Edição 446 | 16 Junho 2014

Karl Rahner. Uma teologia em estreita união com a espiritualidade

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Márcia Junges e Ricardo Machado | Tradução: Walter Schlupp

Pesquisador Albert Raffelt traça um perfil do pensamento de Karl Rahner

“Ele [Karl Rahner] estudou a espiritualidade dos primórdios da Ordem dos Jesuítas e de seu fundador a partir das fontes. Superou estreitamentos ecumênicos, chamou a atenção da teologia católica para a problemática dos outros caminhos religiosos e, ainda em sua última década de vida, percebeu e refletiu sobre a crescente importância das outras religiões universais”, explica Albert Raffelt, em entrevista por e-mail à IHU On-Line. “Não demonizou novos movimentos como a teologia da libertação, mas aprendeu deles. Além disso, enfrentou questões sociais e pastorais bem concretas, incluindo questões caritativas específicas como a missão feita nas estações ferroviárias e a assistência a jovens mulheres”, complementa. 

Para Albert Raffelt, a teologia de Rahner parte do ser humano e diz respeito às condições de possibilidade da compreensão da revelação. “No centro da teologia de Rahner, porém, está a autocomunicação de Deus. Nada é reduzido às meras necessidades humanas!”, pondera. 

Com relação a uma mudança na postura teológica do Papa, que desde Bergoglio tornou-se uma pauta mais popular, o entrevistado lembra que Rahner, juntamente com Johann Baptist Metz, já propunha uma perspectiva mais aberta no texto Por um papa dos pobres e oprimidos deste mundo: carta aberta aos cardeais alemães. “O futuro papa de nossa igreja precisa ser — não apenas simbolicamente — um papa dos pobres e oprimidos do mundo: não um papa burguês cosmopolita, iluminista; não um papa focado em assegurar a subsistência interna da igreja; e tampouco um papa focado em promover remendos sociais. O partidarismo dele pelos pobres e oprimidos seria expressão do seguimento de Jesus, para o qual os aflitos eram os privilegiados. Um papa assim colocaria de novo num contexto prático o programa da santidade cristã e do amor resoluto pelos ‘mais pequeninos dos irmãos’, o programa da oração e da luta, e poderia tornar visível algo da relevância política de uma solidariedade isenta de ódio — chegando até a tolice da cruz”, relembra Albert ao reproduzir o texto da carta. 

Albert Raffelt cursou Teologia em Münster, em München e em Mainz, e foi assistente científico junto a Karl Lehmann em Freiburg na Alemanha. É doutor em Teologia com a tese Espiritualidade e Filosofia: sobre o problema da mediação da experiência religioso-espiritual em L'Action de Maruice Blondel. Desde 2000, é professor honorário de Teologia dogmática em Freiburg. Entre suas diversas publicações, citamos Theologie studieren: Wissenschaftliches Arbeiten und Medienkunde (Freiburg: Herder, 2003). Rafelt organizou, ao lado do cardeal Karl Lehmann, a obra Rechenschaft des Glaubens: Karl Rahner-Lesebuch (Zürich: Benziger; Freiburg: Herder, 1979). Juntamente com Hansjürgen Verweyen publicou o livro Leggere Karl Rahner (Ler Karl Rahner), (Brescia: Queriniana, 2004).

Confira a entrevista.

 

IHU On-Line - Qual é a novidade da hermenêutica de Rahner ?

Albert Raffelt - Eu admiro cada vez mais a amplitude da teologia de Rahner: como jovem estudante, ele estudou Orígenes  e Clemente de Alexandria , grandes padres da igreja que pensavam contra todo e qualquer estreitamento. Absorveu e refletiu sobre a tradição ocidental desde Agostinho  até Boaventura  e Tomás de Aquino, e até a muito criticada neoescolástica. Outros teólogos importantes, como Hans Urs von Balthasar, falaram do deserto da neoescolástica! Ele estudou a espiritualidade dos primórdios da Ordem dos Jesuítas e de seu fundador a partir das fontes. Superou estreitamentos ecumênicos, chamou a atenção da teologia católica para a problemática dos outros caminhos religiosos e, ainda em sua última década de vida, percebeu e refletiu sobre a crescente importância das outras religiões universais. Não demonizou novos movimentos como a teologia da libertação , mas aprendeu deles. Além disso, enfrentou questões sociais e pastorais bem concretas, incluindo questões caritativas específicas como a missão feita nas estações ferroviárias e a assistência a jovens mulheres. A lista poderia ser continuada.

