Edição 441 | 28 Abril 2014

A tecnociência ultrapassa as fronteiras das comunidades científicas

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Por Patrícia Fachin

Para o filósofo Valter Bezerra, não adianta propor belos invariantes filosóficos para a racionalidade científica se eles não forem capazes de dar conta das vicissitudes da prática, das contingências da racionalidade

“A construção de uma filosofia da tecnologia não pode mais ser baseada em teses como a de que ‘a ciência e a tecnologia são neutras, e o que não é neutro seria o uso que se faz delas’. Ela deve levar em conta as especificidades epistemológicas da tecnociência, a impregnação pelos valores (mesmo nas situações em que certos discursos tentam obliterar isso) e também sua dimensão ética”, adverte Valter Bezerra, professor de Filosofia da Universidade de São Paulo – USP, à IHU On-Line, em entrevista concedida por e-mail. Bezerra assinala que a tecnociência tem uma dimensão valorativa e, portanto, as aplicações tecnológicas, disponibilidade de meios técnicos, interação com os objetos e manipulação envolvem aspectos valorativos, “que ultrapassam as fronteiras das comunidades científicas, possuindo implicações para a sociedade em geral, e que muitas vezes estão atrelados a um macrovalor que permeia a ciência da modernidade: a possibilidade de controle e intervenção sobre a natureza”.

Na avaliação do filósofo, as ideias mecanicistas, que determinaram a relação entre a ciência e a tecnologia na modernidade, determinam a tecnociência, apesar de ter se “perdido um pouco de vista o quanto a ciência de hoje é tributária do mecanicismo”. Para ele, apesar de surgirem “várias situações na ciência contemporânea que mostram que um reducionismo estrito enfrenta dificuldades”, ainda “continuamos com uma concepção de ciência fortemente matematizada — que se manifesta frequentemente como quantificação no sentido numérico, porém isso não ocorre necessariamente, já que a matemática lida menos com quantidades do que com estruturas. Também continua inabalável a concepção de experimento controlado, a descontextualização dos objetos de investigação em laboratório e a aspiração à intervenção na natureza. Tudo isso são heranças das imagens de natureza e de ciência do mecanicismo”. E dispara: “Acredito que não poderemos compreender devidamente muitas das teorias científicas contemporâneas (em particular na física, porém não apenas nela) se não atentarmos para o contexto em relação ao qual elas foram formuladas — o mecanicismo, com suas variantes e mutações, que constitui um arco que se estende do século XVII a meados do século XIX”.

Bezerra esteve na Unisinos no dia 15-04-2014, ministrando a palestra Racionalidade científica: contingência histórica e invariância filosófica, dentro da programação do II Ciclo de Palestras Filosofia e Ciência hoje numa promoção do Diretório Acadêmico do curso de Filosofia da Unisinos e da Filosofia Unisinos.

Valter Bezerra é licenciado em Física pelo Instituto de Física e Faculdade de Educação da USP, mestre e doutor em Filosofia pela mesma universidade. Atualmente, leciona Teoria do Conhecimento e Filosofia da Ciência no Departamento de Filosofia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP. Integra o Programa de Pós-Graduação em Ensino, História e Filosofia das Ciências e Matemática da Universidade Federal do ABC – UFABC e participa do Projeto Temático Fapesp “Gênese e significado da tecnociência: das relações entre ciência, tecnologia e sociedade”. É licenciado em Física pelo Instituto de Física e Faculdade de Educação da USP. É membro fundador da Associação Filosófica Scientiae Studia de Estudos sobre a Ciência e Tecnologia e membro da Associação de Filosofia e História da Ciência do Cone Sul (AFHIC). 

Confira a entrevista. 

 

IHU On-Line - Qual a diferença entre a racionalidade científica e a racionalidade filosófica?

