Edição 450 | 11 Agosto 2014

As dinâmicas de mestiçagem e a distinção social na Ibero-América

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Andriolli Costa

O historiador Eduardo França Paiva retoma os usos do conceito de mestiço nos séculos XVI e XVIII para explorar as dinâmicas de mestiçagem que ainda hoje marcam essa sociedade

A mestiçagem é parte integrante da formação sociocultural do povo brasileiro. O termo/conceito não se refere apenas à esfera biológica, mas aos próprios processos de intercâmbio, apropriações e reapropriações de práticas culturais, vivências e modos de sentir, pensar e agir. No entanto, ainda que Gilberto Freyre tenha promovido uma valorização da figura do mestiço, o pesquisador Eduardo França Paiva chama atenção para um detalhe: “As mestiçagens não existem para misturar todos e criar um só, não são o somatório de três raças que leva a uma quarta, que é o brasileiro”, esclarece. “Historicamente falando, os processos de mestiçagens servem para diferenciar, para distinguir uns dos outros.”

O pesquisador ressalta que a mestiçagem não elimina as relações de poder. Em seus estudos, que envolvem a Ibero-América nos séculos XVI a XVIII, Paiva identificou centenas de palavras de um “léxico mestiço” utilizadas para definir, classificar e hierarquizar grupos sociais e/ou indivíduos. As palavras “definiam quem era ‘mais qualificado’ e ‘menos qualificado’” em contexto ibero-americano, no qual a pureza de sangue teve grande importância.  

Nesta entrevista, concedida por telefone à IHU On-Line, Paiva ressalta que a discussão de mestiçagem não se refere ao geneticismo, à eugenia ou ao racionalismo. É sim pensar na influência de agentes mestiços e não mestiços, mas inseridos neste contexto de hibridização, e que atuaram historicamente para a formação de nossa sociedade. Para o pesquisador, “pensar as mestiçagens é também pensar as formas de trabalho nas quais mestiços e não mestiços estiveram envolvidos”. E falar sobre o mundo do trabalho, na América dos séculos XVI, XVII e XVIII, é falar em formas de trabalho compulsório — uma marca indelével na historiografia brasileira.

Eduardo França Paiva possui graduação e mestrado em História pela Universidade Federal de Minas Gerais - UFMG e doutorado em História Social pela Universidade de São Paulo, com estudos pós-doutorais na Escuela de Estudios Hispano-Americanos/CSIC, Sevilla, e na École des Hautes Études en Sciences Sociales - EHESS, Paris. Atualmente é professor associado da UFMG e diretor do Centro de Estudos sobre a Presença Africana no Mundo Moderno - CEPAMM-UFMG. É autor, entre outros, de Escravos e libertos nas Minas Gerais do século XVIII; estratégias de resistência através dos testamentos (São Paulo: Annablume, 2009) e de O ouro e as transformações na sociedade colonial; produção, abastecimento e comércio nas Minas Gerais (São Paulo: Saraiva, 2008).

Confira a entrevista.

 

IHU On-Line – Atualmente, qual o conceito de “mestiço” com o qual você trabalha?

Eduardo França Paiva – Eu faço meu papel de historiador. Vou buscar nas fontes antigas os usos do termo e os significados atribuídos a eles entre os séculos XVI e XVIII. Esse é o meu enfoque. Há uma precisão muito importante nos meus estudos e para todos os especialistas de que “mestiço” não é um conceito que se opera a partir do presente para ser apresentado a um passado que o desconheceu. Ao contrário, “mestiço” é um conceito do passado, operado no passado — mesmo que ainda hoje se apresente, com variações ao longo do tempo. Há algumas indicações de que este conceito aparece em torno do século XIII na Europa, na península ibérica ou na península itálica, chegando talvez até a França. Essas regiões de línguas latinas conhecem o termo/conceito desde este período, ainda que ele seja pouco empregado até o final do século XV. 

