Edição 446 | 16 Junho 2014

O poder pastoral, a economia política e a genealogia do Estado moderno

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Castor Ruiz

O filósofo Castor Ruiz articula conceitos de Foucault e Agamben para buscar compreender Estado e Governo

Para Foucault, a prática política que tinha por objetivo cuidar e governar a vida dos outros nas sociedades antigas era associada à figura do rei-pastor. A isso ele designa o “poder pastoral”. Agamben, por sua vez, trabalha a ideia de uma “teologia econômica”, remetendo a oikonomia divina — o governo divino do mundo, da providência, da liberdade e dos ministérios. “As pesquisas de ambos os pensadores se cruzam na noção de governo”, aponta o filósofo Castor Ruiz, neste artigo em que se debruça sobre o tema.

Castor Bartolomé Ruiz é professor nos cursos de graduação e pós-graduação em Filosofia da Unisinos. É graduado em Filosofia pela Universidade de Comillas, na Espanha, mestre em História pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS e doutor em Filosofia pela Universidade de Deusto, Espanha. É pós-doutor pelo Conselho Superior de Investigações Científicas. Escreveu inúmeras obras, das quais destacamos: Os paradoxos do imaginário (São Leopoldo: Unisinos, 2003); Os labirintos do poder. O poder (do) simbólico e os modos de subjetivação (Porto Alegre: Escritos, 2004) e As encruzilhadas do humanismo. A subjetividade e alteridade ante os dilemas do poder ético (Petrópolis: Vozes, 2006). Leia, ainda, o livro eletrônico do XI Simpósio Internacional IHU: o (des)governo biopolítico da vida humana, no qual Castor contribui com uma reflexão — A exceção jurídica na biopolítica moderna, disponível em http://bit.ly/castor343.

O professor está ministrando o curso Estado, governo e tecnologias biopolíticas: Foucault e Agamben, na Unisinos, em São Leopoldo, cuja programação começou em 10 de março e segue até 30 de junho. Mais informações estão disponíveis em http://bit.ly/CastorFeA.

Confira o artigo.

1.  Há uma consolidada tradição que atribui a origem do Estado moderno, conjuntamente com seu aparato burocrático, às revoluções políticas dos séculos XVII e XVIII. Nesta perspectiva, a gênese do Estado moderno teria acontecido na ruptura política com os regimes de soberania absoluta, instaurando em seu lugar, de forma imediata, outros tipos de regimes políticos acordes com o Estado de direito moderno. Essa ruptura se teria legitimado e consolidado a partir das filosofias que apresentavam a noção de estado de natureza humano diferente do estado de sociedade e concebiam a constituição da sociedade como resultante de um contrato social. A noção de contrato social teria sido o elo da nova ordem social em que o Estado de direito, junto com o mercado, se consolidaram como instituições hegemônicas.

Sem dúvida que as revoluções políticas burguesas e as concepções filosóficas contratualistas são responsáveis, em grande medida, pela construção, legitimação e manutenção dos aparatos formais do Estado de direito. Essa é uma das grandes contribuições que estas filosofias fizeram e continuam a fazer para a contemporaneidade. Ao formular e desenvolver os princípios formais do direito, como a liberdade e a igualdade, como critérios reitores das instituições modernas, propiciaram uma isonomia formal de todos perante a lei, assim como o desenvolvimento de procedimentos e regulamentos de liberdade e igualdade formal de direitos acabaram com a lógica do poder absoluto e a desigualdade estamental vigente nas sociedades tradicionais.

Neste ponto cabe questionar dois aspectos: 1) por que o mero reconhecimento e desenvolvimento à exaustão dos princípios formais não consegue neutralizar os autoritarismos e totalitarismos modernos que se instalam no marco das liberdades formais, assim como as desigualdades estruturais e sociais que não cessam de se alargar em escala global; 2) cabe questionar-se também se esta incapacidade do procedimentalismo para penetrar nas contradições contemporâneas não exige pesquisar uma outra genealogia dos dispositivos de poder a partir da qual também se teceram a lógica do Estado e a racionalidade do mercado modernos.

