Edição 202 | 30 Outubro 2006

E a vida continua

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IHU Online

Cinema e Saúde Coletiva

O Ciclo Cinema e Saúde Coletiva vai discutir, no dia 7 de novembro, A onipotência do projeto de vigilância epidemiológica. Os debatedores serão a professora da Unisinos, Stela Meneghel e o psicólogo com especialização em Saúde Pública, José Eduardo Gonçalves. O filme, que servirá como pano de fundo, será, E a vida continua, de Roger Spottiswoode (1993).

A IHU On-line entrevistou por e-mail Gonçalves. Atualmente, o psicólogo trabalha como aconselhador em HIV/AIDS e outras DST no Centro de Testagem e Aconselhamento (CTA) do Ambulatório de Dermatologia Sanitária da SES/RS. Eventualmente, presta consultoria a municípios e ao Ministério da Saúde em atividades de implantação e/ou consolidação de ações relacionadas ao HIV/AIDS. Também é voluntário no SOMOS, onde coordena um grupo de homens que fazem sexo com outros homens e que são portadores de HIV/AIDS.  

IHU On-Line - Quanto o Ministério da Saúde destina de seu orçamento para o controle e prevenção da Aids?

José Eduardo Gonçalves
- Não sei a quantia exata, mas é muito dinheiro, em especial as dotações para a assistência farmacêutica, em função do alto custo dos anti-retrovirais. E aí nem quero entrar na discussão de como se enfrenta o poder econômico da indústria farmacêutica. Mas seja qual for o montante atual, o importante é saber em que medida os valores orçamentários da Saúde estão cumprindo o percentual previsto na Lei. E ainda assim, mesmo que os governos, nos três âmbitos (federal, estadual e municipal) cumpram o que está determinado constitucionalmente, os quantitativos destinados a problemas específicos serão definidos pela magnitude e pelo impacto destes problemas e pela capacidade de mobilização e pressão social na defesa dos interesses coletivos.

Impacto no imaginário

A AIDS teve um imenso impacto no imaginário e na vida concreta das pessoas, especialmente nos primeiros anos da epidemia. Durante um longo tempo, não havia alternativa terapêutica eficaz para enfrentar a infecção pelo HIV. Hoje a AIDS pode ser considerada uma infecção crônica tratável, e o Brasil tem um Programa de enfrentamento da AIDS que é considerado modelo pela OMS. A maioria dos brasileiros infectados tem assistência clínica garantida pelo SUS, bem como suporte laboratorial para exames de rotina e acesso aos medicamentos anti-retrovirais. O esforço atual é no sentido de ampliar estes serviços e aprimorar sua qualidade.

No entanto, o impacto inicial parece que “perdeu força”. Passados 25 anos do início da epidemia, a AIDS ficou de certa forma banalizada e parece que não é mais uma preocupação social. Há um risco aumentado de novas infecções por conta de um relaxamento com as medidas de prevenção da infecção. Além de garantir recursos orçamentários para a assistência adequada, os governos devem garantir recursos para campanhas de prevenção que chamem a atenção da população para o problema. No entanto, é um tema em que êxitos definitivos são muito difíceis, pois estamos falando de comportamentos muito íntimos, associados a forças poderosas como a sexualidade e a afetividade. Alterar práticas sexuais não é fácil, exige uma profunda mudança subjetiva que, sem interlocução, apenas com o racional provocado pelas campanhas de massa, é difícil atingir. A voz oficial tende a ser distanciada da voz popular. Talvez por isso, grande parte das iniciativas de prevenção exitosas, em especial voltadas para segmentos específicos da população, tem sido desenvolvida pelas ONG/AIDS, com recursos públicos e privados. São também as ONGs/AIDS que têm garantido o devido controle social sobre as ações governamentais, participando dos Conselhos de Saúde. Ou seja, o quantitativo orçamentário para a AIDS e a qualidade de sua aplicação ante as demandas sociais vai depender tanto da vontade política dos governos quanto da capacidade de mobilização da sociedade organizada.

IHU On-Line - O que vem sendo feito pelo Gapa e quais são os maiores desafios?

José Eduardo Gonçalves
- Não sou a pessoa mais adequada para falar do GAPA, neste momento. Fui um dos fundadores do Grupo e voluntário por 10 anos. Saí do GAPA por razões de trabalho. È uma organização que desenvolve um excelente trabalho em defesa dos interesses das pessoas vivendo com HIV/AIDS. Mas atualmente sou voluntário no SOMOS - Comunicação, Saúde e Sexualidade, onde trabalho com um segmento específico do público LGBT.

O setor governamental tem reconhecido a importância de entidades como o GAPA e o SOMOS, dando suporte ao seu funcionamento. No entanto, estas entidades são expressão da capacidade de organização da sociedade e deveriam ter na própria sociedade seu suporte financeiro. Isso facilitaria muito mais autonomia diante dos setores governamentais. Embora freqüente na Europa e países da América do Norte, o trabalho voluntário financiado por filantropia não é comum na nossa cultura, seja do ponto de vista empresarial ou do público. Os governos têm mediado acesso a recursos de agentes financiadores nacionais e internacionais, por meio de projetos específicos. Como os serviços que as ONGs oferecem à população são gratuitos, não existe uma “receita” que garanta a estrutura de trabalho voluntário. Então, há um esforço cotidiano em busca de recursos para a sustentação institucional. As ONGs são fundamentais para garantir direitos sociais e sua sustentabilidade, talvez o maior desafio que enfrentam, deveria ser um encargo assumido pela sociedade como um todo.

IHU On-Line - Como a saúde retratada no cinema pode ajudar ou influenciar a humanidade?

José Eduardo Gonçalves
- O cinema ou qualquer outra forma de expressão artística tem duas opções: ou se manifesta reproduzindo os valores dominantes presentes na sociedade ou produz obras que levem à reflexão sobre as circunstâncias de construção destes valores. O cinema não é uma entidade abstrata: é uma arte operada por pessoas que têm subjetividade, valores, afinidades e fazem escolhas políticas. Quanto mais reflexão o cinema produzir, quanto mais fizer tensionamentos sobre a realidade e suas contradições, mais a humanidade vai poder entender suas condições de vida e de saúde e encontrar alternativas capazes de alterar esta realidade no sentido de reduzir ou eliminar as condições adversas.

A saúde das pessoas é determinada historicamente pelas condições sociais e políticas de vida. Se o cinema produzir este tipo de reflexão, pode ser do máximo interesse social, discutindo valores, gerando mais entendimento, mais capacidade de intervir sobre a realidade, ajudando a construir uma sociedade mais includente e justa, mais generosa e feliz. No entanto, independente da perspectiva da criação cinematográfica, nós temos o dever de refletir sobre o que foi produzido. Eu diria que é mais ou menos como o nosso dever diante da leitura das notícias diárias: independente da motivação dos editores, a sociedade deve fazer a leitura crítica das notícias veiculadas, colocando-as em perspectiva. A mesma coisa se pode fazer com as obras cinematográficas: desde que se criem espaços de reflexão e debate, qualquer produção pode favorecer o desenvolvimento das relações humanas e sociais.

 

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