Edição 450 | 11 Agosto 2014

A permanente construção da verdade pelo tempo

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Andriolli Costa e Luciano Gallas

“A Verdade, na História, é incessantemente reconstruída, enriquecida com novas perspectivas de apreensão de elementos da realidade e com novas possibilidades expressivas”, declara José D'Assunção Barros

“Vivemos uma época desconfiada em relação às grandes certezas e também em relação às perspectivas unilaterais. Compreende-se, hoje, que não existe uma verdade histórica única, acabada, inquestionável, mas sim várias possibilidades de possuir um conhecimento verdadeiro sobre a infinidade de aspectos que envolvem a vida humana”, afirma o historiador José D'Assunção Barros. “As diversas demandas que surgem a cada geração permitem que se desenvolvam novos pontos de vista, que se façam novas perguntas, que se tomem novas posições em torno de antigos ou novos problemas. A Verdade, na História, é incessantemente reconstruída, enriquecida com novas perspectivas de apreensão de elementos da realidade e com novas possibilidades expressivas”, complementa.

Nesta entrevista, concedida por e-mail à IHU On-Line, Barros analisa as relações entre verdade, memória e história, a relevância do presente para a investigação historiográfica e o tempo enquanto objeto central de interesse das reflexões historiográficas, elas próprias impactadas pelo tempo (e pelo lugar) em que foram produzidas. “A produção de memória — as lembranças construídas por um indivíduo, por exemplo, ou os mitos e tradições inventados coletivamente — sempre revelam algo sobre aqueles que os produziram, para muito além dos eventos aos quais pretensamente eles se referem”, avalia. Por fim, destaca que a memória, para além de tratar de aspectos do passado no presente, faz emergir aspectos sobre a verdade produzidos pela coletividade. “A Memória — independentemente daquilo sobre o qual se fala — é reveladora de traços constitutivos daqueles que produzem memória: fala-nos de seus modos de apreender o mundo, de seus recursos expressivos, de suas formas de sociabilidade, de sua cultura, das relações de poder que os envolvem”, argumenta.

José D'Assunção Barros possui doutorado e mestrado em História pela Universidade Federal Fluminense - UFF, graduação em História pela Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ e graduação em Música (Composição Musical) pela mesma instituição. É professor adjunto da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro - UFRRJ. Na área de História, tem atuado principalmente com temáticas ligadas à Historiografia, Teoria da História, Metodologia da História, História Cultural, História da Arte, Cinema-História. Na área de Música, tem desenvolvido pesquisas na área de Musicologia Histórica e História da Música. Publicou 15 livros e cerca de cem artigos, 22 dos quais em revistas internacionais. Entre os livros publicados, destacam-se O Campo da História - especialidades e abordagens (Petrópolis: Editora Vozes, 2004), O Projeto de Pesquisa em História (Petrópolis: Editora Vozes, 2005), A Construção Social da Cor (Petrópolis: Editora Vozes, 2009), Raízes da Música Brasileira (São Paulo: Jucitec, 2011) e Teoria da História, em cinco volumes (Petrópolis: Vozes, 2011), A Expansão da História (Petrópolis: Vozes, 2013) e O Tempo dos Historiadores (Petrópolis: Vozes, 2013).

Confira a entrevista.

 

IHU On-Line - O que a visão da História como “o estudo do homem no tempo (e no espaço)” diz sobre os atuais horizontes deste campo do conhecimento? Em que difere da visão da História como relato ou estudo do passado?

José D'Assunção Barros – A redefinição da História como “estudo dos homens no tempo e no espaço” tem permitido ampliar os horizontes do campo em pelo menos duas dimensões. De um lado, ao superar a antiga noção de que a História é somente um relato ou estudo do passado – o que é apenas parcialmente correto –, os historiadores que começaram a definir a História como um estudo do “tempo” tiveram sucesso em ampliar o campo de interesses dela até a contemporaneidade. Os historiadores de hoje estudam não apenas o passado distante ou recente, mas também o tempo presente. De igual maneira, conceber a história como um estudo dos homens no tempo, uma definição formulada pela primeira vez por Marc Bloch , permite chamar atenção não apenas para o fato de que os historiadores estudam o tempo, mas que também produzem seus estudos no tempo.

Por outro lado, há ainda a questão do espaço, ou do “lugar” em um sentido mais amplo. Tem-se aqui a compreensão intensificada de que qualquer objeto histórico deve ser pensado na sua conexão com um tempo e um lugar (ou espaço) específicos, e de que, adicionalmente, toda operação historiográfica também se dá em um espaço-tempo. Compreender que estas duas dimensões — o tempo e o espaço — são as instâncias fundamentais da História, sendo elas mesmas de certo modo históricas, completou um processo de humanização da História, de compreensão deste saber como uma forma de conhecimento feita pelos homens e sobre os homens.

