Edição 444 | 02 Junho 2014

A literatura como tradutora das complexidades sociais atravessadas pelo Direito

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Ricardo Machado | Tradução: Moisés Sbardelotto

Carlos Maria Carcova debate sobre o papel da literatura para a compreensão das questões de fundo com que o Direito se defronta

Na complexa teia em que as sociedades se formam, compreendê-las exige disposição intelectual e conhecimento, cuja literatura exerce papel importante, mesmo quando o paradigma vem da perspectiva jurídica. “Para entender melhor as nossas sociedades, devemos conhecê-las, e os grandes autores da tradição literária latino-americana nos permitiram exatamente isso. Entender como funciona uma sociedade envolve entender também as suas estruturas institucionais e as suas práticas jurídico-políticas”, avalia Carlos Maria Carcova, em entrevista por e-mail à IHU On-Line. “Para dar um exemplo claro para o Brasil, basta lembrar Guimarães Rosa e o seu Grande Sertão: Veredas. E mais tarde o chamado boom da literatura latino-americana, cujos autores, quase sem exceção, tomaram como eixos principais das suas obras os dados esmagadores de uma geografia de miséria e exploração. O mesmo vale para as gerações atuais de escritores da região”, complementa.

Na opinião do professor, esse clima intelectual de novo tipo ainda não chega à especulação dos juristas tradicionais, que, segundo ele, entendem o Direito como um fenômeno mais relacionado às ciências duras que a áreas como filosofia e ciências sociais. “Acabou se universalizando a ideia de que o conhecimento do direito se baseava na dogmática e na exegese, que é o que continua sendo ensinado no mundo inteiro, com raras exceções. Isso implica sustentar que as normas possuem um conteúdo semântico que é unívoco, universal, definitivo e cristalizado. Mas acontece que as normas são linguagem, e afirmar o anterior com relação à linguagem é um verdadeiro disparate”, pondera. “As palavras e os textos que elas formam não dizem qualquer coisa, mas certamente podem dizer mais do que uma, com perfeita plausibilidade”, destaca.

Carlos Maria Carcova é doutor em Direito e professor da Universidade de Buenos Aires - UBA. É diretor do Instituto de Investigaciones Jurídicas Ambrosio L. Gioja, sendo considerado um dos grandes nomes da discussão internacional sobre Direito & Literatura. É autor, entre outros, das obras Las Teorías Jurídicas Post Positivistas (Buenos Aires: Lexis Nexis, 2007), La opacidad del derecho (Madrid: Trotta, 1998) e Derecho, Política y Magistratura (Buenos Aires: Biblos, 1996).

Confira a entrevista.

 

IHU On-Line – Como se dá a incursão da Literatura no Direito e como tal movimento implica nas práticas jurídicas?

Carlos Maria Carcova - Algumas décadas atrás, organizou-se nos Estados Unidos o chamado Movimento do Direito e da Literatura (Law and Literature Movement). Ele era integrado por prestigiosos juristas de diversas tendências, não só teoricamente, mas também politicamente. Sua influência foi notória no mundo inteiro por razões bastante óbvias. No entanto, seria injusto não recordar prestigiosos precedentes como Tulio Ascarelli  e o seu Antígona e Pórcia (In: Rivista Internazionale di filosofis del Diritto, 1955), ou Perelman  e Olbrechts–Tyteca  com o seu Tratado da Argumentação. Muitos são os autores que, de maneira individual, descobriram o isomorfismo existente entre o regime de produção do discurso jurídico e o do discurso narrativo em geral. Esse clima intelectual de novo tipo ainda não chega à especulação dos juristas tradicionais, que continuam entendendo o direito como um fenômeno mais afim às ciências formais ou, em todo caso, às ciências duras, do que com a filosofia e as ciências sociais. De todos os modos, isso está mudando aceleradamente.

 

IHU On-Line – Que papel a Literatura cumpre no sentido de promover o humanismo e ser um campo de tensão com as práticas jurídicas?

Carlos Maria Carcova - Eu não acredito que a literatura tenha por que promover o humanismo. Ela cumpre outras funções, em geral. Grandes literatos foram profundamente anti-humanistas: Malaparte , Céline , apenas para dar alguns poucos exemplos. De todo o modo, o conceito de "humanismo", a meu ver, entra no campo dos suspeitos. A que chamamos de humanismo? A certos valores que consideramos próprios da natureza humana, como diriam os jusnaturalistas. Isso implica pressupor que existem valores imutáveis, trans-históricos e transpessoais. Ao contrário, os valores dominantes de uma época que modelam o chamado humanismo não são mais do que construções históricas que se organizam em luta pela construção do sentido que, em cada época, passa a ser o das classes ou grupos que conseguem hegemonizar o poder. Althusser , para dar um exemplo, era um crítico feroz de qualquer humanismo.