Valter Bezerra - São racionalidades diferentes e, no entanto, acredito que estão relacionadas. Atitudes como argumentar corretamente, apresentar razões para suas escolhas, decisões e ações, ter uma atitude crítica — tudo isso faz parte da racionalidade e, no entanto, a racionalidade não se esgota nisso. Vamos partir do pressuposto de que ciência e filosofia são, ambas, formas de conhecimento e modos de interpretar a realidade. Elas têm diferentes objetos e diferentes modos de acesso epistêmico a esses objetos; o que poderia haver de comum entre suas formas de racionalidade? A ciência versa sobre o mundo (inevitavelmente matizado e visto segundo certas “lentes” teóricas), ao passo que a segunda se dedica a problematizar e analisar criticamente os pressupostos mais fundamentais envolvidos tanto na visão científica de realidade quanto nas demais visões de realidade que são geradas por outras atividades (como o direito, a política, a tecnologia, o uso da linguagem, o comportamento moral, a matemática, etc.).

Ciência x Filosofia: duas racionalidades 

Ciência e filosofia parecem ser — e são — disciplinas com características muito diferentes. Na ciência, a evidência empírica parece desempenhar um papel muito importante, o que não está tão aparente na filosofia. Por outro lado, a filosofia tem uma relação muito especial com o seu passado, uma relação que poderíamos chamar de sincrônica; por isso consideramos autores de outras épocas como relevantes ainda hoje, e dialogamos com eles. Isso é muito diferente da relação que as ciências têm com seu passado disciplinar (como se sabe, nos cursos de graduação científicos dá-se muito pouco espaço à história da ciência). E quanto à noção de progresso, se não é fácil defini-lo no caso da ciência, ainda assim circulam certas noções “intuitivas” no sentido de que a ciência apresentaria alguma forma de progresso; já com relação à filosofia, o conceito de progresso parece ser muito difícil de aplicar. Na filosofia, haveria tradições autossuficientes e mutuamente incomunicáveis em perpétua articulação interna, sem nenhuma indicação de que uma tradição pudesse “superar” alguma outra, em algum sentido razoável.

Bom, então temos até aqui muitas diferenças. E quanto às semelhanças? Uma importante semelhança pode ser encontrada se olharmos tanto para a ciência quanto para a filosofia como atividades de solução de problemas. Problemas requerem soluções. As teorias — tanto científicas quanto filosóficas — são, portanto, fundamentalmente tentativas de solução a certos problemas. Essa é uma visão que encontra algumas resistências no meio filosófico, em que por vezes tende-se a ver os sistemas de pensamento como construções a priori, e a enxergar o desenvolvimento histórico da disciplina em termos de autores, obras e comentadores, mais do que como uma história dos problemas filosóficos e tentativas de solução. Porém, pensar a história das doutrinas filosóficas em termos de problemas e teorias permite dar uma interpretação mais dinâmica, viva e coerente para essa história. Em particular, como já disse Kant  com relação à ciência natural (nos Prolegômenos) e Hume  com relação à análise filosófica (na Investigação sobre o entendimento humano), cada solução formulada a um problema dá origem a novos problemas, num desdobramento incessante e perpetuamente inconcluso. Ora, de onde vem essa semelhança, esse movimento de “propagação dos problemas”, no dizer de Nicholas Rescher?

Outra semelhança está em que a ciência é menos empírica do que poderia parecer. A história da ciência mostra que a ciência não é sempre um sistema que reage instantaneamente e prioritariamente à evidência, embora esta seja, sem dúvida, importante. Os sistemas científicos (teorias, tradições de pesquisa, paradigmas, etc.) possuem, quando os olhamos em grande escala, uma inércia considerável, uma certa lentidão para reagir. Algumas partes podem ser bem mais ágeis no responder às evidências novas, porém outras partes são bem mais lentas. Há princípios imbricados tão profundamente na rede que podem ser considerados quase “analíticos” — como, por exemplo, na relatividade, a exigência de invariância das leis em diferentes sistemas de referência. Outros princípios, ainda que mais próximos do estatuto das leis científicas usuais, possuem tal quantidade de elementos do sistema ancorados neles que haveria um grande “custo epistêmico” envolvido em sua modificação. Imagine tudo o que precisaria ser modificado na física caso fosse anunciada uma observação que acarretasse a recusa do princípio de conservação de energia na física! Então, nem tudo no conhecimento científico está igualmente acessível a ser derrubado pela experiência. Muitas vezes, o sistema do conhecimento em uma determinada área da ciência se reconfigura em resposta a considerações internas, problemas genuinamente conceituais, sem que nenhum experimento ou observação nova esteja em jogo.

