Edição 450 | 11 Agosto 2014

O lastro do pós-abolição

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Andriolli Costa

Para o historiador Rodrigo Weimer, o pós-abolição não acabou e se manifesta na questão racial que permanece uma chaga aberta na sociedade brasileira

Sancionada em 13 de maio de 1888, a Lei Áurea foi considerada durante muito tempo como um marco historiográfico para a escravidão no país. No entanto, já em sua dissertação de mestrado, o pesquisador Rodrigo Weimer propõe “negar a relevância de 1888 como evento histórico divisor de águas”. No período final do escravismo, “as fronteiras entre escravidão e liberdade estavam borradas”. Os próprios escravos já experimentavam (ou ao menos vislumbravam) a ideia de liberdade. Evidentemente o período é marcadamente relevante, suscitando novos debates, problemas, relações sociais e disputas de poder. No entanto, para ele, alguns estudiosos supervalorizam a especificidade deste pós-abolição, desprezando “qualquer conexão com o período anterior”. 

Conforme aponta o pesquisador, a partir de 13 de maio os ex-escravos foram socializados em um regime escravocrata. “Traziam a memória da escravidão em suas mentes e eventualmente suas marcas em suas peles. Mesmo os negros livres estavam profundamente marcados por uma sociedade cuja lógica até então era escravista.” Mais do que isso, esse lastro pode ser percebido até os dias de hoje. Aponta Weimer: “A questão racial está longe de poder ser considerada resolvida no Brasil, e nesse sentido estou de acordo com aqueles que pensam que o pós-abolição não acabou. O racismo da virada do século XX para o XXI não é o mesmo de cem anos antes, mas segue sendo uma chaga aberta na sociedade brasileira”.

Em entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line, Weimer aborda a relevância do trabalho do historiador para a demarcação de terras quilombolas, questiona a “vitimização” que as pesquisas costumavam ter sobre a figura do negro e expõe as dificuldades do escravo recém-liberto em construir seus espaços privados de atuação. A entrevista trata ainda da revisão do papel do escravo e da escravidão no Rio Grande do Sul e disserta sobre as dificuldades da pesquisa no período pós-abolição, caracterizado especialmente por um “silenciamento da cor” nos registros documentais. Isto é, quando a cor era omitida. “Creio que após o ‘elogio da mestiçagem’ promovido por Gilberto Freyre, a ‘cor’ deixou de ser um tabu tão grande. Mesmo assim, é uma informação ausente em grande parte da documentação oficial.” 

Rodrigo de Azevedo Weimer possui graduação em História (licenciatura e bacharelado) pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS, com mestrado em História pela Unisinos e doutorado na mesma área pela Universidade Federal Fluminense - UFF. Atualmente é bolsista de pós-doutorado na Unisinos. Weimer é autor de Os nomes da liberdade. Ex-escravos na serra gaúcha no pós-abolição (São Leopoldo: Oikos/Ed. Unisinos, 2008) e é um dos autores do livro Comunidade Negra de Morro Alto: Historicidade, Identidade e Territorialidade (Porto Alegre: UFRGS, 2004). 

Confira a entrevista.

 

IHU On-Line – Qual período abrange a pós-abolição? Quais elementos o caracterizam na história brasileira? 

Rodrigo Weimer – Esta questão está longe de ser resolvida. Há certo consenso entre os estudiosos de que o pós-abolição se situa naquilo que está para além da lógica do escravismo, das sociedades escravocratas. A liberdade trouxe novos parâmetros comportamentais e novos estatutos sociais a serem negociados e disputados. As pessoas não eram mais escravas, e agora, o que são? Quais são as novas relações sociais definidas? Desta maneira, a maior parte dos trabalhos situa o “início” do pós-abolição, e eu concordo, em 1888, com a extinção da distinção jurídica entre livres, libertos e escravos. No entanto, há historiadores que datam tal referência a partir de momentos marcantes da decadência do sistema escravista no Brasil, como 1831, 1850 ou 1871. Creio, porém, que uma sociedade imperial com um sistema escravista em corrosão ainda é bastante diferente de uma sociedade na qual inexiste escravidão.

