Edição 446 | 16 Junho 2014

Filosofia, teologia e autonomia a partir de Rahner

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Márcia Junges e Ricardo Machado

O professor Manfredo Araújo de Oliveira faz uma aproximação dos conceitos teológicos de Karl Rahner no sentido de reconstruir uma metafísica transcendental

Enquanto na metafísica clássica o ser humano se entende como o lugar onde o sentido se mostra, na modernidade o sujeito aparece como produtor de sentido e é nessa esteira que Karl Rahner desenvolve suas reflexões. “O método transcendental emerge aqui como uma estratégia importante no contexto moderno para justificar a postura ontológica que a tradição sempre teve. Rahner vai partir daqui, mas seu esforço teórico se propõe reconstruir toda a metafísica transcendentalmente, ou seja, a virada transcendental é assumida por ele não apenas como uma estratégia útil no contexto do pensamento moderno, mas como um elemento constitutivo do pensamento metafísico enquanto tal”, explica Manfredo de Oliveira, em entrevista por e-mail à IHU On-Line.

“A compreensão originária do ser humano sobre si mesmo que se tematiza na filosofia é o espaço em que se situa a reflexão teológica e isto decorre da própria natureza da teologia enquanto ‘ciência da fé’, isto é, enquanto reflexão metodicamente dirigida sobre a revelação de Deus dada na fé”, destaca Manfredo. “O ser humano se transformou num ser que em todas as dimensões de sua existência planeja racionalmente e manipula a si mesmo, o que significa que no sentido estrito da palavra ele se tornou capaz de projetar e planejar seu próprio futuro. Isto marca decisivamente sua autocompreensão e sua compreensão do todo”, argumenta. 

Manfredo Araújo de Oliveira é graduado em Filosofia pela Faculdade de Filosofia de Fortaleza, mestre em Teologia pela Pontifícia Universidade Gregoriana de Roma e doutor em Filosofia pela Universität München Ludwig Maximilian. Atualmente, atua como docente da Universidade Federal do Ceará (UFC). Entre seus livros mais recentes, citamos O Deus dos filósofos contemporâneos (Petrópolis: Vozes, 2003) e Dialética hoje: lógica, metafísica, historicidade (São Paulo: Loyola, 2004), Ética, direito e democracia (São Paulo: Paulus, 2009), Antropologia filosófica contemporânea – Subjetividade e inversão teórica (São Paulo: Paulus, 2011)e A religião na sociedade urbana e pluralista (São Paulo: Paulus, 2013).

Confira a entrevista.

 

IHU On-Line - Quais são as ideias fundamentais de Rahner que estabelecem o diálogo entre a Teologia e a Filosofia?

Manfredo Araújo de Oliveira - Partindo da concepção usual entre os católicos da diferença radical entre filosofia e teologia, Karl Rahner vai desenvolver uma tese desafiadora: a filosofia é um “momento interno” que ela mesma pressupõe como sua condição de possibilidade. Ele legitima sua tese tanto teológica quanto filosoficamente. Teologicamente: a partir da relação entre natureza e graça (a graça, enquanto autocomunicação absoluta de Deus, para poder ser tem que pressupor um parceiro, como sua condição de possibilidade, a quem ela é indevida, mas sem o qual não poderia haver comunicação. O ser espiritual é a condição de possibilidade que a própria revelação pressupõe para si mesma e com isto a põe livremente para que ela possa ser o que é: graça enquanto autocomunicação pessoal e livre de Deus); da relação entre revelação e teologia (a revelação pressupõe a filosofia enquanto diferente dela e livre enquanto espaço de sua própria possibilidade, porque só ao ser que compreende a si mesmo e dispõe autonomamente sobre si mesmo, o ser espiritual finito, pode dirigir-se à automanifestação de Deus em revelação pessoal enquanto ato de seu amor livre); da relação entre história universal e história especial da salvação e da revelação (a história da salvação é coextensiva à humanidade enquanto tal. Por isso, em cada filosofia já se faz inevitável e atematicamente teologia, porque não depende do ser humano ser envolvido ou não pela graça de Deus. Nós cristãos é que somos muito cegos, porque não somos capazes de ver este cristianismo oculto na história do ser humano, da religião e da filosofia). Filosoficamente: o ser humano é compreensão de si e do ser em seu todo. A teologia, enquanto atividade humana, está subordinada, como qualquer conhecimento, às condições necessárias de todo conhecimento humano. Assim, a filosofia enquanto explicitação transcendental das condições de possibilidade do conhecimento teológico constitui um momento interno de seu próprio trabalho.

