Edição 448 | 28 Julho 2014

Os estádios da Copa e os novos desafios à economia brasileira

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Luciano Gallas

Para o cientista político Antonio Lassance, a Copa do Mundo despertou a oportunidade de mudanças na gestão do futebol brasileiro, voltadas à repopularização do esporte

“Estádios não melhoram nem pioram a situação de um país. Podem abrir novas oportunidades, ou agravar problemas que já existiam. Os novos estádios são importantes, sobretudo, para o próprio futebol, não só enquanto modalidade esportiva e manifestação cultural que o brasileiro tanto preza, mas como atividade econômica em sentido amplo — que vai desde os clubes até o sujeito que tem uma lojinha de artigos esportivos ou a pessoa da barraquinha de cerveja e cachorro-quente da esquina”, afirma o cientista político Antonio Lassance.

“Essa Copa e esses estádios precisam ser um divisor de águas nesse aspecto da gestão do próprio futebol. No Brasil, o futebol se tornou um esporte capturado pelas tevês, praticamente um monopólio de uma única rede de televisão. Criou-se uma cultura de que assistir aos jogos pela tevê é melhor do que ir aos estádios. Eu pergunto: a quem interessa essa ideia? Os clubes acertam seus contratos anuais com a tal emissora e depois viram as costas para o público dos estádios, inclusive para a violência dos estádios. Os estádios agora viraram um bom problema: alguns clubes e os governos têm de justificar o gasto implementando políticas que se destinem a novamente popularizar o futebol, no sentido de trazer as pessoas de volta aos estádios”, continua o pesquisador.

Nesta entrevista, concedida por e-mail à IHU On-Line, no dia 26 de junho, Lassance lembra que os 8 bilhões de reais oficialmente gastos com a construção de estádios para a Copa de 2014 representam uma pequeníssima parte do total de recursos destinados anualmente pelo país ao pagamento de juros da dívida pública. Somente em 2013, o Brasil destinou 248 bilhões de reais com juros. Conforme o pesquisador, cada aumento percentual de um ponto (1%) na taxa de juros anunciado pelo Comitê de Política Monetária custa 20 bilhões de reais aos brasileiros a cada ano, ou seja, duas vezes e meia o total gasto com os estádios da Copa.

“A dívida pública é necessária para alavancar investimentos. Mas a taxa de juros, se em doses muito altas, transforma o remédio em veneno. É como um freio de mão que impede que o país ganhe velocidade, travando seu crescimento”, aponta Lassance. O cientista político se mostrou favorável ao fato de a Confederação Sul-Americana de Futebol - Conmebol ter indicado, ainda em 2003, o Brasil como candidato único na América do Sul à sede da Copa do Mundo da FIFA 2014. “Agora que os estádios estão construídos, o Brasil tem que se candidatar mais vezes. Temos que trazer mais Copas do Mundo para cá, a Copa América, e aproveitar para repopularizar o futebol, trazendo mais gente para os estádios.”

Antonio Ernesto Lassance de Albuquerque Júnior é pesquisador do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada – IPEA, na Diretoria de Estudos e Políticas do Estado, das Instituições e da Democracia, e professor do programa de formação de gestores federais da Escola Nacional de Administração Pública - ENAP. É doutor e mestre em Ciência Política pela Universidade de Brasília – UnB, especialista em Políticas Públicas e graduado em História pela mesma instituição, além de ter MBA em Comunicação Organizacional pela Universidade de São Paulo – USP. Foi presidente do Conselho de Administração da Empresa Brasileira de Comunicação - Radiobrás, atualmente Empresa Brasil de Comunicação - EBC.

Confira a entrevista.

 

IHU On-Line - Matéria do canal por assinatura Sportv veiculada em 19-06 afirmava, sem citar uma fonte específica, que a Copa do Mundo vai render um lucro de 700 milhões de reais à cidade de São Paulo. Na sua avaliação, este cálculo está correto? Quem exatamente vai lucrar estes 700 milhões?

Antonio Lassance - A forma mais segura para este cálculo tão específico (do impacto sobre uma cidade) é feita após o evento. A maneira mais simples é comparar o volume de negócios movimentados na cidade entre junho e julho deste ano e compará-lo com o mesmo período do ano passado. Para analisar quem lucrou mais, é preciso olhar os dados por setor de atividade econômica. Há coisas muito difíceis de estimar com antecedência. Por exemplo, em Brasília, a Torre de TV, que é uma região de quiosques, comidas típicas e artesanato, se tornou um dos "points" mais importantes da Copa. Os colombianos foram os primeiros a descobrir que lá a comida é barata, boa e próxima do estádio, melhor do que os shoppings. Pelo alto preço dos hotéis nas regiões centrais, muitos foram para localidades mais afastadas. Ninguém podia prever tais coisas. Outra surpresa foi o movimento de pessoas que vieram de carro, de países até muito distantes.

