Edição 439 | 31 Março 2014

Conquistas e derrotas da Campanha da Legalidade

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Ricardo Machado e Andriolli Costa

Para a historiadora Claudia Wasserman, a lição da Campanha foi demonstrar a capacidade de mobilização da sociedade em momentos de grande polarização ideológica

Em 1961, inicia um movimento convocado pelo então governador gaúcho, Leonel Brizola, para defender a permanência de João Goulart na Presidência após a renúncia de Jânio Quadros. Com apoio do general Machado Lopes, a assim chamada Campanha da Legalidade contou com apoio de alguns setores das Forças Armadas e da sociedade civil, levando milhares de pessoas às ruas em uma manifestação que se estendeu por 14 dias — atrasando o futuro Golpe Militar em alguns anos.

Para a historiadora Claudia Wasserman, o grande legado da Campanha foi demonstrar a capacidade de mobilização da sociedade em momentos de grande polarização ideológica. Nesta entrevista, concedida por e-mail à IHU On-Line, Wasserman relembra os papéis de Machado Lopes, Leonel Brizola e João Goulart durante a Campanha, o papel da imprensa e da Rádio Guaíba e o que significaram — e significam — as reformas de base no contexto brasileiro. “Os temas, conteúdos e projetos dos anos 1950/70 continuam como utopia para o Brasil e para as sociedades latino-americanas”, destaca. “O debate sobre os anos 1960 oportuniza, nesse sentido, que não percamos de vista as lutas que eram travadas na época.”

Claudia Wasserman possui graduação e mestrado em História pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS, com a dissertação A Revolução Mexicana (1910-1940): um caso de hegemonia burguesa na América Latina. Doutorou-se em História Social pela Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, com a tese A questão nacional na América Latina no começo do século XX: Brasil, Argentina e México. Seu pós-doutorado foi na Universidade Federal Fluminense. Wasserman é autora das obras História Contemporânea da América Latina (1900-1930) (Porto Alegre: EDUFRGS, 1992); História da América Latina: do descobrimento a 1900 (Porto Alegre: EDUFRGS, 1996); Palavra de Presidente (Porto Alegre: EDUFRGS, 2002); e Ditaduras Militares na América Latina (Porto Alegre: EDUFRGS, 2004).

Confira a entrevista.

IHU On-Line – O que foi a Campanha da Legalidade e de que maneira ela contribuiu no adiamento do Golpe Civil-Militar?
Claudia Wasserman –
A Campanha da Legalidade foi um movimento convocado pelo então governador do estado do Rio Grande do Sul em 1961, Leonel Brizola , para defender a posse de João Goulart  na Presidência da República depois da renúncia de Jânio Quadros . Sua prédica em torno do respeito à Constituição e às leis surtiu efeitos momentâneos e impediu que a polarização que o Brasil vivia entre o capitalismo e o socialismo se expressasse através de um golpe. Significa dizer que o fato de a população ter sido sensível à convocação pela Legalidade teve como resultado o retraimento momentâneo de militares e civis que planejavam romper com os preceitos da Constituição.

IHU On-Line – Qual a grande lição da Campanha da Legalidade? Para que haja um golpe de Estado, quem é mais decisivo, os generais ou o apoio da sociedade?
Claudia Wasserman –
Ainda que a História não seja “mestre da vida”, a importante lição da Campanha da Legalidade diz respeito à capacidade de mobilização da sociedade em momentos de grande polarização ideológica. Neste sentido, para que haja um golpe ou uma grande transformação social, o consenso da sociedade é decisivo, muito mais do que a coerção, seja ela exercida pelas forças armadas, policiais ou políticas.

IHU On-Line – Como Machado Lopes , general-comandante do III Exército, Leonel Brizola, o pivô do início do movimento de resistência no Rio Grande do Sul, e João Goulart se tornaram figuras-chave para a Campanha da Legalidade?
Claudia Wasserman –
No dia 28 de agosto de 1961, o então comandante do III Exército, general Machado Lopes, recebeu ordens do ministro da Guerra de bombardear o Palácio Piratini . Porém, ele não acatou a determinação e aderiu à Campanha da Legalidade, liderada por Brizola em apoio à posse de João Goulart. Assim, as três personagens tornam-se centrais para explicar o relativo sucesso do movimento.

