Edição 444 | 02 Junho 2014

Neuronarrativas - A hipocrisia institucionalizada da medicalização da saúde mental

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Andriolli Costa

A filósofa Sandra Caponi expõe a perturbação de uma sociedade que aceita — e impõe — sem ressalvas o tratamento médico como solução definitiva para comportamentos desviantes

Com cada vez mais frequência, a elaboração da lista de sintomas e diagnósticos de psicopatologias tem sido alvo de polêmica ou desconfiança. Uma das mais recentes foi quando, ainda em 2013, a nova edição do Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM-5) listava comportamentos tradicionalmente compreendidos como “birra”, “manha” ou “teimosia” como sintomáticos e, portanto, passíveis de tratamento médico.  Ainda que os tratamentos em saúde mental cumpram papel fundamental para promover o bem-estar social e o equilíbrio emocional dos pacientes que deles necessitam, como diagnosticar adequadamente quando os sintomas ou o grupo etário de risco são tão abrangentes? 

Sandra Caponi, filósofa que tem se debruçado sobre o tema da medicalização da saúde mental, acredita que existe algo “muito perturbador, algo de hipocrisia institucionalizada e socialmente aceita por trás da definição de um transtorno como ‘Distúrbio da desregulação perturbadora do humor’ aplicável a crianças de 8 a 18 anos de idade”. Afinal, defende, um diagnóstico psiquiátrico muda completamente o modo como nos vinculamos com os outros, com o mundo e até com nós mesmos.

“Mais de 70% das crianças diagnosticadas com TDAH têm algum tipo de transtorno mental na vida adulta”, esclarece. “Isso significa que a medicação ritalina pode ter atingido o efeito desejado de acalmar a criança. No entanto, esse medicamento não foi uma verdadeira terapia, pois os supostos transtornos continuam na vida adulta”. Para ela, uma série de fatores sociais colabora para os comportamentos desviantes, e o uso de medicamentos nada fará além de anestesiar a pessoa enquanto a fonte dos abusos permanece intocada.

Em entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line, Caponi explora o que é a “anormalidade” e o que representa um diagnóstico de doença mental. Trata da biopolítica da medicalização da saúde e explora a construção das chamadas neuronarrativas. Segundo a filósofa, se antes os relatos referidos à história de vida dos pacientes eram fundamentais para o diagnóstico e a compreensão da fonte dos sofrimentos psíquicos, hoje estes foram substituídos “por narrativas que reduzem a complexidade da vida a explicações que se apresentam como neurológicas: ‘eu tenho déficit de serotonina’, ‘eu tenho um problema nos neurotransmissores’, ‘meu problema está localizado no cérebro’”, elenca. 

Sandra Caponi é graduada em Filosofia pela Universidad Nacional de Rosário (Argentina). Possui mestrado e doutorado em Lógica e Filosofia da Ciência pela Universidade Estadual de Campinas - UNICAMP, com pós-doutorados na Universidade de Picardie e na École des hautes études en sciences sociales, ambas na França. Atualmente é professora do Departamento de Sociologia e Ciências Políticas da Universidade Federal de Santa Catarina - UFSC, atuando ainda na Pós-graduação em Sociologia Política e no Mestrado profissional em Saúde Mental, na mesma instituição. É autora de Loucos e Degenerados: uma genealogia da psiquiatria ampliada (Rio de Janeiro: Fiocruz, 2012) e organizou, entre outros, Medicalização da Vida: ética, saúde pública e indústria farmacêutica (Florianópolis: UNISUL, 2010).

A professora esteve na Unisinos em 22-05-2014, ministrando a palestra Medicalização da saúde mental. O evento, parte do III Seminário preparatório para o XIV Simpósio Internacional IHU – Revoluções tecnocientíficas, culturas, indivíduos e sociedades. A modelagem da vida, do conhecimento e dos processos produtivos na tecnociência contemporânea, ocorreu na sala Sala Ignacio Ellacuría e Companheiros, no IHU. Veja a programação do Simpósio no link http://bit.ly/XIVSIHU.

Confira a entrevista.

 

IHU On-Line - No ano passado, as mudanças no Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM-5) gerou bastante polêmica. Entre alguns pontos, temos a adesão do “Distúrbio da desregulação perturbadora do humor” (que pode atingir crianças e jovens dos 8 aos 18 anos) e as alterações no “Déficit de atenção com hiperatividade” (TDAH), estendendo sua manifestação para toda a vida adulta. Como diagnosticar uma doença mental quando os sintomas ou o grupo etário de risco são tão abrangentes? 