Vejo a genuína realização hermenêutica de Karl Rahner na fusão de tantos enfoques históricos e atuais, que, ainda assim, foram mediados com os temas tradicionais (da chamada “teologia de escola” neoescolástica). Rahner não elaborou uma teologia de escrivaninha, mas sempre pensou a partir do centro da vida cristã.

O lado metodológico tem a ver com aquilo que se chamou “virada antropológica”: a teologia de Rahner é uma teologia que parte do ser humano e de suas perguntas; daí o questionamento “transcendental” a respeito das condições de possibilidade da compreensão da revelação. No centro da teologia de Rahner, porém, está a autocomunicação de Deus. Nada é reduzido às meras necessidades humanas! Ainda falarei sobre isso.

 

IHU On-Line - Como se deu seu diálogo com a escolástica e a filosofia moderna?

Albert Raffelt - O próprio Rahner formulou a tarefa da seguinte maneira: “Deve ser possível, numa investigação histórica, apresentar um grande escolástico de tal maneira que o leitor familiarizado com a filosofia moderna perceba imediatamente que nesse caso um filósofo pensa, em sua linguagem, os mesmos problemas com os quais um Hegel  ou um Kant também se ocuparam. Para quem não considera a filosofia uma série desconexa de opiniões mutuamente contraditórias, não pode, em princípio, haver dúvida de que esse resultado deve poder ser alcançado. Mas é preciso admitir que não há muitas tentativas de demonstração aposteriorística desse fato” (SW, v. 2, p. 435). Rahner empreendeu uma tentativa dessas. Ele não repete os enunciados de Tomás de Aquino, mas procura reconstitui-los pensando. Aliás, uma de suas publicações iniciais sobre esse assunto saiu primeiro em português, e só em 1972 em alemão (A verdade em S. Tomás de Aquino. Revista Portuguesa de Filosofia, v. 7, p. 353-370, 1951; em alemão agora SW, v. 2, p. 301-316).

 

IHU On-Line - Qual era a fundamentação filosófica da teologia de Rahner?

Albert Raffelt - Rahner estudou a filosofia neoescolástica a fundo e não a menosprezou. Mas ele tentou realizar a intenção, acima mencionada, de realmente pensar junto com a tradição, e não apenas conservá-la repetindo-a. Segundo sua autocompreensão, ele foi marcado especialmente pelos trabalhos de Joseph Maréchal SJ . Para ele, Maréchal — que, por sua vez, foi influenciado por pensadores como Maurice Blondel  ou Pierre Rousselot SJ  — seguramente empreendeu o programa esboçado na resposta anterior. As palavras-chave para isso são a dinâmica do processo cognitivo, a abertura do espírito humano para a transcendência, que implica uma relacionalidade imediata com Deus, e metodologicamente a abordagem filosófico-transcendental que parte do sujeito.

O fato de ter estudado com Martin Heidegger certamente influenciou a natureza de seu filosofar. Alguns temas heideggerianos também influenciaram os trabalhos de Rahner; no Kleines theologisches Wörterbuch, por exemplo, ele interpreta o conceito heideggeriano de Befindlichkeit [disposição] com o termo básico cristão “coração” como expressão da decisão fundamental tomada de maneira pré-reflexa (SW, v. 17/1, p. 499) — que se chama, na tradição francesa, de option fondamentale. O cardeal Karl Lehmann apontou para o fato de que a teologia do mistério de Rahner tem uma proximidade com o Heidegger tardio, mas não uma dependência dele. Certamente não há dependências genuínas na teologia em termos de conteúdo, como Rahner acentuou repetidamente.

Após suas obras iniciais, Rahner não fez mais uma filosofia autônoma, e sim enunciados teológicos sobre muitos temas filosoficamente importantes (liberdade, responsabilidade, culpa e outras, e naturalmente também sobre a questão do conhecimento de Deus e as outras questões metafísicas fundamentais), que certamente contêm um trabalho em termos do pensamento filosófico — como Tomás de Aquino e muitos outros teólogos, cuja “filosofia” só pode ser depreendida de seu trabalho teológico.

 

IHU On-Line - Quais foram os frutos do debate de Rahner com os teólogos franceses (os dominicanos Congar  e Chenu , e os jesuítas Danielou  e De Lubac ) e alemães (Vorgrimler , Küng , Von Balthasar e Metz)?