A historiografia sobre o século XIX se debruçou sobre questões absolutamente diferentes do que aquelas propostas para o pós-1888. O pós-abolição se caracteriza por uma série de desafios com os quais se defrontou o Brasil a partir da inexistência da distinção livre/escravo, particularmente a racialização das relações sociais no sentido de manutenção de hierarquias que não mais podiam ser definidas em termos jurídicos. Quer dizer, a estratificação livre/escravo cedeu lugar à hierarquia branco/negro. Quando homens deixaram de ser propriedade de outros homens, surgiu a hierarquia racial a reafirmar estatutos sociais diferenciados. A questão racial está longe de poder ser considerada resolvida no Brasil, e nesse sentido estou de acordo com aqueles que pensam que o pós-abolição não acabou. O racismo da virada do século XX para o XXI não é o mesmo de cem anos antes, mas segue sendo uma chaga aberta na sociedade brasileira.

 

IHU On-Line – Como era para estes negros recém-libertos lidar com a novidade do conceito de “liberdade”? Por exemplo, quais as dificuldades para encarar questões como de limite de propriedade, de espaços produtivos e de seu próprio papel social?

Rodrigo Weimer – Este conceito não era exatamente uma novidade. De acordo com a historiadora Hebe Mattos , os escravos tinham noções sobre a liberdade ao se defrontarem com a realidade do cativeiro. Há que considerar que em 13 de maio de 1888 a maior parte dos negros brasileiros já era livre, e mesmo para os que não eram, a liberdade era uma noção presente e almejada. O que caracteriza o final do período escravocrata e o imediato pós-abolição é exatamente a disputa em torno dos significados do “ser livre”. 

Desta maneira, Mattos e outros autores (Ana Rios , Maria Helena Machado ) propõem a ideia de “projeto camponês”, isto é, a ambição de definir espaços de cultivo próprios, definição de ritmos de trabalho em uma economia familiar. Escravidão era “trabalhar para os outros”, liberdade era “trabalhar para si”. Boa parte dos queixumes senhoriais de que os ex-escravos “não queriam trabalhar” deve ser lida nestes termos. Refere-se, em realidade, ao fato de eles quererem trabalhar para si mesmos, em sua gleba familiar. E isso não era uma novidade, porque já durante o regime escravista alguns escravos conquistaram o direito costumeiro de produzir alimentos dentro das unidades produtivas ou ter casas próprias separadas das senzalas. Tratava-se de experiências sociais que os afastavam do cativeiro e os aproximavam da liberdade. 

Assim, no período final do escravismo, as fronteiras entre escravidão e liberdade estavam borradas. Havia possibilidade de aproximação com experiências de liberdade e com indivíduos livres o suficiente para formar um “conceito”. Uma vez finda a escravidão, alguns foram bem-sucedidos, outros não, nesta almejada possibilidade de se estabelecer de forma autônoma.

Um fenômeno que tenho constatado foi um apego dos ex-escravos às delimitações dos espaços e aos meios de produção que julgavam seus durante o período escravista. Assim, procurei demonstrar em minha dissertação de mestrado que a apropriação do gado senhorial, prática costumeira durante a vigência do cativeiro, foi criminalizada após 1888, já que os ex-escravos foram “desligados” dos meios de produção que compunham as unidades produtivas de que eram parte integrante. Da mesma forma, encontrei, em um processo criminal analisado em minha tese de doutorado, um caso em que houve resistência da parte dos antigos escravos em delimitar com cercas espaços produtivos da antiga propriedade senhorial até então cultivados coletiva e costumeiramente.

 

IHU On-Line – Em sua dissertação de mestrado você propõe “negar a relevância de 1888 como evento histórico divisor de águas”. O que esta decisão representa? 

Rodrigo Weimer – Esta afirmação deve ser lida na perspectiva de um debate historiográfico.  Há praticamente um consenso entre os historiadores do pós-abolição de que este é um período novo, no sentido de que traz novos debates, novos problemas, novas relações sociais, novas disputas em relação àquilo que vinha sendo a realidade do escravismo. 

Há uma rejeição a ideias presentes em Gilberto Freyre  e Florestan Fernandes  de que o período posterior a 1888 possa ser definido, simplesmente, pela “herança da escravidão”, considerem-na os autores positiva ou negativa. No entanto, parece-me que alguns estudiosos vão longe demais, quando, no afã de ver o período pós-abolição em sua especificidade, desprezam qualquer conexão com o período anterior. Essa perspectiva me parece equivocada.