Tudo isso gera gastos que mesmo os mais acostumados não conseguem estimar. Por isso, tanto os estudos das consultorias precisarão ser depois checados quanto é preciso ter cuidado com aquele cálculo tosco, que a imprensa tradicional usou e divulgou, de que alguns estádios demorariam "mil anos" para ter o retorno dos investimentos. Eles dividiram o valor dos estádios pelo preço do ingresso para o jogo — é de uma estupidez tremenda, tão grande que acredito que seja mais má-fé do que falta de discernimento. O grosso do dinheiro movimentado por uma Copa não é aquele que entra no estádio. É o que é gasto fora dele.

 

IHU On-Line - Em termos nacionais, a Copa gera lucros econômicos? Qual é o impacto efetivo do evento para a economia do país?

Antonio Lassance - Há dois estudos de referência sobre o assunto: o da consultoria Ernest & Young e o da Fundação Instituto de Pesquisas Econômicas (Fipe). O da Fipe, mais recente, estima cerca de 30 bilhões de reais de retorno para o país e mais de um milhão de empregos gerados, boa parte deles permanentes. Só a Copa responde por 15% dos 5 milhões de empregos formais gerados no período da presidência Dilma Rousseff, até agora. E a Copa do Mundo tende a superar o gasto médio havido durante a Copa das Confederações, que era de quase 5 mil reais feitos por turistas estrangeiros no Brasil, e de mais de mil reais entre os turistas brasileiros. Mas eu diria que há um retorno ainda mais difícil de ser estimado, que é para a imagem do Brasil no exterior. Cada estrangeiro bem recebido e feliz de estar aqui, maravilhado com o país e nosso povo, se torna alguém mais disposto a voltar outras vezes e um grande divulgador do que temos de melhor.

Isso faz uma grande diferença para um país como o Brasil, que tem um potencial turístico imenso ainda pouco explorado. Nosso país recebe quase o mesmo número de turistas estrangeiros que a Argentina, que é um país menor, e até menos do que algumas cidades de outros países que são destinos internacionais mais conhecidos. A Espanha, em uma única temporada, recebe mais turistas do que o Brasil recebe durante um ano inteiro. Roma recebe mais turistas estrangeiros que o Brasil inteiro. Há um ganho de confiança também. Se tudo der certo, se reforça a imagem de que o país dá conta do recado, de que as coisas funcionam, de que vale a pena vir outras vezes e estreitar contatos e parcerias. A Agência Brasileira de Promoção de Exportações e Investimentos (Apex-Brasil) tem feito rodadas de negócios com investidores, aproveitando a Copa, que devem render mais de 6 bilhões de dólares em investimentos nas mais diversas áreas. Mais do que o ganho financeiro, a Copa significa a abertura de oportunidades para os brasileiros nos mais diversos campos — materiais e imateriais, econômicos, sociais, políticos e culturais.

 

IHU On-Line - Neste sentido, a realização da Copa e os gastos de 8 bilhões de reais na construção de estádios são bons investimentos para a economia de um país emergente como o Brasil?

Antonio Lassance - Eu insisto sempre que não podemos nem demonizar nem endeusar os estádios. Estádios não melhoram nem pioram a situação de um país. Podem abrir novas oportunidades, ou agravar problemas que já existiam. Os novos estádios são importantes, sobretudo, para o próprio futebol, não só enquanto modalidade esportiva e manifestação cultural que o brasileiro tanto preza, mas como atividade econômica em sentido amplo — que vai desde os clubes até o sujeito que tem uma lojinha de artigos esportivos ou a pessoa da barraquinha de cerveja e cachorro-quente da esquina. O Campeonato Brasileiro, série A, tem menos público pagante do que a série B na Alemanha. Isso é inadmissível. Essa Copa e esses estádios precisam ser um divisor de águas nesse aspecto da gestão do próprio futebol. No Brasil, o futebol se tornou um esporte capturado pelas tevês, praticamente um monopólio de uma única rede de televisão. Criou-se uma cultura de que assistir aos jogos pela tevê é melhor do que ir aos estádios. Eu pergunto: a quem interessa essa ideia? Os clubes acertam seus contratos anuais com a tal emissora e depois viram as costas para o público dos estádios, inclusive para a violência dos estádios. Os estádios agora viraram um bom problema: alguns clubes e os governos têm de justificar o gasto implementando políticas que se destinem a novamente popularizar o futebol, no sentido de trazer as pessoas de volta aos estádios. 

