Edição 447 | 30 Junho 2014

Jornalismo, compartilhamento e credibilidade no contexto pós-industrial

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Andriolli Costa / Tradução: Andriolli Costa

Para Ramón Salaverría, os meios tradicionais têm muito a aprender com os meios nativos digitais, com o desafio de não se descaracterizarem, mantendo seu prestígio informativo

Em maio deste ano, o Buzzfeed, site especializado em conteúdo viral, vazou um relatório de inovação produzido pelo The New York Times avaliando as perspectivas do jornal frente às novas mídias. O relatório aponta, entre outras informações, que o Times pratica o “melhor jornalismo do mundo”, mas seus concorrentes o superam em conteúdo compartilhável e engajamento. Dados do próprio estudo mostram que, enquanto o site do NYT possui cerca de 30 milhões de visitantes únicos por mês, o próprio Buzzfeed soma mais do que o dobro. Já o Huffington Post, referência entre os chamados meios “nativos digitais”, chega a 100 milhões de acessos ao mês.

Vários são os motivos para a boa performance destes últimos. As notícias são frequentemente estruturadas em um modelo mais informal, privilegiando conteúdo de interesse humano, recorrendo à emoção e à sensibilidade. As chamadas são normalmente superlativas, histórias edificantes que vão “mudar sua vida”, ou com a já clássica clickbait “você não vai acreditar no que esta pessoa fez”. Em entrevista concedida por telefone à IHU On-Line, o pesquisador Ramón Salaverría, referência mundial em jornalismo na internet, apoia a iniciativa do jornal.

“Não significa que o New York Times tenha que se tornar o Buzzfeed, mas que algumas peculiaridades do Buzzfeed podem ser aproveitadas pelo NYT”, defende. Para Salaverría, os meios tradicionais têm muito a aprender com os nativos digitais, especialmente no que diz respeito aos formatos e à relação com a audiência. Afinal, estes são “muito mais ágeis e adaptativos à mudança das formas de acesso e de consumo informativo dos usuários na internet”. Nesta entrevista, o pesquisador trata ainda da mudança do conceito de notícia no ambiente web, fala da importância da credibilidade independente do meio em questão e explora as perspectivas de um “jornalismo líquido” como manifestação do pós-jornalismo.

Ramón Salaverría possui graduação e doutorado em Jornalismo pela Universidade de Navarra - Unav, na Espanha. Atualmente é professor titular da Faculdade de Comunicação da mesma universidade, além de Diretor do Departamento de Projetos Jornalísticos. Um dos maiores especialistas em webjornalismo do mundo, é professor convidado em diversas universidades em todo o mundo. Entre seus livros, destacamos: Periodismo integrado: convergencia de medios y reorganización de redacciones (Barcelona: Editorial Sol 90, 2008), Redacción periodística en Internet (Pamplona: Eunsa, 2005) e Manual de redacción ciberperiodística (Barcelona: Editorial Ariel, 2003).

Confira a entrevista.

IHU On-Line – Você teve contato com o relatório Jornalismo pós-industrial produzido pelo Tow Center, de Columbia? Acredita que as observações feitas no relatório dão conta dos dilemas que o jornalismo vive em nível mundial?
Ramón Salaverría –
Sim. Penso que é uma boa interpretação para alguns problemas que atualmente afetam o jornalismo internacional. De início, o próprio título do relatório é bem acertado porque, basicamente, aborda uma alteração no processo de produção da informação. Isso é algo que não é considerado em muitas ocasiões, mas neste relatório se coloca de maneira destacada como fator essencial das mudanças em curso. Concordo bastante com esta visão.

O principal não é que os hábitos de consumo estejam mudando ou nem sequer que as próprias tecnologias de produção e de função informativa estejam passando por uma evolução tão rápida. O fundamental é que está mudando todo o processo de apropriação da informação por parte da sociedade contemporânea. Nesse sentido, penso que uma boa maneira de denominar esta nova situação é “jornalismo pós-industrial”, devido aos novos processos de produção e difusão de conteúdos informativos.