Albert Raffelt - Neste caso é preciso fazer várias distinções. Rahner tomou conhecimento bastante cedo da teologia dos jesuítas franceses. Ele leu, por exemplo, os trabalhos de Lubac e também os resenhou e louvou (SW, v. 4, p. 484-485). Através de seu amigo Hans Urs von Balthasar havia mais uma ligação com essa teologia. Na discussão em torno da nouvelle théologie, ele tentou produzir uma mediação com a “teologia de escola” neoescolástica (“existencial sobrenatural”). Penso que ao menos para a eclesiologia e a doutrina da graça se pode verificar uma grande proximidade nesse caso.

Vejo menos ligações diretas com os dominicanos. Naturalmente as publicações dos teólogos mencionados influenciaram Rahner. Mas ele buscou o contato direto com iniciativas dos dominicanos franceses na pastoral (no esboço do Handbuch der Pastoraltheologie). Naquela época, entretanto, isso era difícil, pois as medidas tomadas por Roma contra os sacerdotes operários tornavam suspeitas algumas iniciativas pastorais, de modo que provavelmente isso não pode ser comprovado no projeto posterior do livro Handbuch der Pastoraltheologie.

Já a relação com os teólogos alemães mencionados deve ser definida de modo bem diferente. Havia uma grande proximidade com Hans Urs von Balthasar, e um paralelismo no caso dos estudos dos primeiros padres da igreja (por exemplo, ambos se ocuparam ao mesmo tempo com a teologia monacal de Evágrio Pôntico ). A intenção comum de elaborar uma grande dogmática científica levou até ao fechamento de um contrato com uma editora. Entretanto, neste caso só se chegou até o esboço comum intitulado Über den Versuch eines Aufrisses einer Dogmatik, que Rahner publicou sozinho mais tarde (SW, v. 4, p. 404-448), pois a trajetória de vida de von Balthasar seguiu outros rumos depois de ele sair da Companhia de Jesus. A obra Mysterium salutis: compêndio de dogmática histórico-salvífica (2. ed., Petrópolis, 1978) se baseia nesse esboço. Por isso, Rahner ficou profundamente surpreendido com a crítica incisiva de von Balthasar em seu livro Cordula oder der Ernstfall (1966), que levou a um alheamento que nunca mais foi superado, embora também mais tarde tenha havido colaboração em diversas publicações.

Johann Baptist Metz sempre foi considerado o mais especulativo discípulo de Rahner. Por um lado, sua crítica à teologia transcendental de Rahner o surpreendeu. Assim, quando Metz escreve: “A doutrina da fé transcendental [...] não carrega por demais os traços de uma gnosiologia elitista e idealista?” (Metz, Glaube in Kirche und Gesellschaft, Mainz, 1977, p. 141). Por outro lado, Rahner levou a crítica a sério e refletiu sobre ela. Contudo, também se podem fazer algumas objeções à crítica de Metz. Basta mencionar o seguinte: Rahner fez uma teologia relacionada com a sociedade muito antes do surgimento da chamada “teologia política” e, em minha opinião, fez isso de maneira muito mais concreta, como já foi dito no início. É só comparar o volume SW 10, intitulado Kirche in den Herausforderungen der Zeit [Igreja nos desafios do tempo].

Herbert Vorgrimler foi, durante muito tempo, um dos mais próximos colaboradores de Rahner e decerto tinha um relacionamento particularmente estreito com ele. Ambos também cooperaram como autores (Kleines theologisches Wörterbuch [SW, v. 17/1, p. 461-873]); eles se empenharam pela introdução do diaconato permanente na Igreja Católica (SW, v. 16, 534-536); Vorgrimler foi o editor das Pregações bíblicas (São Paulo, 1968; em alemão: SW, v. 14, p. 221-326), que destroem a lenda de um Rahner que estaria distante da Bíblia (em SW, v. 1, haverá outros testemunhos disso). As cartas francas que Rahner escreveu a Vorgrimler durante o Concílio mostram toda a familiaridade que havia entre eles.

 

IHU On-Line - Em que consistiram as principais divergências que Karl Rahner teve com Hans Küng?