 

IHU On-Line – O senhor afirma que, entre os objetos de interesse do historiador, passam a se incluir também as “temporalidades imaginárias da Memória ou da Ficção” e mesmo os “espaços imaginados”. Como é possível compreender estes elementos na pesquisa? Pode citar exemplos de trabalhos onde este universo imaginário foi contemplado?

José D'Assunção Barros – O espaço com o qual trabalha o historiador pode ser um espaço físico (e social), como é também o espaço do geógrafo. Entrementes, a noção de espaço e de sua assimilação pelo trabalho historiográfico pode levar a muito mais do que isto. Pensemos no espaço da ficção. Em um romance ou uma obra de literatura criativa, um determinado autor pode recriar o espaço, reproduzi-lo conforme os modelos por ele conhecidos ou mesmo repensá-lo em novos termos. Temos grandes obras, na literatura, nas artes visuais e no cinema, sobre cidades imaginárias, que não existem no mundo extratextual. Essas criações literárias e artísticas podem se tornar objeto de estudo para os historiadores, o que já é um primeiro aspecto da questão. Ao mesmo tempo, os historiadores podem perfeitamente estudar as marcas de uma realidade histórica ou do mundo vivido no espaço (e no tempo) criados pela imaginação humana. De igual maneira, a Memória é hoje um importante objeto de interesse para a História. O espaço e o tempo da Memória — individual ou coletiva — impõem certamente as suas próprias regras, limites e riquezas. O historiador também deve se empenhar em trabalhar com este espaço-tempo psicológico, imaginário, recriado pelos homens para além do espaço meramente físico.

 

IHU On-Line – De que forma a virtualidade dos espaços compartilhados e do tempo nos ambientes em rede pode ser capturada e compreendida pela história? 

José D'Assunção Barros – Ainda temos poucas pesquisas sobre o ciberespaço, mas este é um campo que está crescendo, e já se encontra em avançado estágio de formação uma nova modalidade historiográfica que poderia ser denominada História Digital. Esse novo campo historiográfico de possibilidades pode se relacionar de inúmeras maneiras com o mundo virtual, com as redes sociais, com as formas de comunicação instantânea. Por exemplo, não demorará para que os e-mails, os sites, as redes sociais e os chats sejam utilizados pelos historiadores como fontes tão importantes como quaisquer outras. Além disso, o mundo digital não oferece aos historiadores apenas um grande manancial de novas fontes, mas também uma infinidade de novos objetos. Por fim, não devemos esquecer que os recursos virtuais também já são empregados cada vez mais para a produção de novos tipos de textos historiográficos e para a conformação de novos instrumentos e recursos de pesquisa.

 

IHU On-Line – Como o rompimento com um paradigma do tempo levou a uma reestruturação dos objetos de pesquisa do historiador, abrindo espaço, por exemplo, para o estudo do presente?

José D'Assunção Barros – Os historiadores, nas últimas décadas, têm se interessado cada vez mais em compreender o tempo em toda a sua complexidade, não apenas aceitando o tempo como uma instância naturalizada. Historiadores como Reinhart Koselleck  e François Hartog , apenas para citar alguns dos mais destacados dos tempos recentes, têm se empenhado em oferecer à comunidade historiográfica um novo sistema conceitual e teórico para compreensão do tempo e de suas instâncias fundamentais: as temporalidades que denominamos passado, presente e futuro. Neste novo momento da reflexão historiográfica, o antigo modelo de tempo linear foi superado por novos modelos que chamam atenção para novos problemas: por exemplo, as relações entre o passado, o presente e o futuro. A ideia de um “tempo presente” como objeto para a pesquisa e reflexão historiográfica está também ligada à crescente consciência de que o passado e o futuro concretizam-se e interferem no presente de inúmeras maneiras, inclusive como campo de experiências e horizonte de expectativas, para relembrar duas noções bem estabelecidas por Koselleck. O Tempo Presente tornou-se, mais do que nunca, objeto de interesse direto para os historiadores.

 

IHU On-Line – A perspectiva da História como relato pressupõe a ideia de estabelecimento de uma verdade histórica. Como atualmente é vista a questão da verdade no campo da História?

José D'Assunção Barros – Vivemos uma época desconfiada em relação às grandes certezas, e também em relação às perspectivas unilaterais. Compreende-se, hoje, que não existe uma verdade histórica única, acabada, inquestionável, mas sim várias possibilidades de possuir um conhecimento verdadeiro sobre a infinidade de aspectos que envolvem a vida humana. As diversas demandas que surgem a cada geração permitem que se desenvolvam novos pontos de vista, que se façam novas perguntas, que se tomem novas posições em torno de antigos ou novos problemas. A Verdade, na História, é incessantemente reconstruída, enriquecida com novas perspectivas de apreensão de elementos da realidade e com novas possibilidades expressivas. Existem também setores na historiografia que negam a possibilidade de atingir qualquer verdade histórica (por vezes os chamamos de tendências pós-modernas). Todavia, acredito que ainda seja importante demarcar a distância entre uma História que não constrói suas formulações no vazio, e sim a partir de conexões com uma realidade que deixou seus traços nas fontes, e uma Literatura que, esta sim, é o território possível da criatividade absoluta. A História, a meu ver, ainda pode almejar a produção de um conhecimento verdadeiro, ainda que multidiversificado. Sustento que a História, para a produção deste conhecimento verdadeiro, trabalha ainda com as categorias da veracidade e da veridicidade. Não é de modo nenhum uma ficção, embora possa se valer da ficção em suas possibilidades expressivas.