13 de maio de 1888 não é um divisor de águas no sentido de que os ex-escravos foram socializados em um regime escravocrata. Traziam a memória da escravidão em suas mentes e eventualmente suas marcas em suas peles. Mesmo os negros livres estavam profundamente marcados por uma sociedade cuja lógica até então era escravista, e podiam ter pais, avós, amigos, tios, irmãos, libertados pela lei Áurea. O período pós-abolição tem sua especificidade e traz novos problemas, sim. Mas não faz tabula rasa de experiências sociais tão arraigadas.

 

IHU On-Line – Você aponta uma tendência dos historiadores do pós-abolição de, em uma tentativa de apontar as mazelas do negro recém-liberto, assumirem também um discurso preconceituoso. Como isso se dá? Qual seria uma postura recomendada para o historiador que lida com um período tão marcante?  

Rodrigo Weimer – Quando falei em preconceito, creio que me referia à apropriação acrítica por Florestan Fernandes das fontes senhoriais. Mas não acho que seja uma tendência dos estudos recentes. A reprodução dos queixumes senhoriais como “verdade” — de que os negros não queriam trabalhar, etc. — não resiste à crítica documental e levou, na melhor das boas intenções, de denúncia do racismo por parte dos autores da Escola Sociológica Paulista, anos 50 e 60, à construção de uma imagem estereotipada, vitimizadora, e portanto preconceituosa, da população negra: famílias desestruturadas, ausência de ética do trabalho, consumo de álcool, prostituição, mendicância, etc. O próprio aparato metodológico do bom historiador — saber criticar uma fonte, como ela foi produzida, por quem, para quê — já é uma boa recomendação para evitar determinadas armadilhas.

 

IHU On-Line – Na contemporaneidade ainda é possível identificar a presença de características do pós-abolição? Quais? 

Rodrigo Weimer – Eu já destaquei anteriormente o racismo como uma questão presente na sociedade brasileira desde então. É claro que na década de 1930 ocorreu o elogio da mestiçagem, a construção da ideia de democracia racial por parte de Gilberto Freyre. O racismo de hoje não é mais o racismo biologizante, pretensamente científico, do século XIX, mas está presente. Outra característica também em aberto do período posterior à Abolição está no acesso da população negra rural à terra. A Abolição no Brasil foi feita sem nenhum esforço pela incorporação dos libertos como pequenos proprietários. No entanto, diversas comunidades, hoje denominadas “remanescentes de quilombos”, permaneceram em territórios de ocupação tradicional, mediante diversas modalidades: doações, aquisições, posse, permanência de localidades de negros fugitivos durante o século XIX, ou um pouco de tudo isso misturado, como é o caso do quilombo do Morro Alto,  aqui no Rio Grande do Sul. O fato é que temos uma questão social tremenda em relação a estas comunidades, pois elas procuram, amparadas por direitos constitucionais, efetivar a propriedade de suas territorialidades históricas. Isso atualiza e traz à tona — mas não cria — inúmeros antigos conflitos fundiários.

 

IHU On-Line – Como é registrada a presença do negro na historiografia do Rio Grande do Sul? Existe um apagamento de sua figura?

Rodrigo Weimer – Sim. Durante muito tempo se acreditou que, por se tratar de uma província de produção pecuária durante o século XIX, a escravidão teria tido um papel secundário no Rio Grande do Sul. Afinal — se afirmava — se tivesse acesso a um cavalo, o escravo necessariamente fugiria. Portanto, não poderiam ter existido escravos na pecuária. Felizmente, novos estudos, em lugar de conjecturas, têm analisado o material empírico e encontrado uma incidência muito grande de cativos trabalhando na pecuária. Esta nova historiografia também tem tentado encontrar explicações mais sofisticadas para a permanência dos escravos nas unidades produtivas. Além disso, nem todo o Rio Grande do Sul criava gado. Na região que estudo, Conceição do Arroio, atual Osório, se produzia açúcar, que é um produto que sempre exigiu muita mão de obra escrava. Em Pelotas — e isso já se sabia anteriormente — as charqueadas aumentavam a concentração de cativos.

