Edição 450 | 11 Agosto 2014

Diálogos e enfrentamentos – O campo de atuação do historiador

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Andriolli Costa

Rodrigo Patto Sá Motta explora um panorama geral dos embates contemporâneos para a consolidação e regulamentação do profissional em História

Como campo de atuação, a História remonta ao período clássico, remetendo aos tempos de Heródoto de Halicarnasso. Apenas no século XIX, no entanto, ela passa a ganhar ares de disciplina científica. No Brasil, os primeiros cursos superiores de História surgem em 1934, na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade de São Paulo - USP, e em 1935 na Universidade do Distrito Federal – UDF. De início, no entanto, todos estes cursos eram vinculados à Geografia, sendo que apenas em setembro de 1955 a Lei nº 2.594 estabelece o desmembramento dos cursos de graduação das duas disciplinas. 

Nesta rápida contextualização, que condensa em um parágrafo vários séculos de construção do campo de atuação do historiador, é possível vislumbrar os diversos enfrentamentos e tensionamentos necessários para a formação deste campo. “Sabemos que grandes historiadores nunca tiveram formação específica na área, e nem por isso os consideramos menos”, esclarece Rodrigo Patto Sá Motta, presidente da Associação Nacional de História – ANPUH. “Porém, a questão é que hoje temos um amplo e competente sistema universitário, e precisamos valorizar a formação profissional.”

Em entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line, Motta deixa claro, no entanto, que estes enfrentamentos buscam muito mais o diálogo do que a rigidez. Ele aborda as negociações para a aprovação do Projeto de Lei que regulamenta a profissão do historiador, explora a relação com a História da Arte, História das Ciências e outros campos relacionados e trata da importância dos mestrados acadêmicos e profissionais. 

Centra-se, ainda, nos principais desafios para o historiador no contexto brasileiro: aperfeiçoar a pós-graduação e, especialmente, a graduação; equilibrar a produção com a divulgação de conhecimento; internacionalizar as redes de cooperação e, também, melhorar “as condições de trabalho para os docentes do ensino básico, para elevar a qualidade do nosso sistema escolar”. 

Rodrigo Patto Sá Motta é graduado em História pela Universidade Federal de Minas Gerais, onde também obteve o título de mestre nesta área. Na Universidade de São Paulo, realizou o doutorado em História Econômica, e na University of Mariland, nos Estados Unidos, obteve o título de pós-doutor. Atualmente, é professor da UFMG e é presidente da Associação Nacional de História - ANPUH. Autor de inúmeras obras, dentre as quais destacamos Em guarda contra o perigo vermelho: o anticomunismo no Brasil (São Paulo: Editora Perspectiva/Fapesp, 2002), Jango e o golpe de 1964 na caricatura (Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2006) e Introdução à história dos partidos políticos brasileiros (Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2008). Este ano ele lançou dois outros livros: A ditadura que mudou o Brasil (Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2014), organizado juntamente com Daniel Aarão Reis e Marcelo Ridenti, e As universidades e o regime militar (Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2014). 

Confira a entrevista.

 

IHU On-Line – O que caracteriza um historiador? Seria mais que o domínio das metodologias históricas? 

Rodrigo Patto Sá Motta – O que distingue o historiador é o estudo das sociedades humanas (em suas múltiplas dimensões) tendo como referência o tempo, com o propósito de perceber o jogo entre mudanças e continuidades que caracteriza a história dos seres humanos. Os historiadores profissionais devem dominar as diferentes metodologias e aparatos teóricos desenvolvidos pela nossa área do saber ao longo dos séculos, o que permite a realização de um trabalho com maior qualidade. Antes da existência de cursos regulares, os historiadores se formavam sozinhos, é claro, tomando como referência o trabalho dos grandes nomes que inauguraram esse campo do saber. 

Com o advento da formação universitária, que, a propósito, é relativamente recente no Brasil, abriu-se caminho para a profissionalização e o treinamento sistemático de novos historiadores, atendendo à demanda do mercado de trabalho. Sabemos que grandes historiadores nunca tiveram formação específica na área, e nem por isso os consideramos menos. Porém, a questão é que hoje temos um amplo e competente sistema universitário, e precisamos valorizar a formação profissional.

 

IHU On-Line - Desde 2009  tramitam no Senado propostas de projetos de lei para a regulamentação da profissão de Historiador. De lá para cá, foram diversas alterações e críticas feitas por entidades como a Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência ou a Sociedade Brasileira de História da Educação. Qual a atual situação das propostas? O que mudou desde sua concepção original? 

Rodrigo Patto Sá Motta – A ANPUH negociou com outras entidades interessadas (principalmente a Sociedade Brasileira de História da Ciência - SBHC e a Sociedade Brasileira de História da Educação – SBHE) algumas mudanças no projeto de lei que tramita no Congresso, para não deixar margem a interpretações equivocadas. Fizemos três intervenções mais importantes, todas no sentido de ampliar o escopo dos que serão considerados historiadores com base na lei. Primeiramente, tal como em outras leis profissionais semelhantes, incluiu-se um inciso para contemplar pessoas que trabalham como historiadores há pelo menos cinco anos. Pelo que sabemos da realidade do mercado de trabalho, essa mudança vai contemplar principalmente professores do ensino básico que lecionam História sem a devida formação universitária. 

