Edição 450 | 11 Agosto 2014

O historiador e as distinções do relato biográfico

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Andriolli Costa

Benito Bisso Schmidt ressalta as diferenças formais e de objetivo entre o trabalho biográfico realizado pelo profissional de História, que busca responder a perguntas de caráter histórico através da vida de um indivíduo

Basta ir a qualquer livraria para perceber a explosão de títulos que passaram a povoar a seção de biografias nos últimos anos. Atraentes ao mercado editorial, as publicações englobam os mais diversos períodos e personalidades, sendo que muitas vezes um mesmo personagem histórico acaba sendo alvo de mais de um autor — e das mais diversas áreas. O pesquisador Benito Bisso Schmidt aponta que existem biografias escritas por literatos, por jornalistas, por historiadores e mesmo por cineastas. No entanto, cada uma delas terá um enfoque diferenciado. 

No caso da História, o texto sempre “remete para fora”. Isto é, “não é autoexplicativo, e remete sempre para algo que está fora dele”, como é o caso das notas de pé de página, das referências bibliográficas, da explicitação de percursos metodológicos e demais cuidados inerentes à produção científica. A própria ideia de uma “biografia definitiva”, tão presente em outras áreas, inexiste na História. “O historiador sempre sabe que todo conhecimento é provisório e referente a um ponto de vista, não existem histórias definitivas.” Mais do que isso, a perspectiva não é a de “expor todos os fatos” da vida de uma pessoa, mas sim de utilizar as vivências para abordar historicamente um período e um espaço.

Em entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line, Schmidt destaca a importância do compromisso social, ético e cívico com as pessoas que atuam como fontes orais para a pesquisa em história, discute os impactos da censura prévia no trabalho biográfico e ressalta os limites entre ficção e verdade. Destaca ainda que a interdisciplinaridade permeia todo o campo de atuação do profissional em história. A diferença, assim como no caso das biografias, está no objetivo final.

Benito Bisso Schmidt é graduado em História (licenciatura e bacharelado) pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul - UFRGS, com mestrado em História pela mesma instituição e doutorado em História Social do Trabalho pela Universidade Estadual de Campinas – Unicamp. Atualmente, é professor do Programa de Pós-Graduação em História da UFRGS. Dirigiu, de 2008 a 2011, o Memorial da Justiça do Trabalho no Rio Grande do Sul vinculado ao Tribunal Regional do Trabalho da 4ª Região. Entre 2011 e 2013 foi presidente da Associação Nacional de História – ANPUH. Professor nas áreas de Teoria e Metodologia da História, é autor e organizador de O Biográfico: perspectivas interdisciplinares (Santa Cruz do Sul: EdUnisc, 2000), Em busca da terra da promissão: a história de dois líderes socialistas (Porto Alegre: Palmarinca, 2004) e Memórias e narrativas (auto)biográficas (Porto Alegre: EdUFRGS, 2009), entre outras.

Confira a entrevista.

 

IHU On-Line - Assim como diversas outras áreas, durante o século XIX a História foi marcada pela aproximação com a lógica científica e pelo afastamento da Literatura. Como estes conceitos se atualizam nos dias de hoje?  

Benito Bisso Schmidt - A História se constitui como um campo de conhecimento específico e disciplinar com uma pretensão científica no século XIX. Tal como a Medicina, a Química e qualquer outra ciência, ela possui sua historicidade. Isto é, ela modifica-se com o tempo e não é mais a mesma dos séculos anteriores. Ainda assim, penso que o horizonte científico é importante para o historiador e, a meu ver, deve continuar sendo sempre. A História é um tipo de narrativa, mas não é igual à narrativa literária, ela tem outros pressupostos.

O historiador, por exemplo, deve fazer um discurso mais demonstrativo que o discurso literário. Ele pode escrever para um público mais amplo sem abrir mão do fato de que deve demonstrar a todo o tempo de onde vêm as suas informações. Precisa fazer referência aos autores que embasam seus argumentos, deve se referir às fontes (primárias e secundárias) de onde provém a sua argumentação. É preciso informar de onde vêm aquelas interpretações, porque elas foram construídas desta ou daquela maneira e quais os limites dessas interpretações. O discurso histórico está sempre apontando para os seus limites, que é o percurso até onde as fontes e os dados permitem que ele avance. 

Atualmente, mesmo muito transformado, ele ainda é um discurso que busca rigor. A narrativa histórica até pode usar uma linguagem que seja mais acessível, mas ainda é uma ciência — ou, ao menos, tem por horizonte a busca da verdade e da cientificidade. Diferente do discurso literário, que até pode usar referências históricas, mas tem muito mais liberdade para criar personagens, diálogos, etc.