2.  Instigados pelas contradições inerentes e persistentes no Estado de direito e no mercado modernos, diversos pensadores contemporâneos tentaram pesquisá-las em outras perspectivas. Já Max Weber  apresentou um excelente estudo sobre as profundas conexões havidas entre a “Ética protestante e o espírito do capitalismo”. Outros autores contemporâneos da teoria crítica como Horkheimer , Adorno , Arendt , Benjamin , produziram estudos imprescindíveis nesta linha. Também recentemente, M. Foucault  e G. Agamben  pesquisaram conexões mais íntimas do capitalismo, especificamente da economia política, com o poder pastoral (Foucault) e com a teologia econômica (Agamben). As pesquisas de ambos os pensadores se cruzam na noção de governo.

A prática e o discurso dominante na contemporaneidade é o da economia política, que penetrou e absorveu o conjunto das instituições modernas, inclusive a própria racionalidade do Estado de direito. O cerne discursivo da economia política é o do governo da vida humana. A economia política não se faz sobre as coisas, mas se realiza como governo das pessoas. Economia é sinônimo de governo dos outros. Neste ponto, a economia se torna biopolítica, uma política cujo objetivo é o governo da conduta dos outros. A economia política tem por escopo administrar pessoas, gerenciar condutas, liderar processos, dirigir equipes, gerir comportamentos, e um amplo vocabulário em que o verbo é sempre sinônimo de governar e o complemento verbal é sempre um ser humano, uma população que deve ser gerenciada e governada.

Foucault e Agamben mostram, de forma diversa, que os discursos da soberania se diferenciam qualitativamente dos discursos e das práticas de governo, por isso a genealogia das práticas de governo implementadas pela economia política remetem a outro campo discursivo, diferente das teorias da soberania. Foucault investigou a tese de que as noções de governo dos outros e governo das populações remetem às práticas de poder pastoral. Agamben, diferentemente, defendeu a tese de que a economia política moderna encontra seu aparato conceitual já amplamente desenvolvido na teologia cristã que, desde o século II até o século XVII, discutiu longamente o conceito de oikonomia divina a respeito do governo divino do mundo, da providência, da liberdade e dos ministérios, oferecendo o discurso teológico da oikonomia muito amadurecido nas mãos dos economistas modernos, que só fizeram secularizá-lo na nova conjuntura governamental.

3. A noção de cuidado da vida assim como o governo dos outros eram completamente alheios à polis grega. A política grega se caracterizava pela isonomia dos cidadãos, a autonomia dos sujeitos e autogestão na Ágora. A oikos (casa) era o espaço onde se administrava a vida, onde se governavam os outros, onde se cuidava da vida dos outros. Como bem referencia Aristóteles , a oikos era o espaço do governo dos outros, oikonomia, por isso não era considerado um espaço político. E vice-versa, o espaço político não poderia incluir a administração da vida, nem o governo dos outros, porque na Ágora da polis todos são iguais e tudo se decide por deliberação democrática. São duas práticas antagônicas, para os gregos. Na polis vigora a isonomia e a democracia, na oikos rege a hierarquia e a soberania. No entanto, na modernidade, elas se tornaram sinônimos. A noção moderna de economia política, para os gregos, seria um absurdo, uma contradição performativa dos termos. Ou é economia (governo hierárquico da vida dos outros) ou é política (autogoverno democrático dos sujeitos). A questão que cabe pesquisar é como isso aconteceu na modernidade.

Foucault, na sua obra Segurança, Território e População (São Paulo: Martins Editora, 2008), apresenta a tese de que a prática política que tinha por objetivo cuidar e governar a vida dos outros nas sociedades antigas era associada à figura do rei-pastor. A denominação do rei como pastor se encontra amplamente documentada nas principais civilizações da Antiguidade, exceto nos gregos. O Faraó era denominado pastor, os persas atribuíam ao rei o título principal de pastor, os sumérios, babilônios e certamente o povo hebreu desenvolveram a figura do pastor como título do governante.
   
A figura política do pastor está longamente documentada nas principais sociedades da Antiguidade. De forma muito especial, a figura bíblica do pastor teve grande repercussão posterior na concretização do pastorado cristão, que por sua vez influenciou diretamente os discursos da governamentalidade moderna, como veremos a seguir. Porém, o simbolismo do pastor como governante não é criação do povo hebreu, senão que um registro comum às principais culturas e sociedades da Antiguidade.