Outra novidade importante foi incluir as pessoas com títulos de Mestrado ou Doutorado obtidos em Programas de Pós-Graduação com área de concentração ligada a outro campo do saber, mas que tenham linhas de pesquisa regulares dedicadas à História (da Educação, da Ciência, da Arte, etc.). Assim, por exemplo, quem fizer uma tese sobre História da Educação em um curso da área de Educação será considerado historiador também. Com isso, ficam preservados — e valorizados — os espaços interdisciplinares que aproximam a História de outros campos do saber. Finalmente, para não deixar dúvidas que a autonomia das Universidades deve ser preservada, propusemos retirar do projeto de lei a menção ao ensino superior como atribuição dos historiadores. Assim, ficará mantido o quadro atual, em que o perfil dos docentes para atuação no ensino superior é definido pelas instituições universitárias (Câmaras, colegiados, bancas).

 

IHU On-Line -  Abrir o campo e escapar ao corporativismo foi uma necessidade da própria sociedade contemporânea ou um reflexo das demandas corporativas? 

Rodrigo Patto Sá Motta - As mudanças no projeto que o relator (deputado Roberto Policarpo) incluiu foram sugeridas pela ANPUH, SBHC e SBHE. A razão principal para termos negociado as mudanças no PL foi o entendimento de que era preciso aperfeiçoar o projeto original, para adequá-lo melhor às necessidades da sociedade. Do ponto de vista político foi conveniente também, porque tornou mais fácil a tramitação do projeto no Congresso. Porém, o mais significativo é que construímos um projeto mais consistente e capaz de atender à necessidade de regulamentação profissional de maneira mais adequada.

 

IHU On-Line – Dentro desta perspectiva interdisciplinar, quais os benefícios de uma formação continuada em História? Seria mais vantajoso buscar o diálogo com outras disciplinas?

Rodrigo Patto Sá Motta - Eu penso que as pessoas vocacionadas para a História deveriam fazer a graduação na própria disciplina, até porque a preocupação interdisciplinar já foi incorporada nos cursos de graduação. Em outras palavras, você pode ter uma formação apenas em cursos de História (graduação, mestrado e doutorado) e mesmo assim manter intenso diálogo com outras áreas do saber. Por outro lado, acredito que o local mais adequado para praticar a inter e a transdisciplinaridade é a pós-graduação, quando as pessoas estão um pouco mais maduras. Os programas de pós-graduação em História são em geral muito abertos ao diálogo interdisciplinar, mas a depender do campo de pesquisa os alunos podem ganhar fazendo cursos em outras áreas também. Vários cursos de pós-graduação em outras áreas têm linhas de pesquisa dedicadas à História, o que é estimulante e muito auspicioso. Exatamente por essa razão propusemos incluir os profissionais formados nesses cursos no escopo da lei de regulamentação do historiador.

 

IHU On-Line – Pensando na História como campo de conhecimento, o que é mais importante? Mestrados acadêmicos ou profissionais? 

Rodrigo Patto Sá Motta – São dois tipos diferentes de formação, com peculiaridades próprias. O mestrado profissional visa formar profissionais para o mercado de trabalho, com um viés mais técnico, enquanto o acadêmico tem a vocação de formar pesquisadores e docentes universitários. Acho mais importante o último, já que tem efeito multiplicador, ou seja, ele ajuda a preparar pessoas que vão produzir novos conhecimentos e também vão formar outros profissionais.

 

IHU On-Line – Atualmente, tendo em vista tanto o campo da pesquisa quanto do ensino, quais você diria serem os principais desafios do historiador? 

Rodrigo Patto Sá Motta – Vejo muitos desafios, mas vou mencionar alguns que considero mais importantes: 

- Aperfeiçoar e melhorar a qualidade dos cursos de graduação e pós-graduação, tendo o cuidado de evitar desequilíbrios, especialmente o risco de investir demasiado na pós-graduação e esquecer que a graduação é a base. 

- Investir mais na “internacionalização” da historiografia brasileira, ampliando as redes de cooperação internacional e intensificando as pesquisas em história comparada (ou conectada). 

- Equilibrar de maneira adequada a necessidade de produzir conhecimentos novos com a demanda por divulgar esse saber, fazendo-o chegar à sociedade e ao sistema escolar básico sem perda de qualidade. 

- Conseguir que as autoridades melhorem as condições de trabalho para os docentes do ensino básico, para elevar a qualidade do nosso sistema escolar (não adianta colocar computadores nas escolas se os professores continuam a receber salários miseráveis).

 

Leia mais...

- Repressão e modernização: impactos do regime militar nas universidades. Entrevista com Rodrigo Patto Sá Motta publicada na IHU On-Line. 

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