Edição 439 | 31 Março 2014

Dossiê Jango – Vida e morte de controvérsias

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Ricardo Machado e Andriolli Costa

Para o cineasta Paulo Henrique Fontenelle, diretor de Dossiê Jango (2012), investigar com seriedade a morte de João Goulart é se recusar a fechar os olhos para nossa própria história


No dia 06 de dezembro de 1976, morre João Belchior Marques Goulart — o Jango. Vice de Juscelino a partir de 1955, e de Jânio, a partir de 1960, assume a Presidência do país com apoio da Campanha da Legalidade — encabeçada por Brizola. De tendência esquerdista, Jango era conhecido por medidas “populistas”, que desagradavam as elites brasileiras. Em 1953, então Ministro do Trabalho, assume a pasta dobrando o salário mínimo e acalmando os ânimos dos grevistas. Como presidente, tenta instituir as reformas de base, com diversas medidas polêmicas, especialmente a reforma agrária. Figura controversa, apoiada pelo povo e com grandes inimigos políticos, sua morte por ataque cardíaco ainda hoje permanece um mistério.

O cineasta Paulo Henrique Fontenelle problematiza todas estas questões em seu documentário Dossiê Jango (2012). Para ele, “ainda não é possível afirmar com certeza que Jango foi assassinado, mas também não se pode afirmar com certeza o contrário. Fechar os olhos para as circunstâncias e mistérios que rondam a morte de Jango é fechar os olhos para a nossa própria história”. Para o cineasta, a mensagem do filme extrapola a própria figura do presidente. “Precisamos esclarecer o que houve não só em relação a Jango, mas também a todas as vítimas da ditadura.”

Em entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line, Fontenelle retoma, a partir de seu documentário, sua visão da história de lutas de Jango, de sua visão política de vanguarda e das controvérsias que envolvem sua vida e morte. “Recuperar as circunstâncias da morte desses homens é recuperar a nossa história”, defende o cineasta. “As histórias oficiais estão repletas de lacunas e inverdades e, somente conhecendo o nosso passado, poderemos avançar como nação.”

Paulo Henrique Fontenelle é graduado em Cinema, Radialismo e Jornalismo. É editor e diretor de programas, documentários e DVDs musicais. Dirigiu e produziu o curta Mauro Shampoo (2006), que ganhou mais de 20 prêmios de melhor filme, no Brasil e exterior. Seu primeiro longa, Loki (2008), documentário que retrata a vida do ex-Mutante Arnaldo Baptista, rendeu 10 prêmios de melhor filme no Brasil, em Nova York, em Toronto e em Miami e ficou quatro meses em cartaz no Brasil. Seu último trabalho foi Dossiê Jango.

Confira a entrevista.

IHU On-Line - Por que Jango  conseguiu, já em 1956, ter sido eleito vice-presidente de JK? Aliás, por que foi eleito vice se obteve 500 mil votos a mais que o mineiro?
Paulo Henrique Fontenelle -
Naquela época, o sistema de votação era diferente e você elegia não somente o presidente, mas também o vice, mesmo que fossem de chapas diferentes. Jango era da chapa de Juscelino , mas teve a maioria da preferência do povo para ocupar a Vice-Presidência.

IHU On-Line – A partir das eleições de 1960, como foi a relação de Jango com Jânio Quadros? Por que a estratégia política de Jânio deu errado?
Paulo Henrique Fontenelle -
Jango foi eleito para Vice-Presidência, mas disputando o cargo pela chapa concorrente a de Jânio Quadros . Jânio chegou à Presidência com uma vitória esmagadora sem precedentes e, após poucos meses no poder, tentou uma manobra arriscada ao renunciar, acreditando que voltaria nos braços do povo e, assim, teria plenos poderes. Sua estratégia falhou, e a reação popular que Jânio imaginava não ocorreu. Jango então assumiu a Presidência após um conturbado retorno ao Brasil de sua missão na China.

IHU On-Line - Quando Jango se descobriu presidente brasileiro estava em viagem de negócios à China. Passados 50 anos, o país oriental tornou-se um parceiro fundamental aos negócios dos países capitalistas. Havia certo vanguardismo no pensamento de Jango ou foi coincidência? O que aproxima e o que distancia estas duas realidades separadas por cinco décadas?
Paulo Henrique Fontenelle -
Naquele momento, o Brasil se tornava o primeiro país ocidental a abrir relações com a China comunista. Uma atitude pioneira que abriria o mercado exportador com o maior país do mundo. Hoje em dia, passado todo esse tempo, todo mundo quer negociar com a China. Isso só demonstra como era visionária aquela missão em 1961.

IHU On-Line - Por que as Reformas Estruturais de Base, como fundamento ao desenvolvimento do país, encontravam ampla resistência das elites nacionais? Como a falta da realização dessas reformas impactam em nossa sociedade atual?
Paulo Henrique Fontenelle -
Porque elas iam de encontro aos interesses das classes dominantes, principalmente no que diz respeito à reforma agrária, que sempre foi o grande calcanhar de Aquiles do governo Jango. Essas medidas batiam de frente com os interesses dos Estados Unidos, que influenciaram diretamente na vida política do Brasil, culminando com o golpe de 64. Hoje, o nosso país se recente desse corte. Vemos, nas manifestações populares de hoje, pessoas reivindicando reformas sociais que faziam parte do projeto de governo de Jango há 50 anos, e aí percebemos o quanto nosso país estagnou por conta de um Golpe Militar. Para nós, fica a pergunta de quanto o Brasil poderia ter avançado como nação se essas reformas tivessem tido continuidade há meio século.