 

IHU On-Line - A Copa de 2014 atendeu à promessa de que empresas e organizações privadas seriam parceiras na realização do evento? A distribuição verificada dos investimentos entre recursos públicos e recursos privados foi a melhor possível?

Antonio Lassance - Creio que ainda tem mais dinheiro público do que deveria. Deveria ter mais estádios privados do que há. Mas o fato é que, sem a entrada efetiva do setor público, dificilmente a Copa no Brasil se viabilizaria. Tem sido assim também em outros países. O caso de Londres, nas Olimpíadas, também demonstrou que o setor público é fundamental. Aliás, se fosse esperar pela iniciativa privada, o Brasil não teria Itaipu, não teria aeroportos, não teria metrô, não estaria construindo Belo Monte. 

 

IHU On-Line - Houve mudanças estruturais ou simbólicas no Brasil decorridas da organização da Copa?

Antonio Lassance - A Copa mostrou que quem apostou contra o Brasil, perdeu. Há uma verdadeira síndrome de se falar mal do Brasil. Alguns até fantasiam que isso tem a ver com espírito crítico. Espírito crítico é apontar erros, lutar por mudanças e oferecer alternativas que aproveitem o que há de melhor no país, que é muita coisa. O que se viu, em relação à Copa, não foi isso, foi torcida contra pelo contra. Foi torcida mesquinha para que, ao dar errado, alguém saísse mal na foto. E o pior é que isso não foi feito esclarecendo, mas distorcendo dados, promovendo manipulações, deseducando. Por razões torpes, esqueceram que a imagem do país é um bem público, tanto quanto um orelhão, um banco de praça. Houve uma depredação simbólica do Brasil, e não foi feita só por mascarados. 

 

IHU On-Line - Explique a efetiva dimensão dos gastos para a realização da Copa no Brasil diante dos pagamentos da dívida pública feitos pelo país.

Antonio Lassance - O país gastou cerca de 8 bilhões de reais em estádios. Perto de metade desse investimento é do setor privado. Três das 12 arenas são exclusivamente privadas: a do Corinthians (São Paulo), a do Internacional (Porto Alegre) e a do Atlético Paranaense (Curitiba). Outras quatro foram construídas e serão gerenciadas em regime de parceria público-privada com os governos estaduais (Mineirão, em Belo Horizonte; Fonte Nova, em Salvador; Castelão, em Fortaleza; e a de Recife). Duas outras, Natal e Rio de Janeiro, terão regime de concessão. Só o Mané Garrincha, em Brasília, é totalmente público — ainda assim, o Distrito Federal é a unidade da federação que, proporcionalmente, mais investe em saúde e educação. Pois bem, os 8 bilhões de reais colocados à disposição pelo governo federal são empréstimos do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social - BNDES, ou seja, serão devolvidos aos cofres públicos. Por outro lado, o Brasil gastou, em 2013, 248 bilhões de reais com o pagamento de juros, segundo dados do Banco Central. Dividindo esse valor pelos 365 dias do ano, pagamos mais de 679 milhões de reais por dia. Ou seja, dá para construir um estádio do Mineirão por dia. A cada dois dias de juros da dívida, pagamos mais de um Maracanã.

 

IHU On-Line - Qual é o custo para os brasileiros de cada aumento percentual da taxa de juros?

Antonio Lassance - Cada 1% de aumento na taxa de juros custa 20 bilhões de reais aos brasileiros, por ano.

 

IHU On-Line - Qual é a relação entre dívida pública, taxa de juros e desigualdade?

Antonio Lassance - O investimento e o custeio dos serviços públicos são essenciais para reduzir a desigualdade e para aumentar nossas chances de desenvolvimento. A dívida pública é necessária para se alavancar investimentos. Mas a taxa de juros, se em doses muito altas, transforma o remédio em veneno. É como um freio de mão que impede que o país ganhe velocidade, travando seu crescimento. Sabemos que baixo crescimento e a ausência de mecanismos redistributivos efetivos são o fermento da desigualdade. É uma arma econômica de destruição em massa.

 

IHU On-Line - O Brasil acertou ao receber a Copa do Mundo de 2014? 

Antonio Lassance - Sim, acertou. E digo mais: agora que os estádios estão construídos, o Brasil tem que se candidatar mais vezes. Temos que trazer mais Copas do Mundo para cá, a Copa América, e aproveitar para repopularizar o futebol, trazendo mais gente para os estádios.

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