 

IHU On-Line - É possível pensar as biografias como uma convergência entre História e Literatura? 

Benito Bisso Schmidt - As biografias são escritas por especialistas de diversas áreas. Temos biografias literárias, jornalísticas, feitas por historiadores, temos cinebiografias, etc. No entanto, penso que cada um desses campos tem especificidades. A biografia histórica se aproxima mais da literatura por seu caráter narrativo muito forte. Os biógrafos — tanto literatos quanto jornalistas e historiadores — contam histórias, mas os pressupostos de cada um deles são diferentes. 

O historiador, por exemplo, nunca vai acreditar na ideia de uma biografia definitiva. Às vezes se publica a biografia de algum personagem histórico e se diz que aquela é “a verdadeira biografia”. O historiador sempre sabe que todo conhecimento é provisório e referente a um ponto de vista, não existem histórias definitivas. 

Outra questão: o historiador sempre parte de um problema de pesquisa histórico. Ele não quer revelar tudo de um personagem custe o que custar, doa a quem doer, só pelo gosto de divulgar uma informação não antes conhecida. Não quer saber tudo, revelar segredos íntimos ou aquilo que nunca foi contado. Isso não é um protocolo do historiador. O protocolo do historiador é responder a perguntas de caráter histórico através da vida de um indivíduo. Respondendo sinteticamente à sua pergunta, penso que há semelhanças — até formais —, mas esses diferentes lugares de produção da biografia partem de pressupostos diferentes. 

 

IHU On-Line – Você pode apontar exemplos de biografias sobre personagens escritas por historiadores e por profissionais de outras áreas que evidenciam esses objetivos diferentes?

Benito Bisso Schmidt - A cantora Carmen Miranda, por exemplo, já foi tema de biografias de jornalistas e historiadores . Os jornalistas, em geral, têm essa preocupação de levar a ideia do “furo” para o passado, evidenciando uma coisa que as pessoas não sabiam sobre a Carmen Miranda, sobre sua origem ou seus dramas pessoais. Para os historiadores, o principal é entendê-la dentro de um contexto histórico de construção de uma ideia de nacionalidade, em que a música deveria exaltar as belezas do Brasil, muito relacionado ao projeto do governo Vargas de construir uma identidade nacional, um patriotismo e assim por diante. Carmen também está relacionada aos processos de aproximação e distanciamento com os Estados Unidos, por exemplo. São questões de relações internacionais.

Assim, os aspectos da vida da Carmen Miranda que vão interessar ao biógrafo historiador serão aqueles que ajudam a responder questionamentos de caráter histórico. Se alguma questão de sua vida íntima interessa para estes temas de fundo, então isto será levado em conta. Do contrário, não se mencionaria apenas para “explicitar os bastidores”, digamos assim. Até porque, no geral, penso que as pessoas de outras áreas se interessam normalmente por figuras já consagradas; os historiadores não necessariamente. Existe muito interesse da história pelos excluídos, por aqueles que nunca foram dignos de uma biografia — mas também fazem parte do processo histórico.  

 

IHU On-Line – Pouco tempo atrás tivemos as polêmicas do grupo Procure Saber, que cobrava a necessidade de autorização prévia para a produção de biografias. Depender da anuência da fonte ou das famílias pode prejudicar o trabalho biográfico? 

Benito Bisso Schmidt - Eu acredito que sim. Pode prejudicar sempre que significa uma censura, um cerceamento quanto ao que pode ou não pode ser dito. Qualquer cerceamento deste tipo prejudica a liberdade de pesquisa e narrativa. Na maior parte dos países, ao menos nos que possuem alguma legislação sobre isso, não existe esse cerceamento prévio, e quando o personagem se sente prejudicado, ou quando existe alguma mentira dita no texto — na visão do biografado —, então ele processa o biógrafo. Essa avaliação é feita a posteriori, não existe essa necessidade de uma avaliação prévia.

Na história nós usamos ainda um procedimento, quando se usam testemunhas orais e entrevistas (tanto com o próprio biografado quanto com pessoas que conviveram com ele), que é o de solicitar uma carta de autorização. Esta carta demonstra que a pessoa cede livre e conscientemente sua entrevista para pesquisa, sabendo que ela será utilizada para a biografia. Claro que nunca podemos fazer uma entrevista com microfones escondidos, ou coisa assim, pois isso não é ético. A pessoa precisa estar ciente de que está construindo, com a entrevista, como uma fonte para a pesquisa.