 

IHU On-Line - Nesse sentido, qual é a necessidade de se filosofar na teologia a partir dos escritos desse teólogo?

Manfredo Araújo de Oliveira - A compreensão originária do ser humano sobre si mesmo que se tematiza na filosofia é o espaço em que se situa a reflexão teológica e isto decorre da própria natureza da teologia enquanto “ciência da fé”, isto é, enquanto reflexão metodicamente dirigida sobre a revelação de Deus dada na fé. Este empreendimento teórico é possível e necessário porque a própria revelação de Deus já contém em si, enquanto seu momento constitutivo, um saber de caráter conceitual e sentencial que a teologia tem precisamente como tarefa desenvolver, refletir e confrontar com outros conhecimentos. Nesta perspectiva, a teologia é ciência da fé na medida em que a fé cristã é base, norma e fim desta ciência. Numa palavra, a teologia é a reflexão metódica e sistemática da autorrevelação e autodoação gratificante de Deus ao ser humano captada e aceita na fé. Enquanto atividade cognoscitiva humana tem como sua condição de possibilidade as condições necessárias de todo e qualquer conhecimento humano, numa palavra, está subordinada como qualquer conhecimento humano à estrutura apriórica de suas condições de possibilidade: o ser humano que faz teologia possui sempre, enquanto ser humano, “uma compreensão atemática de si e da totalidade do ser”, transcendental e historicamente, que em última análise se explicita como abertura absoluta a Deus. Sendo assim, a teologia que verdadeiramente reflete, pensa e pretende ser algo mais do que um simples relato da história da salvação, tematiza uma filosofia como seu momento interno, isto é, explicita a filosofia, enquanto reflexão transcendental sobre as condições de possibilidade de seu próprio conhecimento, o que enquanto tal já é sempre um momento interno de seu trabalho.

 

IHU On-Line - Qual é a influência dos filósofos Kant e Maréchal no pensamento de Rahner?

Manfredo Araújo de Oliveira - Rahner teve consciência da transformação da filosofia enquanto tal no pensamento de Kant e é esta virada transcendental que ele vai considerar necessária, embora a articulando de uma forma diferente de Kant. O modelo de articulação da teoria filosófica na modernidade, que, em sua elaboração paradigmática em Kant se autodenominou "filosofia transcendental", se interpretou a si mesmo como uma "reviravolta na arte de pensar" e caracterizou-se pelo estabelecimento do ser humano como "sujeito", ou seja, como a instância doadora de sentido a tudo, o princípio e a fonte de inteligibilidade de tudo, e isto tem enormes consequências.

Na metafísica clássica, o ser humano se entende como o lugar em que todo e qualquer sentido se mostra. Na modernidade, ao contrário, o sujeito é o espaço em que se cons¬titui sentido. Trata-se de uma inversão radical: ao invés de uma presentificação ocorre uma produção de sentido pelo sujeito. O fundamento é o próprio ser humano: ele é "hypokeimenon" (sujeito) de todo e qualquer sen¬tido em sua vida teórica e prática. Dessa forma, o sujeito se faz a instância decisiva da arquitetônica da razão.