 

IHU On-Line – Como podemos pensar o tema Direito e Literatura, considerando a experiência latino-americana?

Carlos Maria Carcova - A relação direito/literatura compreende a experiência latino-americana, mas a transcende. Porque se trata de entender mais apropriadamente a formulação de uma teoria jurídica a partir de categorias que provêm do campo da linguística. Contando com elas, será mais fácil entender o papel histórico do direito, o modo em que se constrói subjetividade e o problema do poder, não apenas no campo dos conflitos materiais, mas também naqueles que envolvem travar batalha pela apropriação e criação de sentido.

 

IHU On-Line – Que obras da literatura latino-americana nos ajudam a compreender essa relação entre Direito e sociedade? A realidade trazida pelos autores da América do Sul nos ajuda a compreender melhor nossa sociedade?

Carlos Maria Carcova - Para entender melhor as nossas sociedades, devemos conhecê-las, e os grandes autores da tradição literária latino-americana nos permitiram exatamente isso. Entender como funciona uma sociedade envolve entender também as suas estruturas institucionais e as suas práticas jurídico-políticas. Para isso nos ajudaram os clássicos: Da Cunha , Sarmiento , Martí  e tantos outros, impossíveis de enumerar aqui. Também nos ajudaram aqueles que continuaram essas tradições. Para dar um exemplo claro para o Brasil, basta lembrar Guimarães Rosa  e o seu Grande Sertão: Veredas. E mais tarde o chamado boom da literatura latino-americana, cujos autores, quase sem exceção, tomaram como eixos principais das suas obras os dados esmagadores de uma geografia de miséria e exploração. O mesmo vale para as gerações atuais de escritores da região.

 

IHU On-Line – Fazendo um paralelo entre os “rituais jurídicos” — e os possíveis esvaziamentos de sentidos — e a Literatura, como podemos pensar a lei baseada em uma ficção jurídica, conforme sua discussão no livro A opacidade do direito (São Paulo: LTR, 1998)?

Carlos Maria Carcova - Se interpreto corretamente o que você me pergunta, eu sustento que a teoria da ficção desempenhou um papel muito mais importante no desenvolvimento da teoria do direito do que uma teoria da verdade. No direito, e sobretudo no direito judicial, nunca há verdade no sentido forte do termo. Como diz meu amigo José Calvo González [entrevistado neste número da IHU On-Line], com sorte podemos esperar que haja verossimilhança. Ao contrário, a ficção foi um suporte estratégico na prática dos romanos e no que foi, depois, a reinterpretação católico-medieval da fictio juris. Para os primeiros, a fictio juris era considerada uma construção através da qual se assumiam certos atos como acontecidos, com o conhecimento de que isso era falso, a fim de estender, criar ou explicar uma regra legal, porque a lei assim o prescrevia de forma irrefutável. Existem inúmeros exemplos do uso das ficções em diversos institutos do direito romano, como o são a per legis actionem e a per formulam, a capitis diminutio, a imaginarium venditio, para os fins da emancipatio e tantos mais. Diz Enrique Mari : "Com base nesses procedimentos, o direito civil forjava deuses (consagração), filhos (adoção), mudava a vida em morte (morte civil) e a morte em vida (restituição), as pessoas em coisas (capitis...) e as coisas em pessoas (personificação). Abolia a distância e o tempo, para mudar a ausência em presença. Em uma palavra, as ficções administravam um arsenal de técnicas para evitar os obstáculos que a realidade levantava frente às ações humanas, proporcionando uma autêntica alquimia, uma poderosa ferramenta para transformar a realidade".

Por sua vez, a escolástica tirou pragmatismo e naturalismo do instituto, mas o transformou no grande mecanismo de legitimação da autoridade real. A teoria começa com O Policraticus (Cambridge: University Press, 1991), de João de Salisbury , e, provavelmente culmina muito mais tarde com a famosa obra de Kantorowicz , Os dois corpos do rei (São Paulo: Companhia das Letras, 1998). Por sua vez, o direito contemporâneo do Ocidente aceitou sem benefício de inventário a herança da fictio juris. Ela está na base de seus dois grandes pressupostos legitimatórios: que todos os homens são iguais perante a lei, e que o direito se reputa conhecido por todos. E em muitos outros institutos das nossas legislações.

