Edição 442 | 05 Mai 2014

Física quântica: uma proposta para descrever a realidade?

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Patricia Fachin

Para o físico e filósofo Osvaldo Pessoa Jr., é possível que já tenham sido formuladas teses verdadeiras a partir da física quântica, mas não há como saber quais são elas entre as dezenas de propostas sugeridas

“A maior lição das discussões filosóficas sobre a física quântica é que não sabemos qual o seu impacto filosófico”, diz Osvaldo Pessoa Jr. à IHU On-Line, na entrevista a seguir, concedida por e-mail. Segundo ele, “de início parecia que a mecânica quântica teria mostrado que o universo é indeterminista, que nosso conhecimento teria fronteiras claras (conforme argumentado por Bohr) e que a objetividade estaria perdida com o papel não eliminável do sujeito epistemológico. Mas novas interpretações foram surgindo que contornavam essas limitações, e novas propostas interpretativas bizarras se mostraram tão consistentes quanto as outras”. 

A física quântica fornece descrições acerca dos átomos e suas interações, possibilitando conhecimento do mundo microscópico e dos “domínios da realidade que estão afastados de nosso cotidiano macroscópico”, além de suscitar uma série de discussões filosóficas acerca do que é a realidade e, a partir de uma compreensão epistemológica, como podemos conhecê-la. 

Pesquisada entre os físicos desde 1924, a partir da formulação do físico francês Louis de Broglie, a física quântica apresenta dezenas de interpretações “sobre o que acontece na realidade entre as medições experimentais”, diz Osvaldo Pessoa Jr. De acordo com o pesquisador, entre os problemas divergentes abordados pelos físicos, pergunta-se se “seria o elétron uma partícula que segue leis ondulatórias, ou uma onda que colapsa para pacotes de onda confinados, ou um ‘quânton’ que pode exibir aspectos ondulatórios ou corpusculares, ou uma onda com variáveis ocultas associadas a trajetórias contínuas? Ou devemos nos calar sobre o que acontece por detrás das medições, ou a consciência do observador pode interferir diretamente no objeto quântico, ou o universo se desdobra em dois a cada observação de um experimento quântico? Não há uma resposta consensual para essas perguntas de interpretação, e é esta justamente uma parte da ciência que é influenciada pela cultura”. E dispara: “Sabe-se que todas não podem ser simultaneamente verdadeiras. Mas os experimentos que poderiam eliminar grupos de interpretações não são factíveis hoje, e talvez nunca sejam”. 

Ele esclarece que, apesar das divergências interpretativas, há um “consenso sobre o ‘formalismo mínimo’ da teoria, que fornece previsões estatísticas sobre resultados de experimentos. Esta é a parte objetiva desta ciência, ou seja, a parte que seria igual em qualquer cultura que desenvolvesse a física até o estágio que nós atingimos”. 

Osvaldo Pessoa Jr. esteve na Unisinos entre os dias 14 e 16 de abril, ministrando o minicurso Fundamentos da Física Quântica e a aula inaugural do curso de Filosofia, intitulada O problema mente-corpo da perspectiva da Filosofia da Física. O evento foi promovido pelo Diretório Acadêmico de Filosofia e teve o apoio da Filosofia Unisinos. 

Osvaldo Pessoa Jr. é graduado em Física e em Filosofia pela Universidade de São Paulo - USP, mestre em Física Experimental pela Universidade Estadual de Campinas - Unicamp e doutor em História e Filosofia da Ciência pela Indiana University. Atualmente é professor Associado no Departamento de Filosofia da USP. Também faz parte do Grupo de Pesquisa CNPq “A cognição em mentes sociais: aspectos biológicos, semânticos e culturais”, coordenado pela professora Sofia Stein, da Unisinos. 

Confira a entrevista. 

 

IHU On-Line – O que é a mecânica quântica?

Osvaldo Pessoa Jr. - A mecânica quântica, ou física quântica, é a física que descreve os átomos e suas interações. Ao longo da evolução biológica, nosso cérebro se adaptou muito bem para entender o meio natural à nossa volta e o nosso meio social, mas não os domínios da realidade que estão afastados de nosso cotidiano macroscópico. Assim, é intuitivo que a teoria quântica seja contraintuitiva. Em outras palavras, é compreensível que o mundo quântico seja bastante estranho!

A teoria desenvolvida a partir de 1926 fornece uma espécie de linguagem matemática para lidar com fenômenos dos mais variados campos: física nuclear, física de partículas, óptica quântica, química molecular, etc. 

 

IHU On-Line – O que são os chamados ‘fundamentos’ da mecânica quântica? Existe unanimidade quanto à definição/aceitação dos fundamentos? Em que aspectos há divergências?