Quanto ao pós-abolição, o apagamento é ainda maior. Decidi dedicar meus estudos ao tema porque, participando de equipes responsáveis pela elaboração de laudos histórico-antropológicos, percebi uma lacuna imensa no que diz respeito a estudos sobre negros no Rio Grande do Sul rural no século XX. Parecia que, com raras e importantes exceções, 1888 era o limite máximo de abrangência do trabalho do historiador e, digamos, as décadas de 1970 e 1980, o limite mínimo da abordagem do antropólogo. Entre uma coisa e outra, nada. É incrível, mas até recentemente na produção acadêmica, e até hoje em livros didáticos, aparentemente é como se a população negra simplesmente tivesse desaparecido depois da chegada dos imigrantes. Acho que era essa minha preocupação, complementando a pergunta anterior, em dizer que 1888 não pode ser um divisor de águas. E esse silêncio, esse apagamento da historicidade de todo um povo ao longo de um século eu credito ao racismo. Não um racismo intencional, mas um racismo latente. O racismo que nega a historicidade dos negros. Que afirma que ou eles são escravos, ou são uma alteridade exótica no presente. Eles não aparecem como um povo dotado de história.

 

IHU On-Line – Você aponta o problema do “silenciamento da cor” nos registros de negros no Brasil. Durante quanto tempo isso ocorreu e quais foram os motivos que levaram a isto?

Rodrigo Weimer – O silêncio sobre a cor foi uma conclusão de Hebe Mattos ao analisar a documentação da segunda metade do século XIX. Com isso, a autora quis dizer que em situações de igualdade formal a cor era omitida, silenciada. Isso é uma enorme dificuldade para o historiador do pós-abolição, já que dificulta a identificação dos sujeitos históricos de interesse, mas pode ser tema de reflexão. Ocorre que, por exemplo, perante um juiz, em uma situação em que todos eram admitidos e apresentados como iguais, como cidadãos, a partir de determinado momento tornou-se inconveniente apontar a “cor” dos sujeitos.

Devemos levar em conta que a generalização do uso do termo “negro” de uma forma positivada é um fenômeno histórico muito recente. Em uma sociedade escravocrata, ou recém-saída do escravismo, identificar um sujeito como “preto”, por exemplo, uma categoria de “cor” da época, era bastante ofensivo. Assim, havia necessidade de simulação de uma igualdade formal, em um momento de afirmação de determinada ideia de cidadania. Isso não quer dizer que hierarquias raciais não operassem na informalidade. De certa forma, isso ainda hoje é assim. Em situações de igualdade formal não há registro de categorias de cor, mas a hierarquização racial não deixa de estar presente. É evidente que este silêncio hoje não é radical como o foi na Primeira República. Creio que após o “elogio da mestiçagem” promovido por Gilberto Freyre, a “cor” deixou de ser um tabu tão grande. Mesmo assim, é uma informação ausente em grande parte da documentação oficial. A não ser muito recentemente, quando em um contexto de ações afirmativas as pessoas se autodeclaram negras. Mas nesse caso é diferente, porque há uma discriminação positiva, e não negativa em torno destas categorias.

É claro que existiam fissuras neste silenciamento. Quando a coisa apertava, nos momentos de tensão, a igualdade formal se esvaía e as cores podiam voltar com tudo. Ou até mesmo a categoria “ex-escravo”, que fazia a vinculação explícita com o cativeiro, e portanto o maior estigma de todos, podia voltar. Em minha tese de doutorado, analisei um processo da primeira década do século XX no qual se tornou informação-chave para as investigações descobrir se um suspeito tinha sido escravo de grandes fazendeiros da região, que poderiam estar acobertando ele. Por esta razão, em quase todos os depoimentos esta é uma questão investigada e ressaltada. Então é na polícia, e não na justiça, que podemos encontrar maiores referências raciais, porque a igualdade formal é menor. Ainda assim, encontrei nos inquéritos policiais muitos e muitos nomes que para mim eram conhecidos pelo seu pertencimento a famílias negras e que não eram explicitados ou se explicitavam como tal. Realmente, isso acontecia apenas em situações-limite.

 

IHU On-Line – Para a demarcação de áreas de quilombos, é fundamental a atuação do historiador da elaboração de laudos histórico-antropológicos para validar a solicitação. Quais as principais dificuldades para a realização deste tipo de trabalho? 