O pastor tem a responsabilidade principal de cuidar e governar bem o rebanho. O pastorado está associado a estas duas grandes categorias de cuidado e governo dos outros. O bom pastor é aquele que cuida e governa os outros para bem do rebanho, sem procurar tirar proveito próprio nem explorar o rebanho. O mau pastor é aquele que se aproveita do cuidado e do governo dos outros para seu benefício próprio. O bom pastor sabe das necessidades do rebanho e providencia os melhores pastos e caminhos para seu conforto; o bom pastor defende o rebanho, se arrisca por ele preservando-o dos perigos que possam assediá-lo. Há uma longa literatura que debate os critérios do bom e do mau pastor; inclusive, como desenvolve a literatura bíblica, o bom pastor há de saber sacrificar-se pelo rebanho quando necessário for, já que o objeto de seu pastorado não é ele mesmo, mas o bem do rebanho. Jesus Cristo inverterá esta relação, ele mesmo se tornará o “cordeiro” que se oferece em sacrifício, de uma vez e para abolir todos os sacrifícios.

4. Embora o poder pastoral e a oikos tenham por objetivo o governo da vida humana, há uma diferença significativa entre o pastorado e a oikos, entre o modo de governar do pastor e o do kyrios (senhor) da oikos. Na oikos ou lar (romano) vigora o poder soberano (pater familias romano), o governo é feito de forma soberana, absolutista, com poder de vida e morte sobre todos os membros da casa. Não se tem conhecimento de discursos a respeito da necessidade do kyrios ou dominus sacrificar-se pelo bem dos outros, já que todas as vidas das oikos e dos lares estavam, por definição, a serviço dos interesses dos seus senhores.

A política foi criada na Grécia como o espaço de desenvolvimento da autonomia dos cidadãos, ainda que na verdade era restrito aos homens livres e eupátridas, que era uma ínfima minoria dos habitantes da polis. Contudo, o valor da política consistiu em ter criado este espaço inédito de isonomia e autonomia entre cidadãos, absolutamente desconhecido em qualquer outra sociedade. No espaço da política, ninguém é governado por ninguém, todos se autogovernam. A essência da democracia grega está no exercício direto do poder, sem mediações de outro, nem governos dos outros. Aquele que não tem possibilidade de governar-se, não tem o direito de exercer a política na democracia. A política exige o exercício da autonomia direta e não consente sequer a delegação das deliberações ou a representação, que é sempre uma negação da democracia.

É certo que o político, como o pastor, também tem seu lado obscuro ou pervertido. O mau político é aquele que se vale da suposta autonomia para convencer falaciosamente os outros, neste caso a democracia vira demagogia. Como diz Aristóteles, o mau político se torna demagogo, mantém a aparência formal da autonomia política, enquanto prática a falácia da demagogia. Da mão dos demagogos a democracia se perverte numa demagogia; esta, no sentido estrito do termo, significa arte de conduzir ou governar o povo. Assim como a pedagogia é a arte de conduzir as crianças, que por definição ainda necessitam de cuidados e condução, a demagogia perverte a autonomia política transformando-a numa técnica ou arte de condução dos outros. Não é difícil encontrar paralelismos contemporâneos desta problemática, que tornaram nossas democracias modernas muito próximas do que poderíamos denominar: demagogias de massas.

5. Independentemente da atitude boa ou má do pastor ou do político, há algumas diferenças qualitativas entre o poder pastoral e a política. O poder pastoral desenvolve o cuidado dos outros, o cuidado da vida na forma de bom governo, enquanto a política tem por princípio o autogoverno dos sujeitos, a autogestão e autonomia. Independentemente de que exista um bom ou mau uso do poder pastoral ou da política, fica claro que ambas as formas de poder lidam de modos diferentes com a vida e com os sujeitos. A política, por princípio, não se ocuparia daqueles que necessitam cuidados, qualquer forma de cuidado dos outros foge ao escopo originário da política, que é a autogestão e autonomia dos sujeitos. Por outro lado, o poder pastoral, ao centrar-se no cuidado dos outros, ajuda e apoia aqueles que dele necessitam, porém inibe a autonomia, ou como mínimo não a desenvolve. O poder pastoral é fundamental para cuidar os outros quando necessitam, porém ele pode ser um grande entrave para a autonomia dos sujeitos. Aquele que é cuidado o tempo todo, perde capacidade de decidir por si mesmo. De outro lado, a pura política deixaria de lado a preocupação com aqueles que não conseguem se valer por si, e, no entanto, em muitas ocasiões, algumas pessoas necessitam de apoios e cuidados porque não têm possibilidades ou capacidades suficientes para valer-se por si mesmas. Neste caso, a política que apela para autonomia e autogestão de si, aparece, para as pessoas que necessitam e não podem, como um discurso formal correto, porém vazio de sentido.

