surgem em regiões com pouca ou nenhuma infraestrutura?

Guilherme Zagallo – Começa que a nossa infraestrutura de saneamento já é precária nesses locais, desde o fornecimento de água até os casos de esgoto a céu aberto. Há pessoas que migram não para trabalhar nos empreendimentos, mas na expectativa de obter emprego ou para a prestação de serviços informais. O que acontece nessas cidades é um crescimento desordenado de suas periferias, sem que o poder público tenha recursos para adequar sua infraestrutura. É comum que os empreendimentos minerais voltados à exportação sejam desonerados pela Lei Kandir , de 1997; logo, prefeituras e governos da federação não dispõem de recursos após a operação para fazer frente a esses problemas. É como receber um vizinho incômodo, que como prefeito ou governador precisa prover as necessidades daquela população sem dispor dos recursos para fazer frente aos investimentos. Esse é um problema não resolvido nem na legislação atual, nem na proposta que está no Congresso atualmente, o que pouco contribui para a sua solução.

 

IHU On-Line – Há algum procedimento de fiscalização das condições de trabalho nas localidades de extração de minério? Em termos legais, de que forma a Organização Internacional do Trabalho - OIT pode tomar medidas de proteção aos trabalhadores, ainda mais considerando que muitas das mineradoras são multinacionais?

Guilherme Zagallo – Temos corpos de fiscalização da atividade mineral em si, da mina que está operando, cuja atividade fiscalizadora é responsabilidade do Departamento Nacional de Produção Mineral, em que o governo propõe a transformação desse órgão em uma agência. A experiência que temos com as agências reguladoras mostra que essa transformação não deve alterar o quadro atual, vide o que acontece, por exemplo, com as empresas de telecomunicação. Na área trabalhista precisaríamos ter um crescimento do corpo de fiscalização. Há alguns anos temos um grupo de combate ao trabalho escravo articulado com o Ministério do Trabalho e o Ministério Público do Trabalho – MPT, cujas atividades são voltadas aos empregos informais, mas isso tudo é muito pequeno para enfrentar a mineração, que é muito pulverizada no país. Precisaríamos de uma equipe muito grande.

A estrutura da OIT até admite a apresentação de queixas perante um comitê de peritos, mas ela é muito limitada para esse tipo de atividade. Creio que precisaríamos ter no Brasil uma melhor condição de fiscalização da atividade mineral, pois, ao melhorar as condições da atividade mineira, indiretamente melhoram as condições de trabalho. Penso que a OIT pode ser instrumento de combate, mas não teria estrutura, e não é esse o escopo nem o objetivo da entidade. O que precisamos é construir uma solução local.

 

IHU On-Line – Existe alguma certificação de responsabilidade ambiental relacionada à mineração?

Guilherme Zagallo – Ainda não existe. Há, sim, algumas iniciativas da indústria de mineração tentando construir princípios de livre adesão por parte das empresas. O fato é que esta é uma indústria que ainda carece de uma maior preocupação. De modo geral, o consumidor final não tem acesso aos minérios, pois são commodities processadas pela indústria e ainda não há processos mais amplos de práticas sustentáveis nesta cadeia. 

 

IHU On-Line – As licitações para extração de minério no Brasil, conforme a atual regulação e considerando o Novo Código de Mineração, em pauta no Congresso, tendem a beneficiar mais o Estado ou quem tem o direito de lavra? 

Guilherme Zagallo – O sistema atual é o chamado “regime de prioridade” — quem pede primeiro tem o direito de lavra e pode ficar quase que indefinidamente sem maiores compromissos. A proposta do governo do regime de concessão, um dos poucos pontos positivos na tímida mudança do texto legal, é um aperfeiçoamento da legislação que está para ser votada. A concessão seria colocada dentro do interesse do país, ou seja, a extração não fica condicionada ao interesse do minerador, outras complexidades entram em jogo, como a de o Estado avaliar se é um minério estratégico, se será necessário no futuro, etc. Hoje há muita especulação na mineração por parte de empresas que simplesmente solicitam o direito de lavra para tentar vender isso a outros investidores. O regime de licitações previstos no novo Código de Mineração é um avanço e visa beneficiar mais o Estado e o interesse nacional que o regime de prioridade. 

 

IHU On-Line – Considerando um cenário absolutamente complexo, de que ordem são os tensionamentos entre trabalhadores e indígenas em áreas as quais os índios requerem, legitimamente, a propriedade? 