 

IHU On-Line – Diferente de histórias de tempos antigos, biografias por vezes retratam pessoas ainda em vida ou de morte recente, expondo e revelando pessoas e familiares. Quais os cuidados que um biógrafo deve ter?

Benito Bisso Schmidt - Este é um dilema muito grande, pois ficamos, normalmente, entre dois polos: de um lado a liberdade de informação e de pesquisa e, de outro, o direito à intimidade, de as pessoas não terem suas vidas reveladas. Temos ainda duas éticas que às vezes se harmonizam e às vezes se distanciam. Uma é a ética da nossa profissão, da ciência, do conhecimento do passado; outra é a ética em relação às pessoas que estamos estudando.

Eu tendo a pensar que temos sempre de proteger os nossos testemunhos. Se você está, por exemplo, estudando uma população, um grupo, uma coletividade que pode ter um prejuízo com a revelação da pesquisa — como no caso de revelações que podem fazer com que uma pessoa seja vítima de perseguições, humilhações —, eu acredito que não vale à pena. Podemos, na verdade, utilizar procedimentos narrativos que dissimulem um pouco esta origem, para não revelar a fonte (“um conhecido”, “uma pessoa próxima”), pois nosso compromisso principal é tentar preservar as pessoas e, ao mesmo tempo, buscar entender o passado histórico. 

É um equilíbrio difícil, mas penso que devemos estar muito atentos a estes dois polos; não mentir, dissimular ou propor uma interpretação falseada só para proteger o biografado e suas fontes, mas também não fazer com que nossa pesquisa seja a coisa mais importante do mundo, doa a quem doer. Nós temos um compromisso social, ético e cívico com as pessoas que estão sendo alvo de nossas atenções.

 

IHU On-Line – Quais os limites entre história e ficção, tendo em vista que o relato é sempre uma construção? Apenas a metodologia é capaz de dar conta disso?

Benito Bisso Schmidt - Essa é uma pergunta epistemológica clássica, que nos assombra sempre. A própria ideia a respeito do que é uma ficção e do que é uma obra histórica é, também, uma construção histórica. Esses limites sempre foram fluidos. Em outras épocas, alguns livros que hoje nós colocaríamos na prateleira de ficção, provavelmente seriam considerados livros de história. Essa concepção do limite entre ficção e história variou com o tempo, não necessariamente para melhor ou pior, mas de acordo com as conjunturas. Penso que a narrativa histórica, como qualquer narrativa, é uma construção de humanos com suas rivalidades, com seus conflitos, suas alianças e assim por diante. 

O que nos diferencia, talvez, e que não é nenhuma garantia de uma maior verdade, mas é o nosso horizonte, é que o texto histórico, como afirma Michel de Certeau , remete para fora do texto. Ele não é autoexplicativo, remete sempre para algo que está fora dele. Exemplo disso são as nossas amadas e, por vezes odiadas, notas de pé de página. Elas não estão ali apenas para embelezar ou para enfear o texto, mas para mostrar que o que está no interior da narrativa remete a outras narrativas que estão fora do texto. Que outras narrativas são essas? Indicamos o documento que localizamos nos arquivos, as fontes orais, o local e as condições em que a entrevista foi concedida, ou a nota remete para outros autores que nos ajudaram a construir essa ideia... Esse texto a todo tempo demonstra e tenta criar uma lógica para fundamentar seus argumentos. 

 

IHU On-Line – Pensando nas relações interdisciplinares, o que caracteriza na contemporaneidade o campo de exercício profissional do historiador? Em que ele difere deste mesmo campo no passado recente?

Benito Bisso Schmidt - Em um passado recente, os caminhos mais naturais para o exercício profissional do historiador eram o ensino nos seus mais diferentes níveis — tanto fundamental quanto médio e superior — e a pesquisa acadêmica, em sentido estrito. Já existiam outras possibilidades de atuação, como, por exemplo, em órgãos de patrimônio histórico (como museus e arquivos), em assessorias (de órgãos públicos e privados), mas eram ainda caminhos muito marginais. Hoje, no entanto, há uma proliferação muito maior de atuações possíveis para o historiador. 

Na assessoria, por exemplo, um ramo muito difundido é o da história empresarial: são empresas que contratam historiadores para organizar seus acervos, organizar a documentação destas instituições, realizar publicações a respeito de sua história, além de promover exposições e eventos culturais. Temos ainda historiadores atuando junto à mídia, para oferecer assessoria à produção de novelas, filmes ou peças teatrais; bem como profissionais que trabalham na área de Turismo, com o delineamento de rotas turísticas. Enfim, o campo de atuação do historiador se diversificou muito nos últimos anos em relação ao passado recente.