Nesta análise, fica transparente que em ambas as formas de poder há uma limitação interna a respeito da vida humana e uma tensão entre si a respeito dos sujeitos.  A política se omite do cuidado daqueles que não podem, o pastorado cuida dos que necessitam com perigo de inibir a autonomia possível. Mutatis mutandis, podemos ver refletida contemporaneamente esta tensão, por exemplo, em algumas das denominadas políticas públicas compensatórias ou assistenciais. São políticas destinadas a compensar necessidades da população, elas são extremamente necessárias para aqueles que vivem em estado de necessidade, já que sem elas encontrar-se-iam vulneráveis e carentes de aspectos fundamentais da sobrevivência humana. Porém, se estas políticas públicas perdurarem por muito tempo ou se aplicarem de forma indiscriminada, podem desenvolver, de um lado, uma atitude paternalista de dependência dos poderes do Estado, do qual se espera que resolva tudo de forma generalizada, e concomitantemente desenvolver-se-ia uma atitude assistencialista que gera dependência de um outro superior. De outro lado, os governantes do Estado aliciam as pessoas e populações que obtêm benefícios públicos permitindo obter mais votos através de políticas assistenciais. As políticas públicas são um exemplo concreto, uma versão contemporânea, do poder pastoral, que refletem a tensão histórica entre o pastorado e a política. O que está em questão não é a bondade ou maldade intrínseca de alguma das formas de poder (pastorado ou política), mas as estratégias que os conjugam e as táticas que os desenvolvem. Especificamente, como veremos, a noção de economia política moderna operou uma estratégia precisa que transtrocou os modos de condução governo da vida (pastorado) em formas políticas com aparência de democracia, anulando os espaços da autonomia e deliberação dos sujeitos e tornando nossas democracias, cada vez mais, regimes de administração da vida, de condução das populações, de gerenciamento de desejos, de direcionamento de tendências, etc.

6. Embora a figura do pastor encontra-se em Homero , Pitágoras , Isócrates , Demóstenes , inclusive no próprio Platão , a noção de poder pastoral não foi assumida como modelo de governo na Grécia antiga. O cruzamento da cultura grega com o poder pastoral ocorrera em vários momentos. Já em Fílon de Alexandria  (entre 10 e 50 d.C.), um filósofo neoplatônico judeu, encontramos vários escritos desenvolvendo a noção de poder pastoral como forma de governo. Contudo, foi o cristianismo que consolidou ao longo de mais de XVII séculos o discurso e a prática determinada do poder pastoral na forma de pastorado cristão. Este discurso e prática desembocaram diretamente nos teóricos da economia política moderna.

Como não poderia ser de outra forma, o cristianismo desenvolveu o poder pastoral de forma paradoxal. O pastorado cristão cuidava e controlava, ajudava e conduzia. Era um poder que concomitantemente com o cuidado dos outros realizava a condução de suas vidas. O pastorado cristão desenvolveu, desde o século V até século XVI, as artes de cuidado e governo dos outros associados ao regime estamental do feudalismo. Esta aliança fez com que o pastorado cristão da alta e baixa Idade Média se caracterizasse por consolidar o modo de subjetivação do súdito, fundamentado na obediência como virtude principal. Por sua vez, o pastorado cristão manteve uma certa distinção das formas de soberania absoluta praticada pelos príncipes e senhores feudais. Ao longo destes séculos, o poder pastoral sustentou sua especificidade como forma de governo dos outros, sem fundir-se com as formas de soberania representadas pelos nobres, senhores feudais e príncipes. Esta especificidade fez do cristianismo uma experiência política singular em vários aspectos, pois mesmo com as profundas alianças e cumplicidades havidas entre os poderes políticos feudais e o poder pastoral, o cristianismo manteve a peculiaridade do pastorado como forma de cuidado, governo e condução dos outros, diferenciada da soberania política.