A partir de então, com a chegada dos ibéricos ao Novo Mundo (a América), este termo/conceito é trazido e empregado já pelos primeiros espanhóis. Na virada do século XV para o XVI ele passa a ser utilizado, primeiramente, para designar os filhos de espanhóis com índias. Esses eram os mestiços na América espanhola, mas mais tarde o conceito será empregado em toda extensão desse Novo Mundo — a bem dizer, dos atuais Estados Unidos até o sul da América do Sul. Desta forma, o termo acaba se “americanizando” a partir do final do século XV. 

No caso da América portuguesa, nos primeiros momentos, o termo “mestiço” não aparece, mas existiu outro muito particular: “mameluco”. “Mestiço”, “mameluco” e até mesmo um terceiro termo, “bastardo”, tinham o mesmo significado. Em torno desses conceitos é que eu e os pesquisadores que integram os grupos de pesquisa que coordeno estamos trabalhando, pretendendo compreender, inclusive, esse processo de mestiçagem que vai marcar tão profundamente as realidades das sociedades americanas até hoje.

 

IHU On-Line – Quando se fala em mestiçagem, na História, fala-se somente da questão étnica?  

Eduardo França Paiva – Esta é outra questão que merece alguma precisão. “Mestiçagem” é um conceito posterior ao período que geralmente abordamos. É muito provável que ele tenha aparecido no século XIX. Até então, os termos mais ou menos sinônimos, empregados com frequência, eram “mistura” e “mescla”. Mestiçagem, portanto, é um conceito que usamos hoje, mas que sabemos que não está presente nesse período que vai até o final do século XVIII. Como conceito, ele é empregado legitimamente, como qualquer outro em nossa área de conhecimento, mas é um detalhe importante a ser esclarecido. 

Não estamos falando de geneticismo nem de eugenia, conceitos, práticas e políticas que a partir do século XIX estabelecem uma hierarquia de raças e culturas, na qual as superiores são as puras e brancas. Também não se trata do racialismo, que não apenas diferenciava e hierarquizava os diversos tipos humanos, mas associava as raças degeneradas às misturas genéticas ocorridas, corroborando as teorias evolucionistas e decretando o futuro menos civilizado das sociedades miscigenadas. 

As mestiçagens que estudamos nos grupos de pesquisa são os processos de mesclas biológico-culturais associadas a formas de viver e de pensar, a conhecimentos e técnicas, ao trabalho e ao mundo material, ao cotidiano, a representações e imagens, a sentimentos e medos, a relações de poder, a conflitos e negociações, etc. Tudo isso é constituído em ambientes culturalmente mestiços, historicamente falando. Quando falo em mestiçagens, refiro-me a esse processo que ocorre ao longo da história, não apenas na América, mas marcadamente a partir da América, que é o nosso foco de estudos. 

 

IHU On-Line – Ainda nesse processo de mestiçagem, é correto pensar em culturas hegemônicas? Isto é, no contato histórico do europeu com o indígena, mesmo existindo este intercâmbio de características, ele ganha ou influencia mais estas culturas?

Eduardo França Paiva – Esta é uma questão complexa de se trabalhar. Isso vai depender do período, do tempo e do espaço, mas é claro que quando se pensa em mestiçagens, não se ignoram as relações de poder. Elas existem o tempo todo. As mestiçagens não existem para misturar todos e criar um só, não são o somatório de três raças que leva a uma quarta, que é o brasileiro. Historicamente falando, os processos de mestiçagens servem para diferenciar, para distinguir uns dos outros. Não se trata de um conceito que vai se sobrepor às relações de poder cotidianas, institucionais, ou que busca homogeneizar os diferentes, mas de um conceito que é historicamente usado para distinguir grupos e indivíduos e hierarquizá-los. Claro que temos aí a formação de um conjunto cromático, isto é, variados tons de cor de pele  — cujas definições e nomeações podiam ser modificadas, dependendo de quem as visse, as registrasse e as identificasse, de como isso era feito e com que intenção se fazia. Mas temos, também, talvez mais intensamente empregadas por toda a população, uma grande quantidade de “qualidades”, marcadores que definiam os indivíduos e os grupos.