O confronto crítico de Rahner com Kant se vai fazer através da mediação do pensamento de J. Maréchal, cujo objetivo fundamental foi mediar a metafísica clássica através do método transcendental, ou seja, tratava-se de justificar transcendentalmente o ponto de partida da metafísica — a afirmação do ser — que constitui o fundamento da teoria do ser da tradição metafísica. A tese básica de Maréchal vai, então, consistir na afirmação de que a metafísica, enquanto explicação sistemática da ordem ontológica, é possível porque o ser humano, em sua constituição ontológica, é metafísico, isto é, a afirmação do ser é condição de possiblidade de todo e qualquer conhecimento. O método transcendental emerge aqui como uma estratégia importante no contexto moderno para justificar a postura ontológica que a tradição sempre teve. Rahner vai partir daqui, mas seu esforço teórico se propõe reconstruir toda a metafísica transcendentalmente, ou seja, a virada transcendental é assumida por ele não apenas como uma estratégia útil no contexto do pensamento moderno, mas como um elemento constitutivo do pensamento metafísico enquanto tal.

 

IHU On-Line - Que outros filósofos marcaram o pensamento desse teólogo e o influenciaram?

Manfredo Araújo de Oliveira - Em primeiro lugar, Rahner foi sempre profundamente influenciado pelo pensamento metafísico de Tomás de Aquino. Quando iniciou em Freiburg seu doutorado em filosofia, frequentou os seminários de Heidegger , o que foi decisivo na formulação de seu pensamento uma vez que isto tornou possível ir além de Maréchal na direção da ontologia fundamental e sua nova formulação da questão decisiva do ser. Este contato com Heidegger o conduziu também a introduzir em seu pensamento a questão central da historicidade. Estes estímulos que lhe vieram de Heidegger foram aprofundados através da convivência com grandes pensadores católicos que nesta época também foram marcados pelo pensamento de Heidegger: G. Siewerth, B. Welte, M. Müller e J. B. Lotz .

 

IHU On-Line - Quais os pontos fundamentais de diálogo estabelecidos por Rahner com a modernidade?

Manfredo Araújo de Oliveira - O ponto absolutamente central a que se vinculam todos os outros é a compreensão que o homem moderno tem de si mesmo e sua compreensão da realidade em seu todo. O ser humano se transformou num ser que em todas as dimensões de sua existência planeja racionalmente e manipula a si mesmo, o que significa que no sentido estrito da palavra ele se tornou capaz de projetar e planejar seu próprio futuro. Isto marca decisivamente sua autocompreensão e sua compreensão do todo. Rahner denomina a especificidade da compreensão do homem moderno de “antropocêntrica” e fala de uma “reviravolta antropocêntrica” como a característica da humanidade moderna. Ele aceita o desafio do pensamento moderno, porque não o considera apenas uma moda filosófica passageira, mas a conquista de um patamar crítico que não permite mais um retorno às formas de pensar pré-modernas.

 

IHU On-Line - Para o Cardeal Ratzinger, Rahner concedeu demais à modernidade, acentuando a imanência em demasia. Qual a pertinência dessa crítica e suas implicações para a Igreja e, por outro lado, para a filosofia do nosso tempo?

Manfredo Araújo de Oliveira - Certamente é preciso distinguir aqui entre o relacionamento de Rahner com a modernidade e a questão metafísica da unidade e da diferença do ser em seu todo que se exprimiu como pergunta a respeito da transcendência e da imanência. Para Rahner é impossível pensar aqui dicotomicamente: o ente contingente (imanente) só é enquanto participa de seu fundamento (transcendente), pois não possui seu próprio ser, mas o recebe. Assim, o Absoluto é o fundamento último do ser contingente, de tal modo que o contingente só é enquanto participa do Absoluto que enquanto absoluto é radicalmente distinto do mundo, portanto, transcendente. Porém, em virtude mesmo de sua transcendência absoluta está presente em tudo, perpassa tudo, é radicalmente imanente a tudo. Daí porque para Rahner o axioma fundamental para pensar a relação entre Deus e o mundo é: distância e proximidade, dependência e poder próprio crescem na mesma medida, isto é, dependência radical e realidade genuína do existente que procede de Deus crescem na mesma proporção e não inversamente.