A inversões e perversões do pastorado cristão a respeito do modelo do bom pastor, na forma de um poder controlador extremo e produtor da subjetivação do súdito, provocaram durante séculos inúmeras reações, denominadas por Foucault de contracondutas. Estas reações visavam retornar ao ideal do pastorado como serviço aos outros e não como domínio dos outros. É fácil identificar nessas contracondutas muitas das reformas religiosas, os novos carismas, os novos movimentos religiosos, etc. Essas reações ou contracondutas insurgentes contra o pastorado cristão dominante não deixavam de ser elas mesmas formas de poder pastoral, uma vez que propunham refundar o verdadeiro objetivo do pastorado. Nesta perspectiva, seria pertinente reescrever a história da Igreja como uma história das práticas pastorais, de suas lutas, inovações, imposições, insurgências e novos métodos.

7. Ao longo destes séculos, o pastorado cristão manteve a característica principal do poder pastoral antigo, que por sua vez será o mote a partir do qual se tecerá o discurso da economia política moderna. O que caracteriza o poder pastoral é que a noção de cuidado e governo envolve tanto a totalidade do rebanho como a singularidade de cada ovelha. Ou seja, o poder pastoral se preocupa de governar o todo e cada um, omnes et singulatim. O poder pastoral se caracteriza por preocupar-se em pensar a forma de governo para articular o bem geral do todo (o rebanho) com o conhecimento particular de cada ovelha. O critério para o bom governo não se encontra na vontade do pastor, como sustentam as teorias da soberania, mas na realidade daqueles que devem ser governados: o rebanho na sua totalidade e os indivíduos na sua singularidade. O bom pastor deve conhecer cada ovelha, saber de suas necessidades, potencialidades, limites. O conhecimento singular de cada indivíduo em suas peculiaridades é critério de um bom governo pastoral. De igual forma, para melhor poder conduzir a totalidade do rebanho, o pastor deve ter noção do todo desse rebanho: de quantas ovelhas são, de quanto consomem cada dia de alimento, de quanta água necessita todo o rebanho, da dimensão dos abrigos necessários para proteger a todos. O conhecimento do rebanho exige técnicas peculiares de governo como uma totalidade, omnes, que são diferentes e complementares das técnicas de governo de cada indivíduo na sua especificidade, singulatim. O bom pastor deve conhecer cada ovelha, se está enferma ou sadia, jovem ou velha, se tem alguma dificuldade ou suas habilidades. O conhecimento do singulatim lhe permitirá tomar decisões apropriadas a respeito desse indivíduo, que repercutirá no bem do rebanho. O poder pastoral desenvolveu ao longo dos séculos a articulação destas duas dimensões como parte constitutiva desta forma de governo.

8. Para Foucault, a genealogia do Estado moderno é conexa com a genealogia da governamentalidade. O específico do Estado moderno não são as teorias da soberania, que já se encontravam na Grécia clássica, mas as técnicas governamentais que possibilitaram introduzir o governo da vida humana como característica da política moderna. O Estado moderno não inventou a democracia nem seus modos, ele os imitou dos antigos, porém inovou criando dispositivos governamentais através dos quais inseriu o governo da vida humana, a condução dos outros, como parte da política moderna. As técnicas de governamentalidade foram desenvolvidas por vários discursos e práticas: medicina, urbanismo, trabalho, etc., porém foi a economia política que sintetizou todas elas e deu formas às novas estratégias de governo em escala estatal.

Foucault defende a tese de que o Estado moderno é o resultado dos dispositivos de governo, um resultado fruto do complexo processo de técnicas governamentais que confeccionaram seus aparatos burocráticos, seus métodos de gestão, e suas instituições conexas. O Estado é o produto das técnicas de governo, e sua existência e continuidade é correlativa a elas. Esta tese desenha a hipótese provável segundo a qual a transformação do Estado deverá acontecer de forma interna, através da transformação de seus dispositivos de governo e suas técnicas de gestão.