Osvaldo Pessoa Jr. - Há um consenso sobre o “formalismo mínimo” da teoria, que fornece previsões estatísticas sobre resultados de experimentos. Esta é a parte objetiva desta ciência, ou seja, a parte que seria igual em qualquer cultura que desenvolvesse a física até o estágio que nós atingimos. Por exemplo, é um fato objetivo que a luz, ao incidir em um detector macroscópico sensível, é detectada em pacotes discretos de energia, e na forma de pontinhos discretos (chamados “quanta”). 

Por outro lado, há diferentes interpretações sobre o que acontece na realidade entre as medições experimentais. Seria o elétron uma partícula que segue leis ondulatórias, ou uma onda que colapsa para pacotes de onda confinados, ou um “quânton” que pode exibir aspectos ondulatórios ou corpusculares, ou uma onda com variáveis ocultas associadas a trajetórias contínuas? Ou devemos nos calar sobre o que acontece por detrás das medições, ou a consciência do observador pode interferir diretamente no objeto quântico, ou o universo se desdobra em dois a cada observação de um experimento quântico? Não há uma resposta consensual para essas perguntas de interpretação, e é esta justamente uma parte da ciência que é influenciada pela cultura. Assim, na Paris pós-modernista, defende-se que o conceito de realidade quântica deve ser abandonado de vez. 

Por “fundamentos”, entende-se em primeiro lugar as bases matemáticas da teoria quântica, que podem ser formuladas de diferentes maneiras, ou propostas matemáticas para completar ou alterar as bases da teoria. Em segundo lugar, a área de fundamentos explora questões conceituais e filosóficas que são abordadas de distintas maneiras pelas diferentes interpretações. Tais questões incluem o problema da medição, a natureza dos estados emaranhados de duas ou mais partículas, o princípio de incerteza, a transição para o mundo clássico, a natureza do tempo, etc. 

 

IHU On-Line – O que seria uma ontologia para a física quântica? 

Osvaldo Pessoa Jr. - Por ontologia, entende-se a discussão sobre aquilo que é real, ou simplesmente sobre “o que é”. As interpretações da teoria quântica se dividem em dois grandes grupos, as realistas e as antirrealistas. As visões antirrealistas, como a interpretação da complementaridade de Niels Bohr  ou a interpretação instrumentalista dos físicos matemáticos, recusam-se a discutir a realidade que está por trás das medições experimentais. A ontologia dessas visões se resume ao mundo observável. Já as visões realistas postulam uma realidade bem definida a cada instante, mesmo que nenhuma medição tenha sido realizada. Assim, a ontologia destas interpretações inclui não só o mundo observável, mas também o inobservável. 

 

IHU On-Line – Como e em que aspectos a física quântica se diferencia e supera a física newtoniana?

Osvaldo Pessoa Jr. - Mencionarei quatro pontos, que me parecem os principais. Em primeiro lugar, podemos dizer que a física quântica descobriu que toda a matéria tem propriedades ondulatórias. Isso foi formulado explicitamente por Louis de Broglie , em 1924, mas havia sido antevisto teoricamente, noventa anos antes, pelo matemático William Rowan Hamilton . Além disso, Max Planck , em 1900, foi o primeiro a tropeçar no fato mencionado anteriormente, de que todas as medições envolvem trocas discretas de quanta. À medida que a teoria foi sendo construída, percebeu-se também que a interação entre duas entidades quânticas é de natureza diferente de qualquer interação clássica, pois elas podem entrar em um estado “emaranhado”, de natureza holista, não separável. O primeiro a fazer isso foi Werner Heisenberg , em 1926, ao descrever os dois elétrons do átomo de hélio. Por fim, podemos mencionar a distinção entre dois tipos de partículas, bósons e férmions, que não era prevista pela física clássica. 

 

IHU On-Line – Qual é a posição do sujeito epistemológico dentro da visão de mundo fornecida pela teoria quântica? O que diferencia em relação ao sujeito epistemológico da teoria newtoniana?

Osvaldo Pessoa Jr. - Em medições na física clássica, que engloba a mecânica newtoniana, a termodinâmica, a óptica e o eletromagnetismo, geralmente podemos desprezar o distúrbio causado pelo observador sobre o objeto sendo medido. Tal distúrbio sempre existe, por exemplo quando um radar mede a velocidade de um carro, mas o efeito sobre o carro é muito pequeno, alterando sua velocidade apenas em uma parte em um quatrilhão. Às vezes o efeito não é desprezível, por exemplo quando usamos um termômetro simples para medir a temperatura dentro de uma uva fria: quando a medição se completa, a uva já esquentou, por conta do calor transmitido a ela pelo bulbo do termômetro. Mesmo assim, podemos usar a física para calcular o valor inicial da temperatura da uva. 

