Edição 446 | 16 Junho 2014

Rahner. O primeiro teólogo católico moderno

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Márcia Junges e Ricardo Machado | Tradução: Sandra Dall Onder

Rosino Gibellini aborda a postura crítica de Rahner com relação aos desafios da Igreja Católica no século XX

“Pode-se dizer que Rahner seja o primeiro teólogo católico moderno, porque ele se deparou, ao longo de seu extenso trabalho, com os desafios da modernidade”, argumenta Rosino Gibellini em entrevista por e-mail à IHU On-Line. “A tentativa de Rahner é mais ousada. E a tarefa do exercício da racionalidade crítica na teologia permanece ainda no período da pós-modernidade, que é interpretada como ‘modernidade tardia’ ou como ‘nova modernidade’: o exercício da racionalidade crítica deverá ser conjugado no período da pós-modernidade, focando em temas que foram esquecidos ou marginalizados pelo projeto moderno”, complementa. 

De acordo com Rosino, para a revelação divina o homem responde com um ato de fé “possível, mesmo para não cristãos, ateus e agnósticos em forma atemática, com o ‘sim’ ao sentido positivo da existência”. “Este sim ao sentido positivo da existência torna-se, pela graça (como existência sobrenatural), aceitação atemática e implícita, do mistério fundamental da salvação, que em Cristo encontra a revelação histórica e categorial do cristianismo anônimo (o cristianismo como a graça escondida e vivida)”, argumenta. 

Rosino Gibellini é doutor em Teologia pela Universidade Gregoriana de Roma e doutor em Filosofia pela Universidade Católica de Milão. Dirige as coleções Giornale di Teologia e Biblioteca de teologia contemporânea da Editora Queriniana de Brescia, Itália. O estudioso é autor, entre outros livros, de A teologia do século XX (São Paulo: Edições Loyola, 1998).

Confira a entrevista.

 

IHU On-Line - Por que a teologia de Rahner estava em plena sintonia com o grande projeto inovador do Concílio?

Rosino Gibellini - O Concílio Vaticano II  tinha como tema: a Igreja ad intra e ad extra. Rahner não era um eclesiólogo, mas tinha dentro de si um forte sentido da missão cristã no mundo. Exatamente em 1959 — ano em que foi anunciado o Concílio — Rahner publicou Missão e Graça, que abre com um ensaio intitulado “Significado da teologia do cristão no mundo moderno” (1954). Ali ele discute a transição do regime de cristianismo à situação de diáspora, em que a igreja passa a existir como uma minoria dentro de cada país, e argumenta que esta situação não deve ser sofrida, mas tomada como um "imperativo histórico de salvação", enfrentada com a renovação dos métodos e práticas eclesiais. Como se pode ver, a teologia de Rahner estava em sintonia com o grande projeto de João XXIII no Concílio.

 

IHU On-Line - Em que medida Rahner se ocupava em lançar uma ponte entre tradicionalistas e progressistas?

Rosino Gibellini - As palavras "tradicionalistas" e "progressistas" são estranhas ao vocabulário teológico de Rahner. Porém, ele constrói uma ponte entre as duas posições, uma vez que coloca o problema essencial da missão cristã no mundo. A ponte é a lembrança da essência da mensagem cristã, que vai além da polarização rígida.

 

IHU On-Line - Qual é a contribuição de Rahner para a abertura das ideias surgidas a partir do Concílio Vaticano II?

Rosino Gibellini - Um estudioso do Concílio escreveu: "Se explorarmos os arquivos em busca de citações escritas durante o Concílio, não encontramos um único texto que tenha sido elaborado ‘somente’ por Rahner”. A colaboração de teólogos e especialistas foi a marca do trabalho em comum. Podemos acrescentar ainda o testemunho de Rahner: "Participei da Comissão Teológica, que redigiu a Lumen Gentium  e Dei Verbum , e também colaborei um pouco com Gaudium et Spes". A principal contribuição de Rahner, que se expressa em todas as suas páginas, consiste na abertura da sua teologia como "ouvinte da Palavra". 

 

IHU On-Line - Qual é a importância de Rahner e De Lubac na organização do Concílio Vaticano II?

Rosino Gibellini - Ambos os teólogos citados eram considerados suspeitos pela Inquisição romana, mas foram, como poucos, os artífices da teologia que preparou o Concílio. De Lubac, com sua intensa Meditação sobre a Igreja (1953), foi mais eclesiólogo que Rahner. Rahner era mais atento, em seus Escritos teológicos, que começaram a aparecer em 1954, aos desafios do mundo moderno, dos quais há um eco na Gaudium et Spes. Ambos seguiram o pós-concílio, mas Rahner o fez de forma mais militante, sendo um dos fundadores da revista teológica internacional Concilium, que se inicia em 1965, e ainda com o volume programático para a reforma de 1972, intitulado Transformação estrutural da Igreja. 

 

IHU On-Line - Por que Rahner pode ser considerado o primeiro teólogo moderno?