IHU On-Line - Em que medida a Campanha da Legalidade foi fundamental para que Jango conseguisse retornar ao país e seguir como líder nacional até o golpe derradeiro? Aceitar o parlamentarismo foi uma derrota ou uma vitória?
Paulo Henrique Fontenelle -
A Campanha da Legalidade iniciada por Brizola  no Rio Grande do Sul foi decisiva para evitar um golpe de estado naquele momento. Foi uma mobilização popular iniciada no Sul e que se espalhou pelo país, possibilitando o retorno de Jango ao Brasil com segurança para assumir a Presidência dentro de um regime parlamentarista. João Goulart ter aceitado essas condições foi a única maneira de evitar que o caos se instalasse no país com um possível golpe militar. Foi um ato de sabedoria de Jango diante das circunstâncias. Mais tarde, com o plebiscito, ele retomaria o poder de maneira pacífica.

IHU On-Line - Em que medida o resultado do Plebiscito de 1963, com ampla vitória à retomada do presidencialismo, foi uma resposta do povo brasileiro às intenções dos militares?
Paulo Henrique Fontenelle -
O plebiscito representou uma vitória inconteste de Jango e do povo brasileiro. Mais do que isso, demonstrou a capacidade e o poder de estratégia de Jango, que, numa admirável manobra política, conseguiu, sem nenhuma violência ou crise, retomar o poder de forma democrática e pacífica.

IHU On-Line - Houve alguma vitória de Jango depois de 1964? Algo seu permaneceu no país?
Paulo Henrique Fontenelle -
Infelizmente o golpe de 64 significou uma ruptura com todo o projeto de governo de Jango que faria do Brasil uma grande potência naquele momento. Um corte violento que, passados 50 anos, ainda representa uma enorme lacuna no nosso país.

IHU On-Line - O que foi a Frente Ampla  e por que não conseguiu fazer frente aos militares?
Paulo Henrique Fontenelle -
A Frente Ampla foi um movimento de resistência civil à ditadura militar, tendo como principais líderes João Goulart, Juscelino Kubitschek e Carlos Lacerda . Foi uma tentativa de restabelecer a democracia no país, mas que não pôde ser levado adiante pelo endurecimento do regime em 1968 com a implantação do AI 5.

IHU On-Line - Em seu documentário a mensagem que fica é que a parada cardíaca de Jango decorreu de um assassinato e não de causas naturais. O jornalista e historiador gaúcho Juremir Machado, em seu livro Jango (Porto Alegre: LP&M, 2013), dá a entender que a morte foi natural. Qual sua posição em relação ao caso?
Paulo Henrique Fontenelle -
O documentário deixa em aberto essa questão, expondo os fatos e indícios que nunca foram investigados com a devida seriedade. Ainda não é possível afirmar com certeza que Jango foi assassinado, mas também não se pode afirmar com certeza o contrário. Fechar os olhos para as circunstâncias e mistérios que rondam a morte de Jango é fechar os olhos para a nossa própria história. A mensagem do filme é de que nós, mais do que nunca, precisamos esclarecer o que houve não só em relação a Jango, mas também a todas as vítimas da ditadura.

IHU On-Line - Passados todos estes anos após as mortes de JK, Lacerda e Jango, por que se torna importante recuperar as circunstâncias das mortes desses homens, dois deles ex-presidentes?
Paulo Henrique Fontenelle -
Recuperar as circunstâncias da morte desses homens é recuperar a nossa história. É entender o que foi o período da ditadura no Brasil, o que foi a operação Condor e todas as suas consequências. As histórias oficiais estão repletas de lacunas e inverdades e, somente conhecendo o nosso passado, poderemos avançar como nação.

IHU On-Line - Que tipo de conjuntura no Conesul latino-americano resultou na morte sistemática de diversas pessoas ligadas a Jango e à resistência contra a ditadura?
Paulo Henrique Fontenelle -
Após o golpe militar de 64 no Brasil, a América Latina se viu tomada por uma verdadeira epidemia de ditaduras, todas apoiadas pelo nosso governo e, principalmente, pelo governo dos Estados Unidos. Com a eleição de Jimmy Carter , a Presidência dos Estados Unidos em 1976 e a consequente retirada de apoio às ditaduras sul-americanas, os países do Mercosul se viram diante da possibilidade de uma redemocratização que ameaçaria seus governos. Diante dessas circunstâncias, inicia-se uma série de assassinatos a políticos de oposição que seriam eleitos, caso a democracia se restabelecesse, como foi o caso, por exemplo, de Juan José Torres , da Bolívia, Héctor Gutiérrez Ruiz  e Zelmar Michelini , do Uruguai. É nesse panorama que, também no ano de 1976, ocorrem as mortes de JK e Jango.

IHU On-Line - O filme Dossiê Jango é, sem dúvida, um documento da extensa memória da Ditadura Militar, tendo como pano de fundo a morte de João Goulart. Como pensa a importância deste documentário para nossa sociedade atual?
Paulo Henrique Fontenelle -
Fico feliz que o filme tenha conseguido essa repercussão a ponto de, finalmente, depois de tanto tempo de luta por parte da família de Jango, o Estado brasileiro ter decidido exumar o corpo de nosso ex-presidente. Espero que o filme sirva como um documento que ajude a resgatar a figura de Jango e, acima de tudo, entender um pouco o que foi a ditadura no Brasil e na América Latina, os horrores da operação condor e suas consequências em nossa sociedade. Um povo que não conhece as tragédias de seu passado corre o enorme risco de repeti-las.

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