Sandra Caponi – Não existe nenhum critério médico que justifique que algo como ataques de “birra”, ou comportamentos de crianças que antigamente eram consideradas “mal educadas”, possa vir a ser considerado um diagnóstico. Não existem marcadores biológicos, não existem estudos de imagem cerebral, não existem explicações neurológicas para isso. A identificação desses transtornos se reduz à contagem de sintomas. Em geral esses sintomas são ambíguos, pouco consistentes. Fala-se, por exemplo, de crianças que apresentam “irritabilidade persistente e episódios frequentes de explosões comportamentais extremas, três ou mais vezes por semana, durante pelo menos um ano”. Desse modo se silenciam os problemas sociais, familiares, escolares que podem estar levando determinada criança a ter tais explosões de raiva. Pode justamente ser naquele ano em que os pais se separaram, ou que morreu sua avó, ou que tem um menino na escola que pega no seu pé. 

Por fim, existe uma infinidade de situações sociais concretas que podem permanecer ao longo de um ano ou mais e que podem provocar reações legítimas de raiva nas crianças. Toda essa complexidade será desconsiderada quando se atribui a esse comportamento uma explicação biológica, neurológica, cerebral. Dir-se-á, não sem certa ingenuidade (ou cinismo), que essa criança deixará de sofrer porque está medicada, ainda que o contexto social que provocou o sofrimento permaneça idêntico. Acredito que existe algo muito perturbador, algo de hipocrisia institucionalizada e socialmente aceita por trás da definição de um transtorno como “Distúrbio da desregulação perturbadora do humor” aplicável a crianças de 8 a 18 anos de idade.

 

IHU On-Line – Pensando n’O Alienista (São Paulo: Saraiva, 2007), de Machado de Assis , quem seria o normal na visão da medicina?

Sandra Caponi – Acredito que está ali justamente o interesse do texto. Machado de Assis mostra que não existe nenhuma fronteira precisa entre o normal e o patológico quando se trata de doenças mentais. Todos, mesmo o próprio psiquiatra, podem vir a ser diagnosticados com alguma patologia mental. O que achei muito interessante é que o autor escreve O Alienista em 1882, um momento de grandes debates sobre as classificações psiquiátricas. 

A escola francesa, muito influente no mundo inteiro, estava representada pela sociedade Médico-Psicológica de Paris, presidida por Valentin Magnan , um psiquiatra degeneracionista que tinha criado uma classificação muito elástica e extensa que incluía um número extraordinário de novas patologias psiquiátricas. Define mais de 50 novas patologias (dos heredodegenerados ), entre as quais estavam comportamentos que de fato se referiam a circunstâncias que a sociedade desse momento histórico considerava problemáticas ou inadmissíveis. 

Desse modo, identificavam-se como patologias psiquiátricas alguns comportamentos como “a síndrome dos antivivisseccionistas ” ou “a loucura dos vegetarianos”. Nesse contexto escreve Machado de Assis. Ele fala da psiquiatria de seu tempo, observa como perturbador um fato que hoje se tornou banal: a possibilidade de multiplicar indefinidamente os diagnósticos psiquiátricos. Tentou mostrar, utilizando uma fina ironia, e uma figura bizarra como Bacamarte , que essa multiplicação de diagnósticos indica um fato social muito estranho, algo sobre o qual é necessário refletir e, porque não, também rir. 

 

IHU On-Line – A medicalização de condutas classificadas como “anormais” se estendeu a praticamente todos os domínios de nossa existência. A quem interessa a medicalização da vida?

Sandra Caponi – A muitas pessoas. Em primeiro lugar ao saber médico, aos psiquiatras, mas também aos médicos gerais e especialistas. Interessa muito especialmente aos laboratórios farmacêuticos que desse modo podem vender seus medicamentos e ampliar o mercado de consumidores de psicofármacos de modo quase indefinido. Porém, esse interesse seria irrelevante se não existisse uma demanda social que aceita e até solicita que uma ampla variedade de comportamentos cotidianos ingresse no domínio do patológico. 