A pergunta a respeito da modernidade parece pressupor que a modernidade é um pensamento da imanência radical. Normalmente quando se fala assim a referência é pelo menos implicitamente ao pensamento pós-idealismo alemão, pois não foi esta a posição dos grandes metafísicos da modernidade (a respeito: OLIVEIRA M./ALMEIDA C. (org.), O Deus dos Filósofos Modernos, 2a. Ed., Petrópolis: Vozes, 2002), nem mesmo de Kant com que Rahner se confrontou. Creio que aqui se trata de um grande equívoco. O que certamente se pode dizer é que de certo modo há uma “ambiguidade” de fundo no pensamento de Rahner na medida em que ele não se deu conta suficientemente do caráter restrito do pensamento transcendental enquanto tal por situar tudo no horizonte da autofundamentação do ser humano. Mesmo que em Rahner o centro do pensamento seja o “Ser”, em última análise Deus (e não a subjetividade finita), o Ser (Deus) é pensado a partir da subjetividade (no pensamento transcendental a subjetividade é a instância doadora de sentido a tudo), o que manifesta a limitação fundamental e a ambiguidade desta postura.

 

IHU On-Line - Em que modo o legado teológico de Rahner oferece subsídios para a construção da autonomia e uma crítica ao individualismo?

Manfredo Araújo de Oliveira - A questão da liberdade, ou seja, da “autonomia”, está no cerne da compreensão de ser humano em Rahner. Para ele a liberdade é a capacidade que a pessoa tem de realizar a si mesma e desta forma ela não é simplesmente uma qualidade própria de um tipo de ação, mas é um distintivo transcendental do ser humano enquanto tal. Como ele afirma nos Escritos Teológicos VI (Schriften VI, p. 223): “a liberdade deve ser pensada antes de tudo como liberdade de ser. Isto quer dizer que o ser humano é aquele ente que tem a tarefa de seu próprio ser; é aquele que já está sempre em relação consigo mesmo, aquele que é subjetividade e não simplesmente natureza. Portanto, esse eu não é algo que possa ser deduzido de outra coisa, ou seja, que possa ser fundamentado em outra coisa”. Em virtude desta sua concepção do eu, foi acusado de ter articulado um pensamento de base individualista, o que o levou várias vezes a mostrar que esta postura não significa uma defesa de um individualismo possessivo como ele emergiu na modernidade. 

 

IHU On-Line – O senhor conheceu Rahner pessoalmente. Quais são suas lembranças mais marcantes dele como intelectual e, por outro lado, como pessoa?

Manfredo Araújo de Oliveira - Conheci Rahner primeiramente durante o Concílio Vaticano II em conferências que ele deu ao episcopado brasileiro. Nesta oportunidade ele falava em latim e começava sempre pedindo desculpas por seu “latim teutônico”. Deu certamente através destas palestras uma grande contribuição para a atualização teológica do episcopado brasileiro. Depois, quando estudante na Alemanha, segui seus cursos de teologia na Universidade de Munique. O estilo universitário alemão não abria muitas possibilidades para um contato pessoal. Acompanhei-o com enorme interesse como homem do saber que procurava responder ao que ele chamava a enorme “concupiscência cognitiva” que marca o ser humano. Era sempre muito interessante ver seus esforços para tornar compreensível sua “teologia transcendental” através de exemplos tirados da publicidade da televisão alemã.

 

Leia mais...

- Contingência e liberdade. A aporia fundamental do sistema hegeliano. Entrevista com Manfredo Araújo de Oliveira na edição 261 da IHU On-Line, 09-06-2008;

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