9. Até metade do século XVIII, as técnicas governamentais desenvolvidas principalmente pela incipiente economia política estavam atreladas ao modelo da soberania, ao poder absoluto dos monarcas. Nesta lógica, as técnicas de governo encontravam-se engessadas pelo decisionismo do soberano que se instituía princípio e finalidade das próprias técnicas de governo. Os teóricos cameralistas e mercantilistas sofreram em seus modelos de governo estas restrições, por isso não conseguiram pensar técnicas de governo econômicas diferentes do modelo clássico da oikos.

Como e quando foi possível pensar os novos dispositivos e tecnologias da governamentalidade moderna? Para que isso acontecesse, foi preciso abandonar o modelo de gestão clássico que concebia o soberano governando sabiamente a oikos. No lugar do modelo limitado do governo da oikos foi introduzida a categoria de população. O que a nova economia política deveria governar era a população. Esta, por sua vez, foi ressignificada simbolicamente como a dimensão biológica da espécie humana. Este novo recorte simbólico-conceitual da população possibilitou introduzir a categoria do mercado como entidade natural reguladora das relações humanas. O surgimento de novos saberes como a estatística (ciência do Estado) e a demografia contribuíram significativamente para identificar na população a principal variável econômica a ser governada.

Um exemplo ilustrativo deste momento crítico ficou refletido no verbete que Rousseau  escreveu para a Enciclopédia de 1755, intitulado: Economia Política. Rousseau, que se destacou por construir uma teoria da soberania baseada no conceito de contrato e cidadania na obra O contrato social (Porto Alegre: L&pm, 2007), reconhece neste verbete que a definição moderna de economia deve ser entendida como arte de governo, e que esta não tem mais como referência a oikos. O objetivo da nova economia política, segundo Rousseau, é governar da melhor maneira possível e com a máxima eficiência visando à felicidade dos homens.

O novo discurso governamental construído pelos fisiocratas, principalmente pelo liberalismo e mais recentemente pelo neoliberalismo, entendeu que as novas técnicas de governo tinham como referência principal o conceito de natureza, mais concretamente o de natureza humana. O que as novas formas de governo devem aprender a governar são as expectativas, anseios e tendências da natureza humana, constitutiva da população. O governante moderno não pode impor a sua vontade contra a natureza da população, ele deve conduzir, e se necessário for, produzir as aspirações da população de tal modo que essas aspirações venham a coincidir com as metas previstas por seu governo. Em suma, o ideal do governo moderno é produzir a natureza da população, ou seja, criar seus desejos, modelar suas tendências, formatar seus hábitos, forjar suas expectativas. O bom governo é aquele que consegue criar dispositivos e técnicas que governam a população de tal modo que os desejos e a natureza desta coincidam com as metas previstas por aquele.

A população aparece como figura secularizada do rebanho. A governamentalidade do Estado moderno haverá de cuidar do rebanho, a população, encontrando em sua natureza a referência para seus dispositivos de governo. A potência do Estado depende diretamente da qualificação de sua população. Esta é a nova variável que originará os discursos e práticas da economia política. Cuidar bem da população é sinônimo de potenciar a riqueza do Estado. Este cuidado é em si mesmo paradoxal porque se cuida a população enquanto significa riqueza real ou potencial para o Estado. Porém, quando essa população se tornar inútil, o Estado também tenderá a suspender o cuidado sobre ela e a abandonará à sua sorte. O cuidado da população está perpassado pelos princípios da utilidade, da eficiência e do lucro. Ela é cuidada por ser útil, e será abandonada quando não se tornar improdutiva. A relação direta da economia política com o governo da vida humana a torna, cada vez mais, uma biopolítica. Foucault acunhou uma conhecida máxima da biopolítica moderna que diz: “o poder soberano faz morrer e deixa viver, o biopoder faz viver e deixa morrer”.

10. O específico da economia política moderna é seu objetivo de governar a população a partir da sua natureza. O que está em destaque nas artes de governo modernas é o governo da natureza ou o governo segundo a natureza das coisas, mais especificamente a natureza humana. Esse novo modo de governo enfrentava, nos seus primórdios, a peculiaridade de ter que governar uma totalidade, a população, devendo conhecer a singularidade de cada indivíduo. Esta problemática da economia política moderna remete stricto sensu aos métodos do poder pastoral onde o bom governo se realiza na intersecção do omnes et singulatim. Por outro lado, cabe resenhar que a denominada economia política não existia como tal antes do século XVIII, e que os temas que ela destaca encontravam-se dentro dos tratados de moral, mais concretamente, de teologia moral. Não é por acaso que os primeiros e principais economistas eram todos eles formados em filosofia moral, e quase todos em teologia. Destarte, vemos reaparecer a economia política moderna como uma espécie de secularização dos dispositivos clássicos de poder pastoral e, ainda, segundo Agamben, a secularização dos dispositivos da teologia oikonomica.