IHU On-Line – No relatório de estratégia digital do The New York Times , vazado há algumas semanas, existem apontamentos que indicam a necessidade de buscar a aproximação com a lógica do compartilhamento nas redes sociais. Diversos jornais brasileiros já têm seguido o modelo Buzzfeed  ou Huffington Post  de produção de conteúdo: galeria de GIFs animados, listas e histórias edificantes que vão “mudar sua vida” — especialmente com a chegada das versões em português desses sites . Render-se à estrutura dos blogs e redes sociais é a melhor alternativa para o jornalismo na internet?
Ramón Salaverría –
No relatório, o New York Times efetivamente coloca estes sites nativos digitais como referências de uma nova forma de consumo de informação que seriam oportunas ao NYT, mas não para que todo o jornal adote esta estrutura e modelo de composição informativa. Na verdade, me parece que a proposta é aproveitar tudo que seja útil e eficiente desses modelos, ao mesmo tempo preservando alguns valores e características de conteúdos que esses meios nativos digitais não tenham. Não significa que o New York Times tenha que se tornar o Buzzfeed, mas que algumas peculiaridades do Buzzfeed podem ser aproveitadas pelo NYT.

Nesse sentido, penso que muitos meios que vêm de uma trajetória ou tradição analógica, e que estão acostumados com um tipo de edição e de relacionamento com a audiência muito determinadas, têm muito a aprender com os meios nativos digitais — os quais são muito mais ágeis e adaptativos à mudança das formas de acesso e de consumo informativo dos usuários na internet. As redes sociais e os meios nativos digitais nos mostram que há formas de apresentar e distribuir a informação que permite multiplicar a influência, o acesso e a importância dessas notícias. Parece-me que o grande desafio, para os meios tradicionais, é tratar de manter seu prestígio informativo e suas características de fonte principal de informação e, ao mesmo tempo, adaptar-se a modelos muito mais apropriados as formas de consumir a informação por parte dos usuários da internet.

IHU On-Line – Dentro dessa lógica, como evitar o sensacionalismo, visto que conteúdos com essas características sempre atraíram público e são, portanto, facilmente convertíveis em pageviews e compartilhamentos?
Ramón Salaverría –
Penso que conteúdo e forma são duas questões distintas. Obviamente que é preciso combiná-las, mas há características formais dos meios nativos digitais que podem ser aproveitadas para fazer um tipo de jornalismo absolutamente fiel às características do conteúdo de máxima qualidade. A questão é saber adaptar-se aos modelos de consumo informativo, às linguagens, aos ritmos, aos dispositivos que estão demandando os usuários da informação nas redes digitais, mas colocando essas características a serviço de uma informação compreendida como de absoluta qualidade. Nesse sentido, penso que pode haver uma informação que apele ao interesse das pessoas sem necessariamente cair em um jornalismo sensacionalista. 

IHU On-Line – Ainda que o resultado para fins de compartilhamento seja alto, por outro lado há ainda muitas respostas negativas de usuários que simplesmente não reconhecem o que está sendo publicado como notícia. Se o leitor não reconhece como tal, ainda é notícia?
Ramón Salaverría –
Penso que algo que está sendo revisto e revisitado é o próprio conceito de notícia. No âmbito do jornalismo, o termo notícia se refere, classicamente, a dois sentidos: ao acontecimento informativo, como em “ocorreu uma notícia”, e ao relato informativo, o gênero jornalístico, a notícia que se escreve sobre determinado acontecimento. Do meu ponto de vista, essas duas concepções de notícia estão sendo revisitadas no jornalismo contemporâneo.

Por um lado, estamos assistindo a uma revisão de conceito de acontecimento informativo, porque as novas coordenadas temporais e espaciais que aportam na internet fazem com que esse conceito de informação seja modificado. Vemos isso claramente, por exemplo, nas redes sociais. Hoje, para pequenos grupos de amigos, um acontecimento ocorrido nessa esfera limitada será notícia. Uma notícia reduzida a um grupo limitado de pessoas com algum tipo de vínculo entre si. Desse ponto de vista, essas pessoas atuam diante deste acontecimento noticioso como atuariam diante de notícias tradicionais.