Também é preciso reconhecer que, se a filosofia é uma disciplina fundamentalmente interpretativa, hermenêutica, e não empírica — pelo menos não diretamente, não no mesmo sentido da ciência, de explicar e prever fenômenos —, a ciência também não é exclusivamente empírica, mas tem uma importante dimensão interpretativa. Quando os mecanicistas do século XVII propunham uma imagem de natureza baseada em matéria e movimento, quando Kepler  falava sobre a “harmonia” matemática do cosmos, quando Aristóteles  desenvolveu sua física dos lugares naturais, e dos movimentos violentos e naturais, quando Bohr  debatia com Einstein  sobre a completude da mecânica quântica, eles estavam propondo interpretações da realidade. Buscar inteligibilidade racional do mundo implica interpretação. Essas semelhanças que apontei sugerem que a ciência é empírica, mas não exclusivamente empírica; a filosofia é prioritariamente interpretativa, mas a ciência também o é em parte; e ambas apresentam uma dinâmica de problemas análoga.

Minha tese é que a noção de coerência nos possibilita identificar o que seria comum a essas duas racionalidades, e permite compreender o porquê dessas semelhanças. Ambas, filosofia e ciência, têm a coerência como princípio organizador dos sistemas intelectuais. Certamente, a coerência perfeita, o equilíbrio perfeito, é algo impossível de atingir. Sempre existem focos localizados de incoerência, de desequilíbrio. Isso é inerente ao dinamismo do desenvolvimento intelectual. Muitos aristotélicos, ao articular o aristotelismo, introduziram tensões no sistema. O mesmo aconteceu com os platônicos, os kantianos, os positivistas lógicos. Na ciência, a teoria quântica resolveu determinados problemas muito difíceis, mas ao mesmo tempo abriu uma miríade de outros. Uma concepção de conhecimento em termos de coerência pode ser articulada de maneira precisa e permite interpretar as situações cognitivas em termos de redes, perturbações nas redes, e reestabelecimentos de coerência, sempre provisórios. No que a ciência e a filosofia diferem é com respeito ao tipo e estatuto dos elementos que são organizados pela coerência. Mas as suas respectivas racionalidades possuem um cerne comum.

 

IHU On-Line - O que caracteriza a racionalidade científica moderna? A partir dos seus estudos sobre a epistemologia de Otto Neurath , percebe outra perspectiva da racionalidade científica na contemporaneidade? Em que consiste?

Valter Bezerra - O estudo da racionalidade científica encontra-se bastante multifacetado. Há uma corrente tradicional que associa a racionalidade com a adesão a determinadas metodologias gerais (como indutivismo, falseacionismo, metodologia dos programas de pesquisa). Outras não acreditam na existência dessas metodologias “macro” e pulverizam a metodologia em numerosas estratégias locais. Outras associam a racionalidade com as características manifestas de determinados modelos de mudança científica (por exemplo, com ou sem revoluções, com ou sem continuidade, incomensurabilidade, etc.). Há outras linhas que fundamentam a racionalidade nos mecanismos do bayesianismo, da teoria da decisão e da teoria de jogos. Outras correntes ainda se interessam pelos processos de formação de consenso na comunidade científica ou na sociedade em geral. E, finalmente, certas correntes flertam com alguma forma de “irracionalismo moderado” ou “relativismo moderado”. E, no limite, há quem diga que a “racionalidade científica” é meramente um tipo de discurso, uma retórica de dominação.

A visão que venho defendendo há alguns anos é que essas são legítimas discussões metacientíficas, que estão relacionadas com o tema da racionalidade, só que de forma indireta — e, contudo, de alguma maneira, elas ainda não colocam “o dedo na ferida”, por assim dizer, da racionalidade científica. A racionalidade consistiria em algo mais básico, mais geral. Na minha palestra, apresentei brevemente alguns contornos de uma concepção assim. Os métodos, metodologias, critérios, metametodologias — todos eles estão sujeitos a transformações, no que não diferem dos próprios conceitos e teorias da ciência. Já os modelos de mudança científica são construções metacientíficas (filosóficas) de caráter descritivo, eventualmente até explicativo, porém não normativo. O normativo entra em cena quando se passa a pensar na racionalidade. O elemento inescapavelmente normativo em jogo é a justificação das atitudes cognitivas.