No caso da física quântica, não há como fazer esse tipo de correção, basicamente porque nossos equipamentos de medição são sextilhões de vezes maiores e mais energéticos do que o sistema atômico sendo estudado. Além disso, a formação de um quantum detectado é um processo imprevisível, o que levou a interpretação ortodoxa da complementaridade, cuja primeira formulação foi feita por Bohr em 1928, a estipular uma “descontinuidade essencial” que impediria, em princípio, qualquer tentativa de correção. Em outras palavras, a medição provoca um distúrbio incontrolável sobre o objeto quântico. 

Esta concepção foi explorada por diferentes cientistas e filósofos, e levou alguns como Fritz London  & Edmond Baue r a considerar que o essencial neste processo não seria a presença de um aparelho macroscópico, mas a de um observador consciente. Isso levou a uma interpretação “mentalista”, em que a consciência do observador humano provocaria diretamente um colapso na onda quântica. Essa ideia, que muitos consideram maluca, passou a ser desenvolvida por muitos físicos importantes e influenciou em muito a visão popular que se tem da física quântica, incluindo a onda de misticismo quântico que teve seu auge na primeira década do novo milênio.

A questão sobre o “sujeito epistemológico” na mecânica quântica envolve essa discussão sobre o papel do observador consciente ou o papel do aparelho de medição na constituição do objeto quântico. “Epistemologia”, como todo filósofo sabe, é o estudo de como conhecemos as coisas. No contexto da física quântica, é o estudo de como podemos conhecer algo que é alterado pelo próprio ato do conhecimento. É desnecessário dizer que há dezenas de interpretações diferentes para este problema. 

 

IHU On-Line – Quais os temas dentro da filosofia da ciência que têm como objeto a física quântica?

Osvaldo Pessoa Jr. - Podemos dividir a filosofia da ciência em questões ontológicas e epistemológicas, além das questões relativas a valores (axiológicas). Nossos cursos de filosofia da ciência tendem a enfocar mais as questões epistemológicas, que incluem a discussão sobre a metodologia científica. Por exemplo: Qual é o papel da indução, da dedução e das analogias na ciência? Em que medida a ciência é essencialmente cumulativa, em que medida ocorrem transições revolucionárias? Onde devemos nos situar no debate entre realistas e antirrealistas? Qual a natureza de uma lei científica? O que é uma explicação? 

Por outro lado, há discussões muito interessantes em filosofia da ciência que são de natureza ontológica, e que incluem o estudo histórico de ontologias científicas anteriores ao século XX. No contexto contemporâneo, algumas questões ontológicas importantes são: Como o tempo teve início? Há espaço “absoluto” ou ele é gerado pela relação entre os corpos materiais? O universo é estritamente determinista (causal)? O reducionismo entre escalas (micro, macro) pode ser associado ao nosso mundo, e em que sentido isso pode (ou não) ser feito? Qual o lugar da vida e da mente no universo físico? Entidades matemáticas existem independentemente de seres pensantes, ou são apenas construções mentais?

Na filosofia da física quântica, hoje em dia, discutem-se mais questões ontológicas do que epistemológicas. Estas últimas aparecem no perene debate entre realistas e antirrealistas: a ciência deve tentar descrever a realidade não observável, ou deve se ater ao que é mensurável? Porém, são as questões ontológicas que atraem mais os filósofos da física, que podem ser resumidas na questão de qual é a melhor interpretação da teoria quântica. E dentre os problemas a serem resolvidos estão o da natureza da não-localidade quântica (ou do emaranhamento), o problema de medição (como explicar a redução do estado quântico), a transição para a física clássica e a natureza do princípio de incerteza.

 

IHU On-Line - O senhor explica que os estudos de física quântica têm mais interesse nas investigações ontológicas do que nas epistemológicas. Pode-se afirmar, a partir dessa perspectiva, que a ciência recorre, em certa medida, a uma abordagem ou investigação metafísica?  