As principais “qualidades”, nesse contexto americano, eram: índio, branco, preto, negro, mestiço, crioulo, cabra, mulato, pardo, mameluco, caboclo e zambo. Eram categorias que diferenciavam, classificavam e hierarquizavam grupos sociais e/ou indivíduos. Ou seja, definiam quem era “mais qualificado” e “menos qualificado”, isto é, qual a “qualidade” mais valorizada em contexto ibero-americano, no qual a pureza de sangue teve grande importância, mas teve, ao longo do tempo, seu peso carcomido pelas intensas mesclas biológico-culturais. 

Pureza de sangue

Ao menos teoricamente, aos “puros de sangue” ou “homens bons” estavam destinados os cargos principais da administração. Na prática, quando o historiador vai ao arquivo e “mergulha” na documentação, percebe-se a existência de muita variação em torno dessas questões. As práticas de mestiçagens, portanto, não tornam todo esse contexto apolítico ou sem relações de poder. Ao contrário. Já o conceito “mestiçagem” pode nos ajudar a ver mais claramente como, de cima para baixo e de baixo para cima, estas relações de poder foram gestadas e manipuladas pelas pessoas. Desde os livres e brancos até os escravos (a condição jurídica mais básica), os libertos, os mestiços (os impuros de sangue), todos operaram as categorias de mestiçagens, todos se distinguiam e distinguiam o “outro”. Um pardo jamais aceitaria, a priori, ser confundido com um negro, nem um mulato com um crioulo. Estas situações estavam dadas e eram, inclusive, legitimadas por essas pessoas. 

A distinção era a regra nesta sociedade. Ao contrário do que se propôs durante muito tempo, a ideia de igualdade dos homens começa a vingar, efetivamente, apenas a partir do final do século XVIII. Mesmo assim, essas sociedades não se tornaram a partir desse momento iguais, livres e fraternas. Elas foram construídas sob a ideia de distinção natural entre os grupos sociais e entre os indivíduos. As mestiçagens foram muito úteis a estes princípios, embora fomentassem, ao mesmo tempo, mobilidade social e sociabilidades e dinamizassem a economia e as culturas. Elas eram ferramentas, instrumentos, a partir dos quais as pessoas construíram seu complexo cotidiano, incluídas aí as relações de poder. 

 

IHU On-Line – Mais do que pensar em mestiçagem, você propõe “dinâmicas de mestiçagens”. O que esta proposta indica? Em que ela difere da visão anterior? 

Eduardo França Paiva – A grande questão, quando se trabalha neste contexto do século XV ao XVIII, é compreender como sociedades que se conformam historicamente em torno de mestiçagens biológicas e culturais compreendiam e integravam agentes históricos que não se viam nem eram vistos ou definidos como mestiços. E eram agentes históricos muito ativos, fundamentais mesmo, para a formação dessas sociedades. Eu estou me referindo aos índios, aos brancos, aos negros, aos pretos e aos crioulos. Assim, estamos falando de sociedades que até hoje são profundamente marcadas por esses traços históricos mestiços, mas que contaram, o tempo todo, com a forte presença de agentes históricos que não se enquadravam no conceito de mestiço, como expliquei na resposta da primeira pergunta. Como entender, enfim, a formação de sociedades mestiças a partir de agentes não mestiços? 

Propor o conceito de “dinâmicas de mestiçagens” significa partir de um conceito contemporâneo e historiográfico para estudar e compreender os processos de mestiçagens e não apenas os produtos mestiços, inclusive os humanos e culturais. O foco, portanto, recai muito mais intensamente sobre estes processos, que foram constituídos a partir da ação de agentes históricos, incluindo os não mestiços, que produziram dinâmicas sociais e culturais mestiças fundadoras dessas sociedades. Neste sentido, o conceito não exclui, ao contrário, abarca outros conceitos importantes e aparentemente contraditórios, como, por exemplo, sobreposições, coexistências, impermeabilidades e purezas biológicas e culturais, tão presentes nas dimensões históricas dos discursos e do imaginário. 

 

IHU On-Line – Quais são as características do léxico mestiço?