Albert Raffelt - Rahner incentivou Küng, apoiou sua tese de doutorado por meio de um grande ensaio, aceitou seu livro Strukturen der Kirche em sua série Quaestiones disputatae, fundou junto com ele e outras pessoas a revista Concilium, entre outras coisas. Rahner não pôde aceitar o livro Unfehlbar? [Infalível?] de Küng, porque, em sua opinião, neste caso se abandonou o terreno da interpretação católica dos dogmas. A confrontação com Küng acabou levando a um desfecho conciliatório. Mas em termos de conteúdo as divergências permaneceram. A análise mais exata tem de mostrar até que ponto essas divergências podem ser superadas. O próprio Rahner levou muito longe a relativização de uma teologia da infalibilidade extrema — Küng pressupõe uma teologia dessas como pano de fundo de sua crítica ao dogma da infalibilidade — em seu ensaio Zum Begriff der Unfehlbarkeit in der katholischen Theologie  [O conceito de infalibilidade na teologia católica] (SW, v. 22/2, p. 689-703). No engajamento ecumênico ambos estão muito próximos.

 

IHU On-Line - E quais foram os pontos fundamentais do rompimento teológico entre Rahner e Ratzinger ?

Albert Raffelt - Não é fácil identificar uma ruptura teológica entre Rahner e Ratzinger. Existem, em minha opinião, várias divergências em termos de política eclesiástica. Elas se devem, em parte, a razões pessoais. Isso tem a ver com o fato de que o cardeal Ratzinger e o então secretário da Educação da Baviera Hans Maier impediram a convocação de Johann Baptist Metz, discípulo e amigo de Rahner, para a Universidade de Munique (quanto a isso, SW, v. 31, p. 464-475). Isso tem a ver, ainda, com uma visão diferente de questões sociais; também com questões do engajamento político dentro do espaço eclesiástico entre as comunidades de estudantes universitários (quanto a isso, SW, v. 24/2, p. 820-832). Disso provinha também a avaliação diferente da teologia da libertação latino-americana, que Rahner — bem ao contrário de Ratzinger — defendeu diversas vezes. A crítica incisiva de Ratzinger ao plano de uma possível unificação das igrejas apresentado por Karl Rahner e Heinrich Fries  (SW, v. 27, p. 286-396; contra isso, Ratzinger, Internationale katholische Zeitschrift, v. 12, p. 568-582, 1983) também foi formulada publicamente. Por trás disso se podem, naturalmente, identificar divergências eclesiológicas; ainda assim, elas se encontram num terreno comum. Na área propriamente teológica há, finalmente, estilos muito diversos. Rahner opera no marco da “teologia de escola” neoescolástica e procura levá-la adiante, situando-se na tradução escolástica jesuítica. Ratzinger se formou na teologia alemã em sua versão corrente em Munique, menos comprometida com a neoescolástica. Mas não se deveriam exacerbar demais as divergências. Rahner também iniciou com um amplo estudo dos padres da igreja, ocupando-se com Orígenes, Clemente de Alexandria, Agostinho e outros, não sendo, portanto, simplesmente um neoescolástico. Além disso, ele tem muito mais abertura para a modernidade do que Ratzinger. Mas, como mostra a resenha que Ratzinger escreveu (Theologische Revue, v. 74, p. 177-186, 1978) sobre o Curso fundamental da fé: introdução ao conceito de cristianismo de Karl Rahner, um respeita o labor teológico do outro e não se constata — ao contrário do que ocorre no caso das afirmações sobre política eclesiástica — a existência de antagonismo.

 

IHU On-Line - Especialistas dizem que, assim que houver uma “virada” na igreja, Rahner será a base dela e voltará a ser um autor de referência. A ascensão do Papa Francisco poderia ser esse momento? Por quê?

Albert Raffelt - Existe um belo texto de Johann Baptist Metz e Karl Rahner escrito antes da eleição papal de 1978 e intitulado Por um papa dos pobres e oprimidos deste mundo: carta aberta aos cardeais alemães (SW, v. 28, p. 74s.). Nela eles afirmam o seguinte: “O futuro papa de nossa igreja precisa ser — não apenas simbolicamente — um papa dos pobres e oprimidos do mundo: não um papa burguês cosmopolita, iluminista; não um papa focado em assegurar a subsistência interna da igreja; e tampouco um papa focado em promover remendos sociais. O partidarismo dele pelos pobres e oprimidos seria expressão do seguimento de Jesus, para o qual os aflitos eram os privilegiados. Um papa assim colocaria de novo num contexto prático o programa da santidade cristã e do amor resoluto pelos ‘mais pequeninos dos irmãos’, o programa da oração e da luta, e poderia tornar visível algo da relevância política de uma solidariedade isenta de ódio — chegando até a tolice da cruz”. O programa do papa Francisco em Evangelii gaudium  é muito semelhante a esta conclamação daquela época.