Rosino Gibellini - Pode-se dizer que Rahner seja o primeiro teólogo católico moderno porque ele se deparou, ao longo de seu extenso trabalho, com os desafios da modernidade. A modernidade é caracterizada pela racionalidade crítica (Descartes , Iluminismo , Kant), e Rahner introduziu na teologia católica o exercício da racionalidade crítica, que substituía a racionalidade abstrata metafísica escolástica e os tratados católicos. A grande teologia francesa se destinava, sobretudo, a uma reforma do tomismo na linha de Maritain  e Gilson . A tentativa de Rahner é mais ousada. E a tarefa do exercício da racionalidade crítica na teologia permanece ainda no período da pós-modernidade, que é interpretada como "modernidade tardia" (Habermas ) ou como "nova modernidade” (Robert Schreiter ): o exercício da racionalidade crítica deverá ser conjugado no período da pós-modernidade, focando em temas que foram esquecidos ou marginalizados pelo projeto moderno (David Tracy ). 

 

IHU On-Line - Em que consiste o conceito de cristão anônimo e qual é seu impacto nas discussões do Concílio Vaticano II?

Rosino Gibellini - À revelação divina o homem responde com um ato de fé, possível mesmo para os não cristãos, ateus e agnósticos em forma atemática, com o “sim” ao sentido positivo da existência. Este sim ao sentido positivo da existência torna-se, pela graça (como existência sobrenatural), aceitação atemática e implícita, do mistério fundamental da salvação, que em Cristo encontra a revelação histórica e categorial do cristianismo anônimo (o cristianismo como a graça escondida e vivida). Tese de grande impacto para a atividade dialógica com o mundo na sua pluralidade de culturas e religiões. 

 

IHU On-Line - Em que medida a ideia do cristão anônimo encontra acolhida na igreja atualmente?

Rosino Gibellini - Em geral, não está mais presente, até mesmo porque não se deve falar propriamente de "cristãos anônimos", como o faz principalmente Rahner. Hoje se desenvolve mais, de várias maneiras, o grande tema da universalidade da salvação em Cristo, evitando a teorização do cristianismo anônimo, para não atribuir aos outros, uma etiqueta, ignorada e indesejada.

 

IHU On-Line - A partir de Rahner, como podemos compreender a mudança do cristianismo anônimo para um cristianismo relacional?

Rosino Gibellini - A vontade salvífica universal é feita de diferentes maneiras pela teologia contemporânea. Menciono particularmente o teólogo francês Claude Geffré , De Babel a Pentecostes (2006). Geffré estabelece três critérios a serem aplicados na era do pluralismo: 1) o respeito ao outro e à própria identidade, praticando a imaginação analógica teorizada por David Tracy, como uma atitude hermenêutica: descobrir uma semelhança na diferença; 2) fidelidade à própria identidade; 3) necessidade de um grau de igualdade entre os parceiros, para que exista diálogo. Agora, o cristianismo tem a capacidade de atingir essas condições para o diálogo, mostrando-se como cristianismo relacional. 

 

IHU On-Line - Como o evento do Holocausto repercute na Teologia de Rahner?

Rosino Gibellini - O evento do Holocausto não toca, de forma particular, a teologia de Rahner. A primeira elaboração teológica tem lugar nos anos 1960 no pensamento judaico com Rubenstein  (1966) e Fackenheim  (1970). Toca a teologia cristã na obra de Moltmann, na transição da teologia da esperança à teologia da cruz (1972), e na condução da teologia política de Metz (1978). Teologia do Holocausto pressupõe a transição da racionalidade crítica — aqui se situa a contribuição de Rahner — ao primado da razão prática, passagem operada pela teologia política de Metz e Moltmann . Nesta linha, a última contribuição é oferecida por Metz, que produziu, em colaboração com a Faculdade Católica de Teologia, um denso volume, Dem Leiden ein Gedächtnisgeben (2012) [Dar memória ao sofrimento], em que se desenvolvem as linhas de uma cristologia anamnéstica.

 

IHU On-Line - Em que ponto estamos com a edição da Opera Omnia de Rahner? 

Rosino Gibellini - Quando vivo, Rahner havia organizado a coletânea dos seus escritos teológicos (Schriften zur Theologie) em 16 volumes, 1954-1984. Após a sua morte, iniciou-se a edição da Opera Omnia, em 1995, que está prevista para ser concluída, em 32 volumes, em 2015. Será um relançamento da obra de Rahner, que envolverá a nova geração de teólogos e teólogas.

 

Leia mais...

- O primeiro teólogo católico moderno. Entrevista com Rosino Gibellini na edição 297 da IHU On-Line, de 15-06-2009;

- Von Balthasar e o problema de Deus. Artigo de Rosino Gibellini publicado no sítio do Instituto Humanitas Unisinos – IHU, nas Notícias do Dia de 05-05-2013; 

- As memórias de Hans Küng. Artigo de Rosino Gibellini publicado no sítio do Instituto Humanitas Unisinos – IHU, nas Notícias do Dia de 28-10-2013; 

- A vida como história de liberdade. Artigo de Rosino Gibellini publicado no sítio do Instituto Humanitas Unisinos – IHU, nas Notícias do Dia de 28-10-2013. 

 

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