Elementos da racionalidade científica 

Os elementos centrais da concepção de racionalidade que defendo são: primeiramente, uma distinção de escopo e de estrutura (que pode ser formulada de maneira precisa) entre as teorias filosóficas sobre a racionalidade e os demais registros da metaciência (dinâmica da mudança científica, metodologia, metametodologia, etc.); em segundo lugar, a coerência, sobre a qual já falei antes; em terceiro lugar, os valores (toda justificação epistêmica, todo conhecimento, toda racionalidade são condicionados por valores, segundo maneiras precisas); e, finalmente, uma noção de adequação entre meios e fins. Essa noção de adequação é bastante geral; ela é capaz de abarcar, por exemplo, valores de tipo não empírico e valores sociais; prevê espaço para a crítica dos valores (eles não são imutáveis, mas possuem uma certa dinâmica); e pressupõe uma interação comunicativa entre axiologias diferentes, um alargamento do horizonte axiológico, para que possa funcionar plenamente sem degenerar num individualismo e na descontextualização. Assim, ela é capaz de dar conta de várias críticas que foram dirigidas à “racionalidade instrumental” em geral. O resultado de tudo isso é uma racionalidade sem “pontos fixos”, na qual o que se mantém invariante ao longo de diferentes épocas e contextos é a sua forma. (Tal como as leis físicas que, de acordo com a teoria da relatividade, devem manter sua forma em qualquer sistema de referência.) Mas, mantida a sua estrutura geral, o “estofo” da racionalidade, a sua configuração específica em cada contexto, modifica-se profundamente ao longo do tempo — e nessa visão há espaço para isso. Assim, esta concepção permite atender ao desafio de evitar os anacronismos quando olhamos para a história da ciência.

Otto Neurath, o positivista lógico “de carteirinha”, cujo pensamento originalíssimo e iconoclasta vem sendo redescoberto e revalorizado ao longo das últimas décadas, aponta para o papel central desempenhado pela coerência, criticando o fundacionalismo epistemológico. Ele também salienta o fato de que os métodos e metodologias são mutáveis e contingentes, fazendo parte de um grande sistema integrado, são distintos das hipóteses e teorias, mas sem possuir estatuto especial. Neurath também enxerga — coisa um tanto rara entre os positivistas — a necessidade de uma dimensão sociológica e histórica na filosofia da ciência, a necessidade de a epistemologia atentar para a prática.

 

IHU On-Line - Em que consiste a gênese e o significado da tecnociência e que relações estabelece entre ciência, tecnologia e sociedade a partir desta compreensão de tecnociência?

Valter Bezerra - Se pensarmos nos eixos “técnica”, “tecnologia” e “ciência”, alguns entrecruzamentos desses três eixos possuem características peculiares. Um desses entrecruzamentos é a tecnociência. Se olharmos para ela pelo ângulo da ciência, a tecnociência seria aquela ciência que é julgada e avaliada prioritariamente à luz das suas aplicações tecnológicas. Ou então, alternativamente, podemos pensar tecnociência como aquela ciência que tem como sua condição de possibilidade a disponibilidade de meios técnicos. Ainda outra noção de tecnociência seria como conhecimento que demonstra as possibilidades de interação com os objetos de investigação, e de controle sobre eles (manipulação, síntese, por exemplo), e que também visa sondar os limites fundamentais dessa interação e controle. Olhemos, por outro lado, pelo ângulo da tecnologia: poderíamos nesse caso dizer que a tecnociência é aquela variedade de tecnologia que depende explicitamente e crucialmente de pesquisa fundamental.