 

IHU On-Line - Em que medida o “coração” da teologia de Rahner é a experiência da graça?

Albert Raffelt - É possível abordar essa pergunta a partir de dois lados. No primeiro texto sobre a oração que Rahner publicou quando tinha 20 anos (SW, v. 1, p. 3-4), ele afirma, fazendo referência à Epístola de Tiago, que Deus se aproxima da pessoa que ora, comunica-se à sua criatura e a envolve em seu amor e louvor. E em sua última grande palestra, 60 anos depois, Rahner afirma que a autocomunicação de Deus se encontra no centro de sua teologia (SW, v. 25, p. 47-57). A partir de ambos os lados dessa realidade última e una — do polo subjetivo da experiência da graça e do objetivo da autocomunicação de Deus — podem-se desenvolver todos os temas da teologia de Rahner, desde a antropologia até a doutrina da trindade. Por isso também há, em Karl Rahner, uma unidade tão estreita entre espiritualidade e teologia científica — e entre publicações espirituais e acadêmicas!

Seria possível mencionar exemplos. Assim, no texto intitulado Alltägliche Dinge [Coisas do cotidiano] (SW, v. 23, p. 475-487), Rahner procura evidenciar vestígios da transcendência em atos humanos básicos como andar, sentar, ver, rir, etc. O que impressionou a mim foi — por assim dizer, na outra extremidade da reflexão em comparação com os fenômenos do cotidiano, em meio à “alta teologia” — a pequena doutrina da trindade que se encontra no Curso fundamental da fé (4, nº 4), com sua explicação da proposição de que a trindade histórico-salvífica (econômica) e a imanente são uma só trindade; o que ele diz sobre a proximidade do Espírito Santo “no mais íntimo centro da existência”, a presença do Logos na história concreta e, além disso, as afirmações sobre Deus Pai como “o fundamento e origem inapreensível de sua chegada no Filho e no Espírito” (SW, v. 26, p. 135). Isso parece complicado ao ser resumido mais uma vez assim, mas essa é uma teologia que se pode orar quando se medita sobre o que ela diz. Também se poderia mencionar aqui o pequeno escrito intitulado Erfahrung des Geistes [Experiência do Espírito] (SW, v. 29, p. 38-57). Mas também haveria abordagens bem diferentes para deixar clara a centralidade da experiência da graça. Penso, por exemplo, em algumas contribuições cristológicas.

 

IHU On-Line - Como o evento do Holocausto repercute na Teologia de Rahner?

Albert Raffelt - Os traços básicos da teologia de Karl Rahner foram elaborados antes que ele pudesse se confrontar com o Holocausto. No fim da 2ª Guerra Mundial ele já tinha 41 anos. O horror desse acontecimento também só se tornou paulatinamente claro em toda a sua extensão. Os processos de Auschwitz — lembro-me dos noticiários sobre eles na época da minha juventude — só tiveram lugar a partir de 1963, quando Rahner já tinha quase 60 anos. Foi só nessa época que teólogos começaram a refletir sobre a relevância teológica do acontecimento — no caso de Johann B. Metz a confrontação intensiva com ele ocorreu na década de 1980.

Rahner se posicionou sobre questões concretas, como na discussão sobre a prescrição desses crimes (SW, v. 24, p. 873). Posicionou-se também em sua Introdução ao texto Dein verkannter Bruder [Teu irmão não reconhecido], de André Neher  (SW, v. 27, p. 31-35). Trocou ideias com Friedrich Georg Friedmann  sobre o diálogo judaico-cristão (SW, v. 27, p. 43-48). Um de seus últimos livros, Heil von den Juden? [A salvação vem dos judeus?], é um diálogo com o filósofo e teólogo judeu Pinchas Lapide  (SW, v. 27, p. 397-453). Outros vestígios são apenas indiretos quando ele se ocupou com o tema da teodiceia.

