Edição 442 | 05 Mai 2014

Hegemonia e Populismo revisitados no pensamento de Laclau

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Márcia Junges e Andriolli Costa

Daniel de Mendonça explora as críticas e propostas de avanço feitas pelo filósofo argentino à visão marxista, introduzindo ainda uma visão menos ideológica dos governos populistas na América Latina

No dia 13 de abril de 2014 morre o filósofo argentino Ernesto Laclau. Referência mundial para o pensamento pós-marxista, o pensador sofreu um ataque cardíaco em Sevilha, Espanha, para onde havia viajado em virtude de uma conferência. Para o cientista político Daniel de Mendonça, Laclau “foi um dos mais proeminentes teóricos políticos do final do século XX e do início deste século”, autor de obras que “nos ajudam a refletir, de forma refinada, acerca dos elementos ontológicos da política, marcada indelevelmente pela contingência e precariedade”.

Laclau debruçou-se sobre as lógicas do populismo, despindo dela a característica ideológica e propondo uma visão mais complexa. Em sua obra, o “movimento populista pode ser positivo, negativo, de esquerda, de direita, inclusivo ou excludente”, expõe Mendonça. O pensador era especialmente identificado com o kirchnerismo, tendo sido definido pelo jornal La Nacion como o “guru dos Kirchner”. No entanto, Mendonça defende que ele nunca foi “conselheiro político de ambos os presidentes”, e que “tal acusação reduz a importância e o impacto que a obra laclauniana produziu, pelo menos no Ocidente”.

Em entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line, Mendonça explora a evolução e a divisão do pensamento de Laclau, a importância da colaboração de sua esposa, a filósofa Chantal Mouffe, e dedica especial atenção à crítica do filósofo argentino à visão tradicional marxista do conceito de Hegemonia — que mais tarde é revisitado por Laclau, trabalhando também o conceito de populismo. 

“Dois são basicamente os pontos de críticas dos autores de ‘Hegemonia’ em direção ao marxismo. O primeiro: a divisão simplista da sociedade em duas classes antagônicas não faz muito sentido em contextos sociais marcados pela incessante multiplicação de identidades fundadas a partir de elementos estranhos à relação capital/trabalho”, destaca. “O segundo ponto é a crítica que os autores opõem ao marxismo, entendido como economicamente essencialista, o que, para eles, mina definitivamente qualquer entendimento mais complexo sobre as sociedades contemporâneas.”

Daniel de Mendonça é graduado em Ciências Jurídicas e Sociais pela Pontifícia Universidade Católica - PUCRS e possui mestrado e doutorado em Ciência Política pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Concluiu ainda pós-doutorado em Ideology and Discourse Analysis na University of Essex. Atualmente é professor na Universidade Federal de Pelotas e coordenador do Programa de Pós-Graduação em Ciência Política da mesma universidade. É autor e organizador de diversos livros, como Democracia e processos políticos (Pelotas: Editora da UFPel, 2011), Pós-estruturalismo e teoria do discurso: em torno de Ernesto Laclau (Porto Alegre: EDPUCRS, 2008) e Ernesto Laclau & Niklas Luhmann: pós-fundacionismo, abordagem sistêmica e as organizações sociais (Porto Alegre: EDIPUCRS, 2006). 

Confira a entrevista.

 

IHU On-Line - Quem foi Ernesto Laclau ?

Daniel de Mendonça - Ernesto Laclau foi um dos mais proeminentes teóricos políticos do final do século XX e do início deste século. Autor de obras fundamentais, tais como Hegemony and Socialist Strategy (United Kingdom: Verso Books, 1985), escrito em colaboração com Chantal Mouffe , Emancipação e Diferença (Rio de Janeiro: EdUERJ, 2011), A Razão Populista (São Paulo: Três Estrelas, 2013), que nos ajudam a refletir, de forma refinada, acerca dos elementos ontológicos da política, marcada indelevelmente pela contingência e precariedade.

 

IHU On-Line - Qual é a importância da parceria intelectual de Laclau com sua companheira Chantal Mouffe?

Daniel de Mendonça - Fundamental. Hegemony and Socialist Strategy, livro escrito por ambos, estabelece as bases para o pensamento posterior de Laclau. No entanto, após esta obra, Laclau claramente assume um projeto teórico no nível da ontologia política, enquanto Mouffe dedica-se ao debate ôntico acerca de modelos democráticos e que redunda na sua formulação do pluralismo agonístico.