Guilherme Zagallo – Há muita tensão. Primeiro porque a questão fundiária indígena não está resolvida e temos populações de índios que demandam reconhecimento do direito dos grupos que vivem nessas terras. Então já há um conflito pelo próprio espaço territorial demarcado, ou quando há a demarcação, há locais ocupados por populações que formam até cidades dentro de áreas indígenas sem titulação das terras. Ainda tem o problema do garimpo em áreas indígenas, inclusive com violência. Trata-se de uma área particularmente tensa da atividade minerária. O governo apresentou um projeto de lei que permite a regulamentação da mineração em áreas indígenas e, de modo geral, as populações indígenas têm medo de que tal projeto possa piorar a situação atual e intensificar os conflitos. Esse é um ponto que demanda uma especial atenção para os próximos anos. 

 

IHU On-Line - Diante deste conflito por sobrevivência (trabalhadores e indígenas) onde as vítimas estão em ambos os lados, como garantir os direitos humanos e responsabilizar os verdadeiros causadores do problema?

Guilherme Zagallo – É preciso acabar com a ilegalidade. A mineração ilegal tem de ser extinta. Para isso é preciso uma fiscalização maior da atividade mineral. Isso porque dentro da normalidade temos regras, licenças ambientais, planos de concessão, direitos de mineração, e isso facilita a própria atuação do Estado no controle. Então o grande desafio para a redução desses conflitos é a formalização do setor, não só no aspecto do trabalho, mas, também, da atividade mineira, que hoje está muito longe de acontecer.   

 

IHU On-Line – Levando em conta todas as complexidades que estão em jogo, mas que ocupam um espaço mínimo no debate público nacional e que discutimos anteriormente, o projeto de triplicar a mineração no Brasil até 2030 vale a pena? 

Guilherme Zagallo – Ele é muito arriscado. Atualmente somos um grande país minerador, embora essa atividade tenha pouco peso no Produto Interno Bruto brasileiro. Em 2011, tínhamos 4,1% do PIB oriundos da mineração. Do ponto de vista econômico, o impacto da mineração é pequeno. No entanto, manejamos mais de 1,5 bilhão de minério bruto, exportamos mais de 300 milhões de toneladas de minerais de metálicos por ano, temos um consumo muito grande de minerais não metálicos no mercado interno, sobretudo para a construção civil. Apesar de economicamente, em termos globais de produção de riqueza, não ser um segmento importante, do ponto de vista social é uma área que tem uma interação muito intensa com o resto da sociedade. Há uma pressão muito forte sobre a infraestrutura com transporte, água, crescimento de minerodutos, hidrovias voltadas ao transporte dessa produção. Triplicar todos esses processos sem que tenhamos objetivamente uma maior formalização do setor e uma estrutura de fiscalização mais densa é um risco. Quanto à questão dos tributos, temos basicamente incidindo sobre a mineração a CFEM , que é voltada aos municípios, aos Estados e à União. Porém, as cidades por onde passam as ferrovias ou onde ficam os portos não são contemplados com parte desta receita, isto é, eles têm o problema e a pressão por serviços, mas não possuem recursos para fazer frente às demandas. Afora esses aspectos, o Brasil tem uma das menores taxas de royalties comparativamente com outros países mineradores. A mineração no Brasil precisa ser revista de forma mais ampla. O que está contido na proposta do governo é minimalista e não enfrenta os problemas, ainda que haja uma ou outra melhoria, e não assegura que a atividade minerária vai contribuir com o desenvolvimento do país.

 

IHU On-Line – Como avalia o novo código de mineração?

Guilherme Zagallo – A grande preocupação que se tem agora é com a reformulação do código de lei que muda as regras da mineração. A proposta inicial do governo preocupava os movimentos sociais que vêm discutindo a implantação, e a emenda apresentada pelo relator piora ainda mais a situação. Se tivermos a aprovação da emenda e mesmo da proposta original, teremos um crescimento intenso da produção mineral sem as cautelas que deveríamos tomar ante os impactos dessa atividade.

A única contribuição da nova legislação é para a política econômica. Nem tanto para a geração de empregos, pouco no PIB, mas se torna importante para o governo na questão econômica. Daí a preocupação dos economistas com uma possível reprimarização da cultura, não só pelo aumento das exportações das commodities minerais e agrícolas, mas pelo fortalecimento de uma prática que não favorece o crescimento industrial nacional.

 

Leia mais...

- Os impactos da mineração. Vejam o exemplo maranhense. Entrevista com Guilherme Zagallo publicada no sítio do Instituto Humanitas Unisinos – IHU, nas Notícias do Dia, de 18-10-2013; 

- As condições de trabalho nos canteiros de obras das hidrelétricas. Entrevista com Guilherme Zagallo publicada no sítio do Instituto Humanitas Unisinos – IHU, nas Notícias do Dia, de 13-09-2011.

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