 

IHU On-Line – Que desafios estão postos à interpretação jurídica?

Carlos Maria Carcova - Os desafios que hoje põem em crise as visões hermenêuticas tradicionais são o produto da errônea influência que teve a episteme positivista no campo da ciência do direito. Eu o considero mais próximo das ciências naturais e também das formais do que da filosofia ou das ciências sociais, e, com base nisso, acabou se universalizando a ideia de que o conhecimento do direito se baseava na dogmática e na exegese, que é o que continua sendo ensinado no mundo inteiro, com raras exceções. Isso implica sustentar que as normas possuem um conteúdo semântico que é unívoco, universal, definitivo e cristalizado. Mas acontece que as normas são linguagem, e afirmar o anterior com relação à linguagem é um verdadeiro disparate. As palavras e os textos que elas formam não dizem qualquer coisa, mas certamente podem dizer mais do que uma, com perfeita plausibilidade. Eu sempre recorro a este exemplo: "Todos os homens são irmãos, como Caim e Abel". Com essa expressão, pode-se estar afirmando: a) que todos os homens são irmãos porque descendem de um casal original. Neste caso, Caim e Abel são um exemplo óbvio; b) pode-se estar afirmando que todos os homens (e mulheres) pertencem a uma espécie dentro de um gênero e, por isso, reconhecem-se como membros dela ao mesmo tempo em que se reconhecem seus direitos. Caim e Abel são aqui um exemplo genérico, vago; c) ou pode-se estar dizendo que, na realidade, os homens matam uns aos outros, são os lobos uns dos outros. Nesse caso, o exemplo de Caim e Abel remete à história bíblica e ao assassinato do segundo pelas mãos do primeiro.

Tudo isso serve para provar que o que os textos dizem depende de uma trama de sentidos. Esses são precisamente os problemas que estudamos pela linguística, o que torna inexplicável que essa disciplina mantenha-se absurdamente ausente dos currículos das escolas de direito. O mesmo pode-se argumentar com relação à exegese. As normas dizem coisas cujos sentidos são atualizados de acordo com as mudanças morais, tecnológicas, históricas, científicas, que se produzem no desenvolvimento da vida social. Que sentido teria ir perguntar ao legislador do século XVIII o que ele quis dizer quando mencionou a palavra "veículo"? Embora pareça mentira, é isso que se ensina predominantemente em todo o mundo. Não se trata, no entanto, de uma tese cientificamente equivocada. Trata-se de um recurso político conservador: se cada vez que temos uma perplexidade com relação à aplicação da norma perguntamos não à sociedade, mas sim a um hipotético legislador que nunca existiu (nunca uma única pessoa vota em um corpo colegiado), então garantimos que os valores tradicionais mantenham-se impolutos.

 

IHU On-Line – Do que se trata teoria dos princípios de Ronald Dworkin ? O que significa pensar o Direito em “princípios” e em “regras”?

Carlos Maria Carcova - Dworkin e outros autores pensam que os corpos normativos não contêm exclusivamente normas, mas também princípios, isto é, enunciados que podem ser explícitos ou implícitos que devem guiar a interpretação judicial. Naturalmente, devem-se privilegiar os princípios porque eles são a síntese de valores histórico-comunitários, basicamente de caráter moral e político. Dworkin coloca, por exemplo, o enunciado: "Ninguém deve prevalecer-se da sua má-fé", e argumenta que, esteja ou não contido explicitamente no ordenamento, ele o está como valor próprio de uma cultura compartilhada. Eu não coincido com esse ponto de vista, mas este não é o lugar nem a ocasião para discutir com esse autor.

 

IHU On-Line – Do que se trata a metáfora de Ronald Dworkin do direito em cadeia? O que significa ao juiz adotar o procedimento do escritor em seu trabalho?

Carlos Maria Carcova - Esse autor pensa que o juiz tem como função escrever uma parte da narração em que, finalmente, consistirá o processo. Antes de sua intervenção, já se escreveram trechos de textualidade, de cujo sentido ele não pode se afastar completamente, para não infringir normas que regulam o procedimento. Ele também não pode perder de vista que, depois da sua intervenção, haverá outros textos, escritos por outros autores. Por isso, embora goze de liberdade para construir o seu próprio relato, ele opera com limites, como um sujeito assujeitado. Assujeitado à coerência geral do relato em questão. Desse modo, o processo é visualizado como um texto encadeado, no sentido de que cada elo depende um pouco do que o antecede e também do que o sucede.

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