 

IHU On-Line - Em que medida esses dois autores promovem um encontro do marxismo com outras correntes como o pós-estruturalismo e a psicanálise lacaniana?

Daniel de Mendonça - Desde Hegemonia a relação dos autores com o marxismo foi sempre marcada por tensões. Ainda que algumas categorias centrais da tradição marxista estejam presentes, sobretudo nos textos de Laclau, elas aparecem sempre alteradas se comparadas com suas formulações originais. E não são alterações pequenas, tendo em vista que Laclau passa a ver, por exemplo, a noção de hegemonia a partir do olhar contingente pós-estruturalista de tipo pós-fundacional. Já a psicanálise lacaniana passa a ser incorporada pela teoria laclauniana paulatinamente desde Hegemonia e atinge seu ápice em A Razão Populista. Assim, o “encontro” um tanto “desencontrado” entre o marxismo com o pós-estruturalismo e a psicanálise lacaniana é, no limite, aquele que acaba por demonstrar as aporias e os limites do próprio marxismo como uma teoria social capaz de dar respostas satisfatórias aos problemas desta contemporaneidade. 

 

IHU On-Line - Quais são as duas fases da obra desse pensador e quais são suas características fundamentais?

Daniel de Mendonça - Podemos grosso modo dividir a obra de Laclau em dois momentos distintos, com a observação de que a passagem de um para o outro não representa uma completa ruptura. A primeira delas, a fase marxista, presente na obra Política e Ideologia na Teoria Marxista, está marcada pela influência que Laclau tem ali da tradição marxista, notadamente de Gramsci e de Althusser. A segunda fase, pós-marxista e pós-estruturalista, que ocorre a partir da publicação de Hegemony and Socialist Strategy, em 1985, caracteriza-se pelo rompimento com o essencialismo econômico marxista, como disse acima, e com a incorporação da dimensão contingente do político. No entanto, algumas categorias teóricas que já vinham sendo desenvolvidas no momento marxista do autor, tais como antagonismo, hegemonia e articulação, permaneceram em seu edifício teórico, ainda que, é claro, ressignificadas em vários aspectos.

 

IHU On-Line - Como é possível compreender a aproximação entre Laclau e o kirchnerismo ?

Daniel de Mendonça - Acredito que tal aproximação tem a ver com dois movimentos concomitantes, um político e outro teórico. O político, por parte de Laclau, deve-se, entendo, sobretudo por ele ter retomado a discussão sobre o populismo, a qual foi primeiramente desenvolvida ainda na sua fase marxista, na obra Política e Ideologia na Teoria Marxista (São Paulo: Paz e Terra, 1979). Tal retomada ocorreu, em 2005, com a publicação da impactante obra A Razão Populista. Neste último livro, Laclau reconfigura o próprio sentido do termo populismo, retirando-o da incômoda e histórica posição negativa, produzida no contexto da teoria política liberal, e atribuindo-lhe um sentido inovador. Ou seja, para Laclau, populismo é uma forma de construção de identidades políticas. 

Já o movimento político ocorrido na Argentina com a ascensão de Néstor Kirchner, seguido pela atual presidente, Cristina Kirchner, foi sempre visto com simpatia por Laclau, uma vez que nestas administrações ele identificava justamente o lado positivo do populismo, ou seja, o de uma liderança política buscar ouvir e dar voz às identidades populares argentinas. No entanto, é importante frisar, ao contrário de acusações infundadas erigidas de parte daqueles que são politicamente antagônicos ao kirchnerismo, que Laclau nunca foi o “teórico K”, ou seja, não foi o conselheiro político de ambos os presidentes. Tal acusação reduz a importância e o impacto que a obra laclauniana produziu pelo menos no Ocidente. Suas ideias e seus livros estão difundidos na Europa e por toda a América desde o final da década de 1980, e a sua obra-prima sobre o populismo, mencionada acima, definitivamente não pode ser lida como uma contextualização do caso argentino recente.

 

IHU On-Line - Em que sentido ele renova as concepções de hegemonia e populismo? E em que aspectos sua proposta vai contra as visões mais difundidas de populismo?