IHU On-Line – De que maneira os ideais da Legalidade sobrevivem em nossa sociedade?
Claudia Wasserman –
Para Norberto Bobbio , a legalidade é concebida como “um atributo e um requisito do poder quando é exercida no âmbito ou de conformidade com leis estabelecidas ou pelo menos aceitas” e, nesse sentido, foi reivindicada por diferentes grupos naqueles dias, mas nem todos reivindicavam a palavra como o direito do vice-presidente João Goulart em exercer o poder presidencial na ausência do chefe de governo, em função de sua renúncia. Por isso, eu acho que os “ideais de legalidade” não existem idealmente, mas dependem muito da visão de mundo e da posição político-ideológica de cada um.

IHU On-Line – A negociação de Jango, que acabou cedendo à pressão e aceitando o parlamentarismo, com as demais siglas e militares foi a saída encontrada em 1961. No que se diferenciam os arranjos político-partidários da década de 1960 e os atuais? Por que, atualmente, as mobilizações sociais de rua parecem se distanciar dos partidos?
Claudia Wasserman -
A Campanha da Legalidade obteve sucesso ao conclamar o povo, mobilizar a sociedade e talvez adiar o golpe de 1964 uma vez mais, mas foi derrotada em sua meta principal que era de dar posse a João Goulart como Presidente da República no regime para o qual ele fora eleito vice-presidente. A Jango foi concedido o direito de tomar posse como Presidente da República em um regime no qual seus poderes eram limitados, conferindo a legalidade — leis válidas ou aceitas —, mas não a legitimidade, cujo significado refere-se ao exercício do poder; Jango passa a ter o poder de direito (Legalidade), mas não de fato (Legitimidade). Acho que os arranjos político-partidários atuais teriam as mesmas características no sentido de acomodar as partes. Agora, a afirmação de que as mobilizações de rua atuais se distanciam dos partidos, não me parece que isso seja correto. Ainda que haja outro tipo de organização além da partidária, não significa que as mobilizações não estejam também fortemente informadas e influenciadas pelos objetivos político-partidários.

IHU On-Line – Qual foi a importância da imprensa para o movimento (particularmente a Rádio Guaíba) na década de 1960?
Claudia Wasserman –
A imprensa teve um papel fundamental na mobilização social, papel atualmente desempenhado pelas redes sociais da internet. A imprensa, hoje, tem um papel mais amortecedor do que agitador da luta de classes.

IHU On-Line – De que maneira o apelo civil pelas reformas de base de Jango, defendidas por Brizola, ressurge 50 anos depois, na atual conjuntura brasileira?
Claudia Wasserman -
Os temas, conteúdos e projetos dos anos 1950/70 continuam como utopia para o Brasil e para as sociedades latino-americanas. Muitas das propostas reformistas — diminuição das desigualdades sociais, harmonização das relações entre capital e trabalho, liberdade de imprensa, melhoria da educação de massas, ampliação do acesso à saúde e cultura para o povo brasileiro — ainda não foram realizadas.

O debate sobre os anos 1960 oportuniza, nesse sentido, que não percamos de vista as lutas que eram travadas na época — o que se estava disputando, quais eram as forças sociais e políticas envolvidas e o que pode ser reatualizado daquele contexto? Retomar aquele desenvolvimento cultural, político, educacional e projetos de desenvolvimento menos submissos, mais independentes é tão difícil quanto retornar do exílio para o sujeito ao qual foram negados os direitos de cidadania durante 20 ou 30 anos.

Os processos movidos pelas organizações como Anistia Internacional  e pelas Comissões de Resistência contra a Ditadura vêm obtendo reconhecimento dos prejuízos causados a sujeitos que se envolveram na luta contra a Ditadura, resultando em indenizações a algumas dessas pessoas. Mas quem indeniza o povo brasileiro por ter sido perdida, jogada fora, essa época de ouro da cultura nacional, da educação, dos projetos de desenvolvimento autônomos do capitalismo, das reformas de base que até hoje não foram implementadas?

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