Repare que, de qualquer maneira que a definamos, a tecnociência possui uma dimensão valorativa ou axiológica muito patente (dimensão axiológica que, diga-se de passagem, também está presente na ciência). Aplicações tecnológicas, disponibilidade de meios técnicos, interação com os objetos, manipulação — tudo isso envolve aspectos valorativos, que ultrapassam as fronteiras das comunidades científicas, possuindo implicações para a sociedade em geral, e que muitas vezes estão atrelados a um macrovalor que permeia a ciência da modernidade: a possibilidade de controle e intervenção sobre a natureza. A construção de uma filosofia da tecnologia não pode mais ser baseada em teses como a de que “a ciência e a tecnologia são neutras, e o que não é neutro seria o uso que se faz delas”. Ela deve levar em conta as especificidades epistemológicas da tecnociência, a impregnação pelos valores (mesmo nas situações em que certos discursos tentam obliterar isso) e também sua dimensão ética.

 

IHU On-Line - Como as ideias mecanicistas determinaram a relação entre a ciência e a tecnologia na modernidade?

Valter Bezerra - Com o passar dos séculos, podemos ter perdido um pouco de vista o quanto a ciência de hoje é tributária do mecanicismo. Mesmo que a ontologia tipicamente mecanicista de matéria e movimento, matéria passiva e causas eficientes tenha sido substituída por outras ontologias — contendo hoje em dia elementos como campos, quanta com características duais de partícula e onda, leis probabilísticas, estados dos sistemas emaranhados e superpostos —, ainda assim se tenta levar adiante, muitas vezes, por exemplo, uma abordagem reducionista (i.e., de explicar o todo explicando cada uma das partes). Claro que surgem várias situações na ciência contemporânea que mostram que um reducionismo estrito enfrenta dificuldades. Nós também continuamos com uma concepção de ciência fortemente matematizada — que se manifesta frequentemente como quantificação no sentido numérico, porém isso não ocorre necessariamente, já que a matemática lida menos com quantidades do que com estruturas. Também continua inabalável a concepção de experimento controlado, a descontextualização dos objetos de investigação em laboratório e a aspiração à intervenção na natureza. Tudo isso são heranças das imagens de natureza e de ciência do mecanicismo.

A ciência mecanicista tem uma relação estreita com a metáfora do universo (ou do organismo) como máquina, uma metáfora muito rica e profunda, com harmônicos que possuem ressonâncias com a história da tecnologia. Ademais, a ciência mecanicista é um dos eixos da revolução científica do século XVII, que foi, precisamente, uma época de revalorização do aspecto técnico, experimental da ciência e dos instrumentos científicos. Então, há uma relação umbilical aí. Finalmente, acredito que não poderemos compreender devidamente muitas das teorias científicas contemporâneas (em particular na física, porém não apenas nela), se não atentarmos para o contexto em relação ao qual elas foram formuladas — o mecanicismo, com suas variantes e mutações, que constitui um arco que se estende do século XVII a meados do século XIX.

 

IHU On-Line - Em sua pesquisa, o senhor trata ainda dos impactos das ideias da tradição do ceticismo no desenvolvimento da ciência moderna. Que impactos foram esses?

Valter Bezerra - Embora eu não trabalhe especificamente com o ceticismo — esse é um tema estudado por outros integrantes do grupo do qual faço parte (o Projeto Temático Fapesp-IEA-USP “Gênese e significado da tecnociência: das relações entre ciência, tecnologia e sociedade”) — trata-se de um tema fascinante, que muito tem a ver com a epistemologia, que é minha área de atuação. Penso que, na história do ceticismo, podemos distinguir, por um lado, uma subtradição que corresponde àqueles pensadores que defendem uma atitude cética de caráter global em relação à vida, ao conhecimento, à ciência, à razão, aos sentidos, etc., e, por outro lado, há aqueles autores que formulam determinados argumentos céticos particulares dirigidos contra certos registros específicos de conhecimento.