Daniel de Mendonça - Bem, começarei pela noção de hegemonia e buscarei ligá-la mais a frente com a de populismo, pois entendo que, em certa medida e em certo contexto, elas podem ser vistas como sinônimos. Hegemony and Socialist Strategy foi uma obra decisiva para a renovação da concepção marxista de hegemonia. Neste trabalho, Laclau e Mouffe promovem inicialmente de uma genealogia do conceito de hegemonia para possibilitar a sua desconstrução, no sentido de demonstrar todas as potencialidades e limitações do desenvolvimento desta noção no âmbito da tradição marxista no século XX. Feita tal operação, os autores passam a discutir o potencial explicativo de hegemonia no contexto das sociedades ocidentais democrático-liberais. É claro que uma operação como esta não deixa de ser, ao mesmo tempo, também uma crítica à limitação da tradição marxista, uma vez que esta não oferece elementos capazes de realmente ajudar no entendimento das sociedades ocidentais. 

Dois são basicamente os pontos de críticas dos autores de “Hegemonia” em direção ao marxismo. O primeiro: a divisão simplista da sociedade em duas classes antagônicas não faz muito sentido em contextos sociais marcados pela incessante multiplicação de identidades fundadas a partir de elementos estranhos à relação capital/trabalho. O segundo ponto é a crítica que os autores opõem ao marxismo, entendido como economicamente essencialista, o que, para eles, mina definitivamente qualquer entendimento mais complexo sobre as sociedades contemporâneas. Isto porque Laclau e Mouffe refletem sobre a política não a partir do estabelecimento de essências ou de fundamentos definitivos (tal como o essencialismo econômico em última instância marxista), mas tendo em vista a permanente contingência e precariedade que, segundo eles, marcam ontologicamente a política.

É neste contexto, e também por causa deste contexto de instabilidade política que, para os autores, a noção de hegemonia tem lugar. Hegemonia é o resultado de um processo de articulação política muito amplo. Para que ela exista, primeiramente, uma série de identidades políticas que, a princípio, não têm relação entre si, têm de estabelecer uma relação articulatória contra inimigos comuns, os quais podem ser um regime opressor, uma ameaça estrangeira, por exemplo. Neste sentido, a política inicia a partir de uma relação de negatividade, marcada pelo antagonismo. Estabelecida esta relação de articulação, é preciso que haja a representação deste conjunto identitário tão heterogêneo. É aqui que a ideia de hegemonia tem lugar, visto que uma dentre as identidades articuladas exercerá — de forma contingente e precária, frise-se! — tal tarefa de representação política. 

Assim, hegemonia é o momento em que uma identidade assume a tarefa de representar um projeto político mais amplo. Por exemplo, no Brasil, há exatos 30 anos, ocorreu a mais importante campanha cívica do país, o movimento das “diretas já”. A demanda “votar para presidente” exerceu a tarefa hegemônica de representar outras demandas que igualmente estavam postas naqueles idos de 1984, como “democracia”, “reforma agrária”, “igualdade civil entre mulheres e homens”, entre outras.  

É neste sentido que devemos também compreender a ideia de populismo tal como apresentada por Laclau, visto que, a exemplo de hegemonia, o populismo também pressupõe um processo de representação cujo corolário se dá no nome do líder. A exemplo de hegemonia, a lógica populista ocorre sempre num terreno contingente, o que indica que este discurso pode ter os mais variados conteúdos. Assim, e Laclau frisava com muita frequência, um movimento populista pode ser positivo, negativo, de esquerda, de direita, inclusivo ou excludente. Isto quer dizer, e esta é a grande inovação laclauniana, que o populismo não tem um conteúdo ideológico característico, e os exemplos que Laclau menciona — que vão desde as experiências políticas lideradas de Mussolini até Mao Tse Tung — indicam as suas múltiplas possibilidades de aparição. Esta possibilidade de olhar para o fenômeno populista, como sabemos, contrasta grandemente com a literatura sobre o tema, a qual, normalmente, lhe atribui aspectos somente negativos, tais como o engano que o líder faz as massas incorrerem, ou o da ocorrência do populismo pelo fato de um subdesenvolvimento político de um país, entre outros. 

 

IHU On-Line - Como a obra A Razão Populista faz a ponte entre os projetos populistas da América Latina, como o chavismo e o kirchnerismo?