Um exemplo bastante óbvio é a escola. Crianças com problemas de comportamento mais ou menos sérios hoje recebem rapidamente um diagnóstico psiquiátrico. São medicadas, respondem à medicação e atingem o objetivo social procurado. Essas crianças que tomam ritalina  ou antipsicóticos ficam mais calmas, mais sossegadas, concentradas e, ao mesmo tempo, mais tristes e isoladas. 

Também existe uma demanda de medicalização da vida no mundo adulto. Muitas pessoas chegam aos postos de saúde afirmando que têm ansiedade, depressão, fobia ou pânico e que estão ali apenas para procurar receita para alguma medicação. O antropólogo espanhol Angel Martínez Hernáez  fala de neuronarrativas, explica que, pouco a pouco, os relatos referidos à história de vida dos pacientes, antes essenciais para fechar um diagnóstico e para compreender o contexto no qual apareceram os sofrimentos psíquicos, foi substituído por narrativas que reduzem a complexidade da vida a explicações que se apresentam como neurológicas: “eu tenho déficit de serotonina”, “eu tenho um problema nos neurotransmissores”, “meu problema está localizado no cérebro”. 

 

IHU On-Line – O que representa para uma criança, ou mesmo para um jovem, receber um diagnóstico psiquiátrico e receber esta pecha social da dita “anormalidade”?

Sandra Caponi – Como explica Canguilhem , ter uma condição dita “anormal” significa muito pouco. Todos nós podemos ter uma pequena anormalidade ou anomalia, isto é, algum comportamento que pode ser considerado como um desvio da “norma”. Aquilo que, em determinado momento histórico, se considera normal e frequente. As anomalias têm um valor neutral, nem positivo, nem negativo. O problema ocorre quando um comportamento considerado anormal (fora da norma), como ser “distraído”, passa a ter um valor médico negativo; quando se transforma em uma “patologia”. 

Quando uma criança ou jovem recebe um diagnóstico psiquiátrico, é muito provável que ele se identifique com esse diagnóstico e comece a adquirir o tipo de comportamento que se espera das pessoas que receberam o mesmo diagnóstico. Ian Hacking  afirma que as classificações psiquiátricas criam “modos de ser sujeito”. Uma classificação, um diagnóstico psiquiátrico muda completamente o modo como nos vinculamos com os outros, com o mundo e até com nós mesmos. Um exemplo: mais de 70% das crianças diagnosticadas com TDAH têm algum tipo de transtorno mental na vida adulta. Isso significa que a medicação ritalina pode ter atingido o efeito desejado de acalmar a criança. No entanto, esse medicamento não foi uma verdadeira terapia, pois os supostos transtornos continuam na vida adulta. 

 

IHU On-Line – Nos termos de Agamben , é possível pensar o doente mental como um homo sacer?

Sandra Caponi – Acho que seria simplificar muito um fenômeno complexo. Uma coisa é falar do doente mental institucionalizado no hospital psiquiátrico. Nesse caso concreto, poderíamos sim falar de vida nua, porém sabemos os esforços realizados no sentido de reverter essa situação com os projetos de desmanicomialização, com a criação dos Centros de Atenção Psicossocial  e com a existência de espaços de acolhimento. No entanto, é verdade que algumas dessas velhas práticas que ainda permanecem tendem a reduzir esses indivíduos exclusivamente a uma patologia que pode ser tratada com medicamentos, como os antipsicóticos atípicos . Esses medicamentos possuem efeitos colaterais fatais e irreversíveis que necessariamente limitam as possibilidades de escolha e de reconstrução de sua subjetividade. 

 

IHU On-Line – Como compreender, a partir de Foucault , a biopolítica do tratamento destinado aos doentes mentais?

Sandra Caponi - O conceito de biopolítica tem em Foucault um significado preciso, refere-se à gestão calculada da vida. A biopolítica não é uma política sobre a vida, mas, sim, como afirma Fassin , a criação de instâncias de governo sobre as populações, governo sobre os outros, governo dos vivos. As estratégias biopolíticas são variadas, mas, de acordo com Foucault, nas sociedades liberais e neoliberais existe um modo privilegiado de governar. Ele afirma: “Em um sistema que diz preocupar-se pelo respeito aos sujeitos de direito e pela liberdade de iniciativa dos indivíduos, de que modo os fenômenos referidos à população, com seus efeitos e problemas específicos (saúde, higiene, mortalidade, raças, loucura ou delinquência) podem ser administrados?”. A resposta será: em nome da segurança. 