É como no caso do nascimento de um bebê; há toda uma série de pessoas — familiares, conhecidos, amigos — que, diante desta notícia, atuam de determinada maneira e utilizam os meios digitais para informar-se e responder a ela. Por outro lado, da mesma maneira que o conceito de notícia pode ser reduzido a um nível menor, também podem ser expandido a um nível macro. Os usuários de internet estão acostumados a conviver em um contexto internacional, onde não há barreiras espaciais. Portanto, o que acontece em um país muito distante pode ser bastante relevante para mim — caso eu esteja interessado.

O conceito de acontecimento noticioso experimentou uma amplificação no âmbito da internet, mas ao mesmo tempo se produz uma reconfiguração do conceito de notícia como relato, como gênero jornalístico. A notícia tradicional, dos meios impressos, é baseada na lógica da pirâmide invertida, com características formais, com um tipo de tamanho, de titulação, etc. Mas no âmbito da internet o relato noticioso se multiplica. E como se multiplica? Por meio da hipertextualidade; da multimidialidade — isto é, a possibilidade de combinar elementos textuais, gráficos e sonoros; e da interatividade — a possibilidade de que o público intervenha e contribua com seus próprios aportes informativos. Portanto, efetivamente, acredito que a notícia no âmbito da internet está se reconfigurando nesse duplo sentido.

IHU On-Line – O maior capital do jornalismo é a credibilidade? No jornalismo pós-industrial também seria?
Ramón Salaverría –
Certamente o que garante a um meio de comunicação, ou mesmo a um usuário na rede, a capacidade de atrair o interesse e a confiança por parte dos públicos é a credibilidade. A credibilidade informativa é algo muito difícil de construir, que necessita grandes esforços e tempo para tal, mas, curiosamente, é algo que se pode romper muito rapidamente. Quando alguém comete algum tipo de deslize, de erro na hora de difundir a informação, pode romper rapidamente com toda a credibilidade que custou meses e anos para construir. Penso que hoje em dia o valor fundamental para que um meio digital alcance a reputação e o apoio por parte do público ainda é o fator da credibilidade.

IHU On-Line – Em época de globalização, o jornalismo passa a compartilhar mais do que nunca características transnacionais. No entanto, a conectividade e a articulação em rede permite o surgimento de diversas iniciativas independentes de mídia, que investem na produção de conteúdos hiperlocais, dando voz a comunidades e grupos sociais com uma proximidade que o jornalismo dificilmente conseguiria. Como estes dois polos tensionam um ao outro?
Ramón Salaverría –
A rede possui várias características e uma delas é efetivamente a ruptura dos limites espaço-temporais. Quanto ao tempo, apesar de se dizer que a internet é o espaço do instantâneo, ela também é a plataforma onde podemos recuperar conteúdos mais antigos, então ela é enormemente elástica do ponto de vista temporal. Ocorre o mesmo no caso dos limites espaciais: no âmbito da rede, podemos acessar os conteúdos geograficamente mais próximos e os conteúdos geograficamente mais distantes sem nenhum tipo de diferença. O que acontece na rede é a criação de uma série de comunidades cujo denominador comum já não é geográfico, mas temático e, em outros casos, linguístico. Uma vez conseguida a condição linguística, isto é, que os membros de um determinado tipo de audiência sejam capazes de entender os conteúdos distribuídos neste idioma, o único limite é de caráter temático; é ter interesse nesse tipo de conteúdo.

Isto possibilitou, por uma parte, o surgimento de meios hiperlocais — pois podemos criar uma audiência muito próxima não apenas do ponto de vista geográfico, mas que tenham interesse no conteúdo daquele local mesmo que não estejam fisicamente presentes. Deste ponto de vista, se multiplicam as possibilidades de composição informativa, mas também os desafios para os editores desse tipo de conteúdo que devem saber se situar diante destas audiências cada vez mais diversas. 