A subtradição dos argumentos céticos foi (e continua sendo) muito importante como propulsor da epistemologia moderna e contemporânea. Já a tradição da atitude cética vinha sendo estudada, há muito tempo, mais como um objeto de pesquisa em história da filosofia. Uma exceção é a filosofia de Oswaldo Porchat . Ele critica um caráter crescentemente endógeno da filosofia da modernidade, em que defensores de certos sistemas e teses terçam armas com defensores de outros sistemas e outras teses, em duelos ad infinitum. Em lugar disso, ele convida a uma revalorização filosófica da visão comum de mundo. “Visão comum de mundo” é uma noção que pode se prestar a equívocos. A visão comum de mundo, tal como pensada por Porchat, não é ingênua, ela não exclui a ciência do seu horizonte, nem a filosofia. Mas ela postula que a filosofia não pode dar as costas para a prática, não deve tomar o mundo como um mero ponto de partida que depois vai-se deixando para trás. Isso coloca certos freios à tendência especulativa da filosofia (por exemplo, como lembra Porchat, a filosofia colocou a existência do próprio mundo exterior como um problema). A filosofia não pode ser apenas normativa, ela precisa ser também descritiva, em alguma medida.

Há algumas décadas, vem-se estudando um mecanismo que é capaz de fazer aquilo que o filósofo brasileiro pedia: trata-se do equilíbrio reflexivo. Segundo a tese do equilíbrio reflexivo, se por um lado as normas são propostas para regular os fatos (onde por “fatos” entende-se comportamentos, ações morais, decisões, escolhas racionais, práticas linguísticas, argumentos, etc.), por outro lado, as normas (normas éticas, normas de racionalidade, normas gramaticais, teoria da argumentação, etc.) também devem ser reguladas pelos fatos. Deve haver um condicionamento recíproco entre teoria e prática, entre norma e fato. Em particular, a epistemologia e a metodologia não podem deixar de ser, em certa medida, avaliadas pela sua capacidade ou incapacidade de dar conta das práticas cognitivas.

 

IHU On-Line - O tema da sua palestra propõe uma relação entre a dinâmica da atividade científica, que está sob a variância dos fenômenos e, de outro lado, a atividade filosófica que tem como meta as identificações das estruturas fundamentais e, portanto, imutáveis daqueles fenômenos. Com o crescente contato entre as ciências naturais e certas correntes filosóficas (como o naturalismo, por exemplo) como articular essas duas perspectivas?

Valter Bezerra - O equilíbrio reflexivo, sobre o qual falei há pouco, está no pano de fundo da minha palestra. Não adianta propor belos invariantes filosóficos para a racionalidade científica se eles não forem capazes de dar conta das vicissitudes da prática, das contingências da racionalidade. A concepção “covariante” de racionalidade que apresento, sem “pontos fixos”, deve ser colocada em equilíbrio reflexivo com a história da ciência, a sociologia da ciência, o estudo da prática científica. (Por isso mesmo, nela, não faz muito sentido a distinção entre “contexto da descoberta” e “contexto da justificação”. Porque é uma distinção muito artificial e limitadora; na prática científica, os dois contextos caminham sempre juntos.) Se isso for tomado como uma forma de “naturalismo”, eu não me oporia a essa denominação. O próprio Neurath, já mencionado, se coloca como um naturalista; para ele, filosofia e ciência fazem parte de um mesmo sistema. Não vou tão longe no naturalismo a ponto de dizer que a filosofia da ciência (ou a epistemologia) é uma ciência. Defendo que ciência e filosofia ainda preservam suas especificidades; elas não são uma mesma forma de conhecimento. Mas elas possuem vasos comunicantes.

 

IHU On-Line - Deseja acrescentar algo?

Valter Bezerra - Gostaria de fazer um último comentário de caráter geral. Creio que as implicações de uma visão de filosofia em termos de problemas, e de uma instauração do equilíbrio reflexivo acoplado à análise filosófica, ainda estão por ser exploradas, no que tange às maneiras de se entender e praticar a atividade filosófica. Ao mesmo tempo, não se pode ignorar as implicações que essa concepção de filosofia pode ter, inclusive, no aspecto pedagógico. Que tipo de ensino de filosofia poderia resultar daí? Que tipos de organização curricular surgiriam? Seria um ensino diferente do atual, ou preservaria elementos tradicionais? De que maneira isso se daria? Creio que pode haver implicações muito interessantes aí, ao se pensar filosoficamente o ensino de filosofia. 

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