Acredito que o dispositivo de segurança, com seus estudos estatísticos de antecipação e prevenção de riscos, é o elemento central para compreender a articulação entre biopolítica e psiquiatrização da sociedade no mundo contemporâneo. Essa lógica permite que pequenos comportamentos indesejados (como estar “no mundo da lua”, tamborilar dos dedos, estar a mil) possam passar a ser considerados como indicativos de um transtorno mental grave que ocorrerá no futuro. Fala-se então de crianças em risco de vir a ter uma patologia mental crônica, fala-se de agir antes que essa patologia se cronifique. 

Esse dispositivo que leva a diagnosticar crianças a partir dos três anos de idade leva também a medicalizar tristezas cotidianas para evitar uma depressão grave que poderá vir a aparecer no futuro. A mesma lógica permite explicar o uso cotidiano e extremamente difundido de medicações como os ansiolíticos, utilizados para controlar as mais mínimas e inevitáveis situações de ansiedade e temor que fazem parte de nosso dia a dia.

 

IHU On-Line – Qual o papel da mídia, tanto a tradicional quanto os blogs e comunidades e em redes sociais, na cobertura das doenças mentais? Você acredita que a superexposição de transtornos (bipolaridade, déficit de atenção, etc.) ou mesmo de condições mais graves, como a psicopatia, pode promover uma “histeria coletiva”, colaborando para a medicalização da vida? 

Sandra Caponi - O papel da mídia, dos blogs e das comunidades é importantíssimo, na medida em que serve como um espaço de amplificação e naturalização dessa visão que associa comportamentos cotidianos e sofrimentos inevitáveis a doenças mentais. A indústria farmacêutica tem um papel central em tudo isso. Pelo fato de não ser possível a realização de uma propaganda direta, como ocorre nos Estados Unidos, a publicidade aparece de modos muito mais sutis. Por exemplo, um dos laboratórios que financia o blog (aliás, completíssimo),  da Associação Brasileira de TDAH é nada menos que a Novartis, o laboratório que produz a ritalina. 

Nesses espaços as pessoas criam vínculos de identificação e reconhecimento; fala-se dos sintomas e das medicações. Claro que esses não são espaços para tentar refletir sobre as razões que levam a que, em determinado momento da vida, tenhamos certa sensação de tristeza ou de mal-estar. Os sintomas se apresentam e difundem, logo, reconhecer esses sintomas como próprios é muito simples. Todos nós temos, em algumas circunstâncias de nossas vidas, alteração de sono e apetite, sentimento de culpa, sentimento de inferioridade, mas isso não significa que tenhamos um transtorno mental chamado depressão. 

Sobre a segunda parte da pergunta, a “histeria coletiva”, acho que não será esse o caminho. A medicalização da vida integrou-se como um fato natural, transformou-se, para muitas pessoas, no único modo possível de dar resposta às dificuldades cotidianas de seu dia a dia, e isso ocorreu de modo sutil e constante nos últimos 15 ou 20 anos, sem necessidade de grandes manifestações de histeria coletiva. 

 

IHU On-Line – Nas redes sociais, surgem espontaneamente diversas hashtags relacionadas à magreza e à forma física. #Bikini bridge, #BarrigaNegativa e #TighGap são apenas algumas delas. Em um contexto de exposição e de busca pelo “corpo perfeito”, os transtornos alimentares são o novo mal do século?

Sandra Caponi - Nunca trabalhei com transtornos alimentares. Só posso dizer que a procura pelo corpo perfeito, pela felicidade perfeita, pela saúde perfeita, representa o caminho mais curto para o fracasso. Nunca teremos plena saúde, nem felicidade completa (como afirma o conceito de saúde da OMS), nem corpo perfeito, pois todos envelhecemos. 

Essas demandas sociais ingênuas e inatingíveis podem ser pensadas também como dispositivos biopolíticos. Metas impossíveis em relação às quais podem multiplicar-se os dispositivos de segurança e antecipação dos mais variados medos e temores: medo de ser rejeitado, de não ter boa aparência e não ser admitido num trabalho, de ficar velho, de não levar uma vida feliz, etc. Esses medos, certamente, provocam sofrimentos, porém essas causas não podem ser identificadas a explicações neurológicas, nem ao déficit de serotonina, nem à simples contagem de sintomas. 

 

Leia mais...

- O risco da biologização dos problemas sociais. Entrevista com Sandra Caponi, publicada na edição 420 da IHU On-Line.

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