 

IHU On-Line – A memória individual é parte fundamental dos estudos em história oral. No entanto, é frequentemente vinculada a uma instância criativa ou forma de produção simbólica. Se a memória reconstrói constantemente no presente as lembranças do passado a partir da experiência, como esta se insere na historiografia? 

José D'Assunção Barros – Devemos compreender que, ao trabalhar com a memória individual através da modalidade da História Oral, o historiador não está necessariamente interessado em recuperar acontecimentos “verdadeiros”, que se deram para além dos indivíduos que produzem a memória. Pode se dar que a Memória — individual ou coletiva — seja acessada pelos historiadores, de fato, com vistas à busca de informações sobre as quais possam se desenvolver novas reflexões historiográficas. Entretanto, a própria memória produzida é ela mesma um objeto importante para o historiador. De igual maneira, a produção de memória — as lembranças construídas por um indivíduo, por exemplo, ou os mitos e tradições inventados coletivamente — sempre revelam algo sobre aqueles que os produziram, para muito além dos eventos aos quais pretensamente eles se referem. A memória fala não apenas de acontecimentos que se deram no passado ou foram distorcidos no presente. Fala também de aspectos verdadeiros, pertinentes aos indivíduos e coletividades que produzem a memória.

A Memória — independentemente daquilo sobre o qual se fala — é reveladora de traços constitutivos daqueles que produzem memória: fala-nos de seus modos de apreender o mundo, de seus recursos expressivos, de suas formas de sociabilidade, de sua cultura, das relações de poder que os envolvem. Através da memória de um indivíduo, um historiador não estuda apenas aquilo de que ele se lembra, mas estuda também o próprio indivíduo e seu modo específico de lembrar ou de reconstruir o que julga ser o conjunto de suas lembranças. Sobretudo, ao estudar a memória construída por um indivíduo, o historiador estuda a sociedade dentro da qual ele se insere.

 

IHU On-Line – Neste sentido, que relações se pode traçar entre História, Memória e Verdade?  

José D'Assunção Barros – A História surgiu sob o signo da intenção de verdade. Não há historiador, ou se houver ele estará deslocado em relação ao próprio tipo de saber que pretensamente produz, que não almeje construir algum tipo de conhecimento verdadeiro com a sua operação historiográfica. Na Antiguidade, um grande espaço era dado à Memória em termos de produção do conhecimento histórico. Nos primeiros tempos da Historiografia Científica, a forte e emblemática noção de “documento histórico” — particularmente no seu suporte escrito — relegou para segundo plano o papel da Memória provocada através de entrevista e coleta de depoimentos. Os historiadores, por assim dizer, tornaram-se desconfiados em relação ao papel da Memória e das fontes orais na operação historiográfica.

Nas últimas décadas do século XX, contudo, o surgimento de uma vigorosa História Oral contribuiu para repensar as relações entre Memória e História. As técnicas de crítica e apreensão da memória — tão importantes para um setor da historiografia de hoje como havia sido a emergência de sofisticadas técnicas de crítica documental nos primórdios da historiografia científica — permitiram uma nova equação entre estes três termos: História, Memória e Verdade. As três noções, aliás, inclusive a própria noção de História, precisam ser compreendidas historicamente.

 

IHU On-Line – Deseja acrescentar mais alguma coisa?   

José D'Assunção Barros – Quero acrescentar que as relações entre Verdade e História continuam sendo uma temática bastante atual. Acredito que sempre serão, pois, ao mesmo tempo em que não existe História sem “intenções de verdade”, sabemos também hoje que é muito questionável se pensar em termos de verdades absolutas. A História vive desta relação ao mesmo tempo ambígua e rica com a Verdade. Ao ser convidado para fazer uma conferência sobre o assunto no Encontro da ANPUH do Rio Grande do Sul, comecei a escrever um texto  que acabou extrapolando os limites de uma conferência, em vista da riqueza de aspectos que a questão envolve. Presentemente, motivado pela tarefa que me foi atribuída, estou começando a transformar o conjunto de minhas reflexões sobre o assunto em um livro a ser publicado futuramente. Talvez se chame, simplesmente, Verdade e História, um título que já foi utilizado por diversos autores, mas que permanece sempre atual.

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