Rodrigo Weimer – Existem problemas de toda ordem. Podemos ter, eu não tive, mas porque fizemos um esforço coletivo para nos “afinarmos”, problemas de entrosamento entre profissionais de diferentes áreas. É um trabalho que pode envolver a possibilidade de intimidação das partes prejudicadas: fazendeiros, posseiros, etc. Podemos ter dificuldade de acesso a arquivos locais pela desconfiança que este tipo de trabalho desperta. Por exemplo, quase dez anos depois da realização do laudo de Morro Alto, eu ainda precisei de autorização judicial para pesquisar no tabelionato de Maquiné para minha tese de doutorado. Temos que eventualmente lidar com faccionalismos comunitários, o que é outra dificuldade. Mas, para mim, o principal dilema é de ordem ética: se acreditamos que as comunidades podem e devem se reconhecerem, e este é o critério correto academicamente e do ponto de vista dos Direitos Humanos, por que necessitariam de nosso aval? Na legislação atual, os Relatórios Técnicos de Identificação e Delimitação supostamente não têm um papel de validação, mas na prática é isso que ocorre. No caso dos dois laudos que realizei, na primeira ocasião era uma exigência legal, durante o governo de Fernando Henrique Cardoso. No segundo, foi uma medida preventiva tomada pela Fundação Cultural Palmares.  Não valia mais a legislação do governo FHC, não havia sido definida ainda a legislação do governo Lula em relação aos quilombos, então a Palmares entendeu ser necessária a realização de um laudo mesmo assim, para resguardar a comunidade com informações históricas e antropológicas que pudessem ser úteis em sua demanda. Eu prefiro pensar assim. Não tenho o poder de atestar a identidade alheia, mas posso produzir trabalhos dos quais eles possam se apropriar para fundamentar demandas identitárias. Mas a apropriação que os trabalhos vão ter já está além do meu controle.

 

IHU On-Line – Que tipo de mudanças em dinâmicas de trabalho ou em políticas públicas você julga serem necessárias para dar prosseguimento às demarcações de povos tradicionais? 

Rodrigo Weimer – Essa discussão é muito complexa e eu vou colocar apenas algumas impressões gerais relativas às comunidades quilombolas, que conheço melhor. O fato é que a Constituição Federal que assegura seu direito ao território tem mais de 15 anos, e muito, muito pouco foi feito. São pouquíssimas as comunidades titularizadas desde então, e, em relação à totalidade de quilombos, também há poucas reconhecidas. Nos últimos anos, se implantou um modelo governamental de desenvolvimento econômico a qualquer custo. Então se expropriam índios para fazer hidrelétricas, se fazem vistas grossas à invasão de terras tradicionais por plantações de soja ou eucaliptos, etc. Há um pacto pela governabilidade que compromete o Governo Federal com o agronegócio e que leva a esta situação lamentável. No governo Lula  ocorreu também uma distribuição indiscriminada de “certidões de autorreconhecimento” sem a efetiva titulação. E essas certidões são uma coisa louca, o governo reconhece que eles se autorreconhecem! O autorreconhecimento significa, exatamente, a ausência de necessidade de aval externo. Quando o governo atesta este autorreconhecimento, temos uma grande contradição. E essa distribuição indiscriminada de certidões só serviu para criar expectativa nas comunidades, sem a contrapartida da garantia da terra. Uma irresponsabilidade. Enquanto isso, adotam-se políticas complementares, importantes, como distribuição de cestas básicas, construção de casas, eletrificação rural, etc., mas que desviam o foco da atenção do verdadeiro objetivo destas comunidades, que é a regularização fundiária.

Mas seria equivocado colocar tudo na conta dos governos mais recentes. Os governos Collor , Itamar  e Fernando Henrique  tampouco fizeram qualquer coisa pelas comunidades tradicionais. Collor e Itamar nada fizeram para regulamentar o artigo dos atos das disposições constitucionais transitórias para viabilizar a titulação das comunidades remanescentes de quilombos. E o governo FHC o fez de uma forma extremamente restritiva: as comunidades deveriam provar ocupação territorial em 1888 e 1988, o que chamávamos de “usucapião de um século”. O fato é que o Congresso Nacional — e esta, infelizmente, se tornou uma característica do sistema político brasileiro pós-1988 — permaneceu ocupado por velhas oligarquias interessadas na manutenção do status quo no meio rural. Eu acho que falta compromisso político do Estado nacional com os direitos das comunidades tradicionais. Deve haver uma política de Estado, não de governo.

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