Osvaldo Pessoa Jr. - A resposta a esta pergunta pode variar conforme a área científica, mas pode-se dizer que houve um aumento em interesse por questões metafísicas a partir da década de 1960. Até esta data, a ciência em geral estava fortemente influenciada pela tradição positivista. Segundo Kolakowski , o positivismo se caracteriza por uma tentativa de reduzir todos os enunciados teóricos de um campo científico a enunciados de observação (evitando fazer referência a entidades não observáveis), pelo nominalismo (que evita falar nas propriedades das coisas como tendo uma realidade independente, como universais), pela separação entre fato e valor e pela tese da unidade metodológica da ciência. No início dos anos 1970, na área de física quântica, começa-se a discutir com mais intensidade as questões relacionadas ao teorema de Bell e ressurge o interesse em interpretações realistas. Esse processo é mapeado em detalhes por Olival Freire Jr. , da Universidade Federal da Bahia, em seu livro The quantum dissidents, a sair no ano que vem. Na física de partículas, a consolidação do chamado "modelo padrão" coloca a abordagem da teoria quântica de campos como programa de pesquisa hegemônico, e isso incentiva os físicos a falarem de entidades inobserváveis como sendo reais, como quarks e partículas virtuais. A especulação crescente que se encontra na cosmologia, guiada por modelos matemáticos, é claramente metafísica. 

Na psicologia, também ocorre um declínio do behaviorismo, fortemente positivista, e uma ascensão da psicologia cognitiva, que não é exatamente metafísica, mas introduz hipóteses (inspiradas na computação) a respeito da estrutura da mente. E nas ciências biológicas em geral, o grande avanço nas técnicas de observação microscópica e de geração de imagens permitiu que se fale de objetos e processos moleculares como sendo reais, coisa que no passado era considerado como mera especulação metafísica. Mas visões antirrealistas permanecem fortes em vários contextos, como na física quântica, na crítica ao reducionismo à biologia molecular e em todo movimento pós-modernista, que é bastante forte nas ciências humanas. 

 

IHU On-Line – Quais são as implicações filosóficas da física quântica?

Osvaldo Pessoa Jr. - Creio que a maior lição das discussões filosóficas sobre a física quântica é que não sabemos qual o seu impacto filosófico! De início parecia que a mecânica quântica teria mostrado que o universo é indeterminista, que nosso conhecimento teria fronteiras claras (conforme argumentado por Bohr), e que a objetividade estaria perdida com o papel não eliminável do sujeito epistemológico. Mas novas interpretações foram surgindo que contornavam essas limitações, e novas propostas interpretativas bizarras se mostraram tão consistentes quanto as outras. Podem-se contar em torno de cem interpretações da teoria quântica, e sabe-se que todas não podem ser simultaneamente verdadeiras. Mas os experimentos que poderiam eliminar grupos de interpretações não são factíveis hoje, e talvez nunca sejam. No meu modo de ver, esta é a grande lição (epistemológica) da filosofia da física quântica: é plausível que teses verdadeiras já tenham sido propostas sobre a natureza oculta do mundo quântico, mas não temos como saber quais são elas, dentre as dezenas de propostas já sugeridas. 

 

IHU On-Line – Quais são os principais teóricos da física quântica em seus primórdios? 

Osvaldo Pessoa Jr. - Uma lista de dez físicos teóricos que teriam sido os mais importantes na formulação e interpretação da física quântica foi proposta por Sheilla Jones,  em seu livro The quantum ten (2008). Além de Max Planck, que ela deixou de fora por não ter participado dos debates em torno de 1927, ela conta a história dos seguintes físicos, por ordem de ano de nascimento: Albert Einstein , Niels Bohr, Paul Ehrenfest , Max Born , Erwin Schrödinger , Louis de Broglie, Wolfgang Pauli , Werner Heisenberg, Paul Dirac  e Pascual Jordan . Além disso, devemos relembrar os físicos experimentais que tiveram papel importante nesse avanço, e que tendem a ser menos lembrados pelos historiadores e divulgadores, que geralmente têm formação livresca e não técnica. Uma lista de onze nomes incluiria: Otto Lummer , Philipp Lenard , Pieter Zeeman , Heinrich Rubens , Robert Millikan , Ernst Rutherford , Johannes Stark , James Franck , Hans Geiger , Otto Stern  e Arthur Compton .

 

IHU On-Line – Qual o impacto científico e/ou tecnológico hoje da física quântica? Qual a importância da física quântica para o progresso científico?

Osvaldo Pessoa Jr. - É comum os divulgadores de física ressaltarem que quase toda a tecnologia atual seria impossível sem a teoria quântica: transístores, luz laser, energia nuclear, dispositivos de cristal líquido, supercondutores, superfluidos, etc. É verdade que a teoria quântica foi usada em todos esses avanços tecnológicos, mas não está claro até onde teríamos chegado se, por alguma razão, a teoria quântica fosse impedida de ser descoberta. Neste cenário contrafactual, em que as diferentes teorias da física clássica, incluindo a teoria da relatividade, fossem mantidas como a melhor descrição do mundo físico, talvez alguns dispositivos, como os transístores e o laser, pudessem ter sido desenvolvidos. Mas outros, como os avanços recentes em informação quântica, sem dúvida necessitam da teoria quântica.

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