 

IHU On-Line - Como se dá a relação entre o historiador e estes profissionais de outras áreas, tendo em vista o tensionamento que ambos geram em campos de atuação já em consolidação?

Benito Bisso Schmidt - Penso que o conflito é a base do mundo social. Podemos administrá-lo da melhor maneira possível, aprender com os colegas de outras áreas e, enfim, estabelecer diálogos profícuos. Muitas vezes esses encontros de profissionais diferentes podem proporcionar experiências muito positivas, onde é possível aprender e ensinar ao mesmo tempo. No entanto, também não faz sentido fazer um discurso muito “Poliana”, como se todos ao final fossem se tornar amigos para construir um mundo melhor. 

Acredito que a delimitação das fronteiras profissionais é uma luta permanente. Basta ver na área da saúde a relação dos médicos com os fisioterapeutas, psicólogos, nutricionistas e assim por diante. É sempre uma disputa, por vezes política, para tentar estabelecer regulamentações profissionais no sentido de estabelecer limites de atuação das demais áreas. Esses limites são muito variáveis e também são historicamente construídos. 

No caso das ciências humanas e da informação é a mesma coisa. O historiador vai ter diálogos, mas também conflitos: se ele trabalhar em um arquivo, será com os profissionais da arquivologia; se trabalhar em um museu, com os da museologia; se trabalhar na área de turismo, com os turismólogos... Claro que o ideal seria que essas pessoas pudessem conviver e aprender umas com as outras, mas existem limites. Acredito que as experiências multidisciplinares são sempre as melhores que pode haver. 

O museólogo, por exemplo, tem uma formação muito interessante para questões de conservação, exposição, documentação, etc., mas não tem conhecimento denso de história para fazer uma exposição histórica com mais refinamento. Ao mesmo tempo, o historiador não vai poder trabalhar em um museu de ciência e tecnologia, mas o museólogo sim. Esses campos profissionais estão em constante reajuste, e esses reajustes são frutos de acordos, tensões e disputas. A vida é assim. O que me preocupa é que nós historiadores possamos mostrar aos nossos colegas de todas essas áreas onde entra nossa contribuição. Teoricamente, claro, pois existem bons e maus profissionais em todas as áreas, mas é importante sermos capazes de mostrar em que, em função da nossa formação, podemos contribuir e, ao mesmo tempo, conhecer nossos limites. 

 

IHU On-Line – Estas mudanças vieram de maneira natural no campo da História ou são realidades as quais ainda se apresentam como desafios para o profissional? 

Benito Bisso Schmidt - Penso que existe uma demanda cada vez maior da sociedade por questões ligadas à história, à memória e ao patrimônio. Basta ver a quantidade de produtos não especializados, mas voltados ao grande público que estão sendo produzidos: revistas, livros, minisséries e novelas de época, produtos culturais dos mais diversos tipos de caráter histórico. Isso de um lado. De outro, existe um interesse dos historiadores de participar e qualificar essa demanda social. Ou seja, que não seja uma simples exaltação do passado, mas uma memória e uma história balizadas por procedimentos mais rigorosos de reconstrução desse passado. 

Agora, penso que você tem toda razão ao usar a palavra desafio. É um desafio para nós historiadores, acostumados a trabalhar nessas áreas clássicas, como o ensino e a pesquisa. Estas são áreas muito importantes e não devem de forma alguma ser diminuídas, mas hoje nos deparamos com novos desafios, sendo o principal deles, ao meu ver, o da comunicação. Como podemos pensar em outras formas de narrativa histórica que não sejam as mais consagradas e voltadas ao público acadêmico e escolar? Como pensar narrativas que, sem perder o rigor, levem em conta a necessidade de comunicação com outros públicos? 

Temos ainda, neste campo, desafios éticos também. Como podemos nos comunicar com o grande público e fazer nossas pesquisas sem descuidar dos procedimentos éticos de preservar a imagem de determinadas pessoas, a intimidade e assim por diante? É um desafio de formação para o qual nossos cursos universitários estão se atentando nos últimos anos; da necessidade de formar um historiador que não seja só alguém que fale para o público escolar e acadêmico, mas que também consiga manusear outras linguagens, como a das exposições, as audiovisuais, a das redes sociais, enfim, de obras voltadas para um público maior.

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