11. É pertinente fazer um destaque à inversão e captura que a liberdade humana sofreu nos dispositivos governamentais modernos. A noção moderna de liberdade está referenciada à natureza. Somos livres por natureza e identifica-se a liberdade com os desejos naturais dos indivíduos. Para o indivíduo moderno, ser livre é poder realizar o que deseja. Por isso, sente-se mais livre quanto mais desejos consegue realizar. Este modelo moderno e liberal de liberdade foi forjado para se ajustar às demandas requeridas pelos dispositivos governamentais que o Estado e mercado modernos não cessaram de produzir. Sendo o objetivo da governamentalidade conseguir gerenciar a natureza da população de modo que suas aspirações venham a coincidir com as metas do governo, o ideal do governo moderno é gerenciar a liberdade para que o exercício desta se direcione aos objetivos daquele. Como isso é possível?

Ao identificarem os indivíduos sua liberdade com a realização dos seus desejos, o ideal do governo moderno será conseguir produzir os desejos dos indivíduos, e consequentemente da população; de tal modo que ao realizar o que eles desejam estão executando os comportamentos induzidos pelos dispositivos externos. Os dispositivos governamentais tendem a governar a população produzindo seus comportamentos, administrando suas aspirações, gerenciando suas habilidades, para tanto, e entre outras técnicas, utiliza-se a indução dos desejos e a fabricação da liberdade. Neste contexto, fabrica-se a liberdade como um quesito importante para o bom funcionamento dos dispositivos governamentais. O deste dispositivo governamental encontra-se plenamente ativo na denominada sociedade de consumo. O consumismo é o resultado de uma ingente constelação de dispositivos produtores de desejos, indutores de condutas, formatadores de hábitos que sujeitam os indivíduos numa sensação de liberdade permanente de ter o que se deseja.

É importante destacar que estes processos governamentais não acontecem de forma linear ou unilateral. Há complexidades, sinuosidades, resistências, confrontos, diferenças. A governamentalidade econômica moderna consegue ser hegemônica, mas, ainda, não conseguiu a totalidade de uma imanência absoluta. Porém, não se pode deixar de reconhecer que o ideal a que aspiram os dispositivos econômicos modernos coincide com o governo total (totalitário) da população. O que está em questão, entre outras muitas questões, é o sentido da política contemporânea cada vez mais reduzida a um espaço de administração da vida e gerenciamento das condutas dos outros. A política foi capturada pelas técnicas corporativas de governo e esvaziada da autonomia deliberativa dos sujeitos. O corporativismo governamental invadiu quase todos os espaços políticos submetendo a política e o próprio Estado à lógica governamental dos interesses corporativos. Estas novas perspectivas genealógicas abrem pistas para pensarmos possíveis alternativas da democracia efetiva e a autonomia deliberativa a partir da criação de novos dispositivos de autogoverno e autogestão.

12. Nos séculos XVII e XVIII se arquitetaram as bases do Estado e do mercado modernos. Esta arquitetura se alicerçou, entre outras, sobre duas categorias centrais: povo e população. O povo é a categoria que fundamenta todo o alicerce da soberania moderna. O povo é proclamado, formalmente, sujeito da soberania e a ele se lhe atribui a potestas do poder. O povo é sujeito, formal, de direitos inalienáveis. Estas duas características do povo estão registradas em todas as constituições dos Estados de direito modernos. Concomitantemente com a categoria povo, foi emergindo a categoria população. Se o povo é concebido como o sujeito formal dos direitos, a população foi forjada como o objeto de governo. A população é o recorte biológico da vida humana que deve ser governado. A população representa a objetivação simbólica da vida humana como recurso biológico que pode ser governado, instrumentalizado. A população não é um sujeito, mas uma objetivação biológica do coletivo “espécie humana”. Curiosamente, a população não figura como categoria jurídica reconhecida em nenhuma constituição, porém ela é a categoria central de todas as políticas de governo. As estratégias de governo são realizadas sobre a população. A atribuição de direitos é conferida ao povo.