Daniel de Mendonça - Para responder a esta pergunta, vou rapidamente retomar os principais pontos da operação populista segundo Laclau. Preocupado em explicar o populismo como a construção de uma lógica política, Laclau apresenta seu argumento num nível teórico-formal. Assim, como afirmei há pouco, o autor desvincula a sua formulação de argumentações ideológicas, temporais, históricas, numa palavra, ônticas, presentes em tentativas frustradas de compreender esta lógica política em sua especificidade. Segundo ele, a unidade mínima considerada para a possibilidade de uma experiência populista é a demanda. 

Existem, para o autor, duas formas de compreender esta categoria. Demanda pode ser um pedido (uma simples solicitação), ou uma reivindicação. Na primeira forma, a demanda é vista como uma solicitação diretamente feita aos canais institucionais formais. Assim, a falta de uma escola primária num determinado bairro pode ensejar tal pedido à municipalidade. Se a escola é construída, o problema termina, a demanda exaure-se. O atendimento da mesma dá-se no plano administrativo, instância em que opera a lógica da diferença, no sentido expresso por Laclau. No entanto, se a demanda não for atendida, apesar da frustração gerada, esta pode até mesmo desaparecer, a menos que outras demandas também não atendidas passem a estabelecer uma relação articulatória entre si. Neste caso, as demandas mudam o status de simples pedidos para o de reivindicações. 

Assim, segundo Laclau, um corte antagônico passa a dividir negativamente o espaço social entre essas demandas populares articuladas contra a institucionalidade. Esta é a pré-condição para uma ruptura populista. Contudo, é preciso adicionar um elemento a mais, qual seja, o campo popular constitui o seu próprio processo de representação. Tal processo tem lugar quando uma das demandas articuladas, num dado momento, precário e contingente, passa a representar a cadeia de equivalências popular — que evidentemente a excede em sentidos — exercendo, assim, uma tarefa hegemônica. Quanto mais extensa for a cadeia equivalencial, mais frágeis serão os sentidos da(s) demanda(s) particular(es) que assume(m) o papel de representação desta cadeia. Em termos gerais e, reconheço, um tanto simplificadores, são estas as características fundamentais para a constituição da lógica populista.

Como se vê, a construção do populismo para o autor é uma operação teórico-formal, e não a defesa de projetos políticos específicos. Mesmo assim, e Laclau sempre se posicionou de forma positiva em relação aos projetos kirchenerista e chavista, considerando que o populismo não é um processo político necessariamente negativo ou positivo, cabe a cada um de nós valorarmos as experiências populistas concretas de acordo com nossas próprias visões políticas de mundo. Desta forma fez Laclau, uma vez que ele identificou como progressistas as experiências recentes na Venezuela e na Argentina.

 

IHU On-Line - Em que medida o populismo do nosso continente serve como ferramenta para assegurar a participação da população nas decisões políticas?

Daniel de Mendonça - Como vimos, há diversos processos populistas possíveis se considerarmos o plano ideológico. Os exemplos latino-americanos têm possibilitado uma abertura política para considerar demandas populares que não têm espaço de emergência a partir dos canais institucionais normais nas democracias liberais ocidentais. O populismo é, neste sentido, a denúncia do elitismo político-econômico que simplesmente desconsidera a soberania popular como princípio basilar da democracia. Laclau radicaliza ainda mais este argumento quando afirma que só é possível falarmos verdadeiramente em democracia se considerarmos as demandas populistas que surgem de tempos em tempos. Assim, acredito que experiências político-administrativas na América do Sul, notadamente na Argentina, Bolívia e Venezuela, têm se preocupado em assegurar e ampliar o acesso aos canais políticos àqueles que antes não tinham qualquer possibilidade de fazê-lo.   

 

IHU On-Line - Em que consiste a teoria do discurso da Escola de Essex?

Daniel de Mendonça - Teoria do discurso da Escola de Essex é o nome dado ao conjunto de esforços teóricos e analíticos que têm a teoria do discurso de Laclau como paradigma. Essex decorre do fato de que Laclau atuou por décadas na Universidade de Essex, local onde criou e dirigiu por muito tempo o Programa de Ideologia e Análise de Discurso. Este Programa continua ativo e recebendo estudantes e pesquisadores de todos os continentes.

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