Eduardo França Paiva – Esse processo de mestiçagem gera mecanismos de tradução de significados. O que quero dizer com isso? Que foi preciso ter palavras, às quais se atribuiu significados, que explicassem o que estava ocorrendo. Assim, o léxico histórico das mestiçagens demonstra exatamente que todos esses agentes, não de forma isonômica, lançaram mão dos termos. De um lado eu trabalhei com cinco grandes e principais categorias de distinção dos grupos e dos indivíduos. Não são categorias que eu estou propondo, mas que existiram, foram operadas historicamente e estão na documentação que pesquisei sobre o Brasil, a América espanhola e a Península Ibérica. São elas: a) Qualidade, b) Condição jurídica, c) Nação, d) Raça, e) Cor. 

Essas categorias fazem parte desse léxico que foi compartilhado por gente de todas as “qualidades” e “condições”, ainda que os significados tenham variado no tempo e no espaço. Dentro delas existiam muitas subcategorias, algumas das quais eu escolhi para trabalhar, por me parecem esclarecer melhor o processo histórico que eu focava. Então, dentro de “qualidade”, como já expliquei, existiam índio, branco, negro, cabra e por aí vai. As condições jurídicas eram livre, escravo e liberto (ou forro). Depois temos a cor. Quais eram as cores? Como elas eram utilizadas? Ao longo da pesquisa ficou claro para mim que nós historiadores, hoje, muitas vezes lemos documentos e fazemos confusões que os antigos não faziam. Muitas vezes, por exemplo, chamamos de “cor” aquilo que era uma “qualidade”, porque a cor da pele não era o único marcador que as pessoas se importavam. O pardo era muito mais uma “qualidade”, ou seja, tinha um significado mais social e cultural do que biológico (a cor da pele), e assim por diante.

Desde muito cedo este léxico retomou termos antigos, mas que acabaram se “americanizando” e, ao longo do tempo, o léxico que se (re)conformava na América acabava retornando à Europa, inclusive marcando as formas que os europeus passavam a explicar os americanos e a se explicarem. Eu não organizei o léxico. Não tenho nem competência linguística e filológica para fazer isso. Eu apenas o indiquei, buscando termos/conceitos na história para mostrar a existência de um léxico falado e compartilhado na Ibero-América, entre os séculos XVI e XVIII, malgrado as muitas diferenças existentes de uma região para outra, de um período para outro. Ao final da minha pesquisa, com a ajuda de alunos e colegas brasileiros e estrangeiros, arrolei quase 400 termos de identificação, principalmente os empregados há vários séculos, organizando-os em um anexo; são termos/conceitos que durante todo o período abordado identificaram, hierarquizaram e distinguiram pessoas e os grupos sociais aos quais pertenciam.

 

IHU On-Line – Qual a importância do trabalho mestiço no Brasil? De que forma a escravidão e formas de trabalho compulsório foram seus impulsionadores?

Eduardo França Paiva – Não é algo exclusivo da história do Brasil, mas ocorreu em toda a Ibero-América. A ideia é que esse léxico e essas dinâmicas de mestiçagem tenham se desenvolvido desde muito cedo, associados ao trabalho e às formas de explorá-lo. Isto parece ter sido o motor de todo este processo. E falar sobre o mundo do trabalho, na América dos séculos XVI, XVII e XVIII, é falar em formas de trabalho compulsório, que não se restringiram à escravidão. A servidão também é um tipo de trabalho compulsório ao qual foram submetidos muitos índios e muitos mestiços. A proposta, então, era mostrar que desde o início toda esta história acaba se conformando em torno das formas de trabalho, dos tipos de trabalhador e dos tipos de trabalho executados e de todas as variações que isso produziu. As “dinâmicas de mestiçagens” são um conceito, mas também são práticas que se deram ao longo desse período e que nos permitem pensar sobre como esse mundo do trabalho se constitui e sobre o impacto impressionante produzido neste Novo Mundo, moldando, desde então, as realidades das quais somos herdeiros. Pensar as mestiçagens é também pensar as formas de trabalho nas quais mestiços e não mestiços estiveram envolvidos. 

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