Este recorte simbólico possibilitou caracterizar o humano de forma bipolar, o mesmo ser humano é concomitantemente povo e população, sujeito de direitos e objeto de governo. Esta é uma bipolaridade paradoxal inerente à arquitetura do Estado e do mercado modernos. Todos os seres humanos somos, para estas instituições modernas, concomitantemente cidadãos sujeitos formais de direitos (povo) e população biológica que deve ser governada. Esta tensão percorre os longos séculos de modernidade e se explicita, por um lado, nas lutas pelos direitos fundamentais em nome do povo; por outro lado, no avanço dos dispositivos de controle, governo e administração da população como recurso natural útil, eficiente e produtivo. A hegemonia atual dos dispositivos econômicos representa a vitória da população sobre o povo, a preeminência da objetivação da vida sobre o sujeito de direitos.

 Certamente que estas bipolaridades conceituais não são meras abstrações filosóficas, elas representam a produção discursiva que legitima as práticas do modelo capitalista de produção. O capitalismo não é um sistema econômico-financeiro independente ou concomitante com este debate. Muito pelo contrário, se o Estado moderno é o resultado das artes de governo, o capitalismo é o modo de produção resultante desta lógica bipolar que objetiva a vida humana como recurso produtivo útil a ser explorado à exaustão pelos interesses corporativos, enquanto se mantém o aparato formal do Estado de direito afirmando, também à exaustão, que o povo é sujeito da soberania e sujeito formal de direitos inalienáveis. Estes direitos são fórmulas vazias cujo conteúdo foi tomado pelos dispositivos biopolíticos que governam a vida humana como um recurso natural a mais. Pensar a transformação do Estado moderno implica transformar qualitativamente o modo de produção capitalista. Ambos emergiram conexos e se mantêm numa aliança híbrida e sinuosa de paradoxos bipolares em que se afirmam ao povo como sujeito da soberania e dos direitos e se objetiva a população como recurso natural lucrativo.

Para ler mais
Homo sacer. O poder soberano e a vida nua. Revista IHU On-Line, edição 371, de 29-08-2011
O campo como paradigma biopolítico moderno. Revista IHU On-Line, edição 372, de 05-09-2011
O estado de exceção como paradigma de governo. Revista IHU On-Line, edição 373, de 12-09-2011
A exceção jurídica e a vida humana. Cruzamentos e rupturas entre C. Schmitt e W. Benjamin. Revista IHU On-Line, edição 374, de 26-09-2011
A testemunha, um acontecimento. Revista IHU On-Line, edição 375, de 03-10-2011
A testemunha, o resto humano na dissolução pós-metafísica do sujeito. Revista IHU On-Line, edição 376, de 17-10-2011
A vítima da violência: testemunha do incomunicável, critério ético de justiça. Revista IHU On-Line, edição 380, de 14-11-2011
Genealogia da biopolítica. Legitimações naturalistas e filosofia crítica. Revista IHU On-Line, edição 386, de 19-03-2012
A bios humana: paradoxos éticos e políticos da biopolítica. Revista IHU On-Line, edição 388, de 09-04-2012
Objetivação e governo da vida humana. Rupturas arqueo-genealógicas e filosofia crítica. Revista IHU On-Line, edição 389, de 23-04-2012
A economia e suas técnicas de governo biopolítico. Revista IHU On-Line, edição 390, de 30-04-2012
O advento do social: leituras biopolíticas em Hannah Arendt. Revista IHU On-Line, edição 392, de 14-05-2012
O trabalho e a biopolítica na perspectiva de Hannah Arendt. Revista IHU On-Line, edição 393, de 21-05-2012
Giorgio Agamben, genealogia teológica da economia e do governo. Artigo de Castor Bartolomé Ruiz na Revista IHU On-Line edição 413, de 01-04-2013
A verdade, o poder e os modelos de subjetivação em Foucault. Publicado nas Notícias do Dia, de 25-09-2013, no sítio do Instituto Humanitas Unisinos
Genealogia do governo e da economia política. Artigo de Castor Bartolomé Ruiz na Revista IHU On-Line edição 437, de 17-03-2014

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    Metaverso. A experiência humana sob outros horizontes

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