IHU On-Line – Alguns pesquisadores falam de um “jornalismo líquido”. Como você vislumbra esta ideia? Seria este que representaria um emergente pós-jornalismo?
Ramón Salaverría –
O termo jornalismo líquido tem a ver, fundamentalmente, com a questão temporal. Quer dizer, o conceito está associado ao de fechamento contínuo, de que não há um trabalho cíclico, mas que o conteúdo jornalístico está sendo atualizado constantemente. Do meu ponto de vista, esta visão do jornalismo líquido é uma visão reduzida, limitada da verdadeira dimensão desse conceito.

Uma das facetas sobre as quais incide o jornalismo líquido é o processo de difusão informativa que, efetivamente, pode vir a ser um tipo de produção informativa temporalmente informativa. Mas ele deveria ser entendido em outros âmbitos, como, por exemplo, o de multiplataformas. É o fato de que o jornalismo pode ser acessível por dispositivos distintos ao mesmo tempo, fazendo com que o conteúdo seja líquido entre todas as plataformas.

Liquidez dos produtos
Também penso ser oportuno interpretar a liquidez do jornalismo do ponto de vista das formas de produção informativas. Até agora, os padrões de produção de conteúdo jornalístico eram muito determinados. Havia uma série de esquemas no acesso, na elaboração e na distribuição dos conteúdos jornalísticos. Agora passamos a estruturas onde encontramos, por exemplo, redações descentralizadas, conectadas por meio da tecnologia — ao invés de uma disposição física — com modelos de teletrabalho por parte dos jornalistas.

Parece-me que todos estes elementos e mais alguns outros compõem o verdadeiro conceito de jornalismo líquido. Mas, atualmente, quando se fala deste conceito, entende-se de uma maneira limitada como uma questão restrita ao ciclo editorial, e penso que esta é uma visão um pouco reducionista. 

IHU On-Line – Em entrevistas, você já defendeu a circulação de jornais impressos apenas três dias na semana — especialmente sexta, sábado e domingo. No entanto, em termos de análise e reportagem em profundidade, as revistas semanais também têm caído constantemente de circulação. Mudar o paradigma de publicação não seria o início do fim?
Ramón Salaverría –
Sou muito pouco partidário da palavra "fim" em jornalismo. Se existe algo que a história do jornalismo nos ensina é que esta é uma profissão cíclica, em que aspectos que parecem perder a vigência, em condições distintas, alcançam uma nova vida, um novo desenvolvimento. Desse ponto de vista, penso que a informação da internet e, muito particularmente, as publicações diárias têm, efetivamente, um novo cenário informativo e um novo cenário editorial.

Vejamos alguns exemplos: Nos Estados Unidos existem periódicos que anteriormente eram editados sete dias por semana, mas que hoje possuem edições distintas. É o caso do Times Picayune , de New Orleans, que, após 175 anos, hoje circula quatro dias em versão impressa e três  dias em versão digital. Já em Lisboa, por exemplo, há cerca de um mês o semanário Expresso lançou uma edição diária  e vespertina para tablets, chamada Expresso Diário; temos então uma revista impressa semanal que passa a ter uma edição diária digital. Vemos como as duas linhas de evolução tendem a se sobrepor, o que permite pensar uma adaptação dos ciclos editoriais para os hábitos de consumo do público.

Isso quer dizer que os jornais diários impressos vão desaparecer? Eu, particularmente, não acredito nisso. A Associação Mundial de Periódicos (World Association of Newspapers and News Publishers), em seu relatório World Press Trends, aponta que ainda há um aumento da circulação dos jornais em territórios como a Ásia e a América Latina, enquanto na América do Norte e na Europa Ocidental estão caindo. Penso ser mais provável que vejamos essa diminuição, mas não o desaparecimento, dos diários impressos, e o fortalecimento dessas novas formas editoriais em que se compatibilize o impresso com o digital.

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