Não se deve limitar o tema a referências diretas ao Holocausto, mesmo que neste caso certamente haja lacunas e oportunidades não aproveitadas. Felizmente os últimos papas trataram intensivamente do diálogo entre judeus e cristãos e o papa Francisco retomou esse tema de forma ainda mais intensiva (cf. o Osservatore Romano de 17 jan. 2014).

 

IHU On-Line - Gostaria de acrescentar algum aspecto não questionado?

Albert Raffelt - As perguntas eram de caráter muito fundamental. Por isso, não gostaria de acrescentar nada mais sobre a teologia de Rahner em termos de conteúdo. Mas talvez seja bom fazer ainda uma breve referência ao tema “Rahner e o Concílio Vaticano II”, pois nos volumes SW 21/1 e 21/2 foram publicados agora, pela primeira vez, todos os textos de Rahner sobre o assunto, desde as primeiras reações e os pareceres da época da preparação do concílio para o cardeal König (Viena), passando pelos esboços elaborados para os bispos alemães — em parte, em conjunto com Ratzinger, mas principalmente com os teólogos jesuítas alemães A. Grillmeier , O. Semmelroth , o bispo e depois cardeal H. Volk  e outros —, até os textos interpretativos sobre o evento do Concílio. Como quase ao mesmo tempo foram apresentados, nos Gesammelte Schriften [Escritos completos], os trabalhos de Joseph Ratzinger sobre o Concílio, agora é possível avaliar, contra as lendas de que teria havido uma manipulação do Concílio (R. M. Wiltgen, The Rhine flows in the Tiber, New York, 1967), o grande trabalho real desses teólogos para o concílio. Para quem busca uma interpretação do trabalho de Rahner para e sobre o Concílio, remeto à palestra sobre Rahner de Günther Wassilowsky, Als die Kirche Weltkirche wurde (disponível em: www.freidok.uni-freiburg.de/volltexte/8551/). A carta nela citada de Karl Rahner a seu irmão Hugo sobre o trabalho do Concílio (“Es ist merkwürdig bei einem Konzil”: Bericht und Ermutigung für den älteren Bruder Hugo Rahner SJ, Stimmen der Zeit, n. 230, p. 590-596, 2012) contém, aliás, também uma referência à colaboração com os bispos brasileiros.

Além disso, gostaria apenas de expressar minha esperança de que também no futuro Karl Rahner seja lido intensivamente como mestre espiritual — afinal, os livros dele sobre o assunto, como Trevas e luz na oração (São Paulo, 1961) e Apelos ao Deus do silêncio (Lisboa, 1968), estão entre suas obras mais disseminadas em nível internacional; belos são também os pequenos escritos, há pouco reeditados, Por que razão nos deixa Deus sofrer? (Braga, 2011) e, muito atual face ao jubileu do Concílio, O Concílio – começar de novo (Braga, 2013). Naturalmente, a obra teológica em seu conjunto continua sendo uma tarefa para o pensamento de todo teólogo também hoje em dia. Olhando-se a lista da bibliografia secundária, com mais de 4.500 títulos (disponível em: http://dspace.ub.uni-freiburg.de/handle/25/2), vê-se que ele continua sendo o mais discutido teólogo católico do passado mais recente. Quando a edição de suas obras completas, Sämtliche Werke, com quase 40 volumes, estiver concluída — o que deve acontecer em breve —, o conjunto de sua obra também estará disponível para leitura. A primeira edição em língua estrangeira está sendo publicada atualmente na França (Œuvres, Paris: Éd. du Cerf, 2011ss). É de se esperar que outras áreas linguísticas se sigam a ela.

Referência:

SW = Karl Rahner, Sämtliche Werke, Freiburg i. Br.: Herder, 1995ss; a conclusão está prevista para 2015 — até agora foram publicados 29 volumes em 35 tomos, e um outro volume está no prelo (SW, v. 1). Faltam ainda o volume 5 (De gratia Christi) e o volume com os índices, SW, v. 32). Um panorama se encontra em www.ub.uni-freiburg.de/fileadmin/ub/referate/04/rahner/rahnerma.htm.

Leia mais...

- “Deus é o homem e o será eternamente”. Entrevista com Albert Raffelt Publicada na edição 102 da IHU On-Line, de 24-05-2004; 

- Rahner e a inovação do pensamento teológico. Entrevista com Albert Raffelt Publicada na edição 297 da IHU On-Line, de 15-06-2009; 

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