Edição 439 | 31 Março 2014

Igreja e movimentos sociais – Da legalidade à clandestinidade

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Ricardo Machado

Fábio Pires Gavião aborda a constituição dos movimentos sociais católicos de esquerda no período pré e pós-golpe de 1964

Ainda que o contexto político e social brasileiro do início dos anos 1960 fosse muito complexo, cercado de interesses e articulações secretas, a opinião pública da época discutiu as questões nacionais a partir de dois grandes eixos, que, não por acaso, refletiam a geopolítica da Guerra Fria: capitalismo e comunismo.  Entretanto, a revisão histórica parece clarear o que foi uma paranoia nacional em relação ao medo com o comunismo, o que resultou na sustentação da sociedade civil a um golpe de Estado perpetrado pelos militares, que permeou inclusive a Igreja, embora o fato seja, no mínimo, paradoxal. “Seria, sem dúvida, incoerente com os preceitos evangélicos uma posição colaboracionista da Igreja Católica a um regime militar, no Brasil ou na América Latina como um todo. As clivagens políticas das sociedades contemporâneas se reproduzem também no interior do laicato e do clero (regular e secular) da Igreja católica”, destaca Fábio Pires Gavião, professor de História, em entrevista por e-mail à IHU On-Line.

Anos antes do golpe, em 1962, integrantes dos setores da Igreja mais alinhados à esquerda fundam a Ação Popular - AP e, mais tarde, a APML. “A Ação Popular foi uma organização política fundada oficialmente em 1962, por iniciativa de um grupo de militância identificada com a esquerda católica, que foi bastante atuante no contexto do final do governo Juscelino Kubitscheck. (...) Essa militância atuava em diversos movimentos sociais, organizados no campo e na cidade, sobretudo nos estados do Rio de Janeiro, São Paulo, Minas Gerais, Bahia e Pernambuco”, destaca Fábio.

“Após o golpe civil-militar de 1964 e a perseguição e repressão política que se seguiu, as organizações políticas à esquerda foram empurradas à clandestinidade, e suas lideranças exilaram-se no Uruguai, Chile e outros países. Um processo de autocrítica abateu todas as organizações, e com ela houve viragens nas bases teóricas, estratégicas e táticas das organizações. A AP sofre esse processo, que culmina em 1971 com a adoção do marximo-leninismo como referencial teórico de organização partidária. A AP, depois APML, busca maior inserção em meios operários, o que ocorre com destaque na região do Grande ABC paulista”, complementa.

Fábio Pires Gavião é graduado em História pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho. Na Unicamp, obteve o título de mestre em História. Atualmente é coordenador do curso de licenciatura em História da Universidade Anhanguera de São Paulo - UNIAN-SP - Campus Santo André. Atua, principalmente, com os temas: religião, esquerda, movimento estudantil, Governo João Goulart, golpe de 1964, política e ideologia.

Confira a entrevista.

IHU On-Line – O que foi a Ação Popular  e qual sua importância no contexto que culminou com o Golpe de 1964?
Fábio Pires Gavião -
A Ação Popular - AP foi uma organização política fundada oficialmente em 1962, por iniciativa de um grupo de militância identificada com a esquerda católica, que foi bastante atuante no contexto do final do governo Juscelino Kubitscheck  (1956-1961), no período de instabilidade política que se seguiu à eleição e renúncia do presidente Jânio Quadros  em 1961 e em todo o processo de polarização política que marcou o governo de João Goulart  (1961-1964). Essa militância que afluiu para a AP em 1962, atuava em diversos movimentos sociais, organizados no campo e na cidade, sobretudo nos estados do Rio de Janeiro, São Paulo, Minas Gerais, Bahia e Pernambuco.

Entretanto, foi no movimento estudantil que a AP se destacou. A liderança da organização foi formada por estudantes universitários que integravam a Juventude Universitária Católica - JUC. A JUC e depois a AP elegeram sucessivos presidentes da União Nacional dos Estudantes -UNE, em um período que é reconhecido com o momento de maior destaque e importância política do movimento estudantil no tabuleiro político nacional. Os presidentes da UNE Aldo Arantes  (1961-1962) e Marcos Vinicius Caldeira Brant  filiavam-se à JUC, e José Serra  (1963-1964), à AP. O primeiro coordenador nacional da AP (1962-1964) foi Herbert José de Souza, o Betinho , que chegou a integrar a equipe de assessores do Ministério da Educação do governo João Goulart. A AP e uma ala à esquerda dentro do Partido Democrata Cristão - PDC alinharam-se a outros partidos à esquerda, que assumiram uma posição mais radicalizada com relação às reformas de base, com destaque para a reforma agrária.

Sob a liderança de Leonel Brizola , do Partido Trabalhista Brasileiro - PTB, houve uma aproximação do trabalhismo com o Partido Comunista Brasileiro - PCB, Partido Comunista do Brasil - PCdoB e Polop , organizações políticas com grande inserção na estrutura sindical e nos movimentos sociais pró-reformas. Organizados na Frente Parlamentar Nacionalista - FPN , a esquerda procurou pressionar o governo João Goulart a assumir a pauta das reformas de base de forma inequívoca. Tal postura de enfrentamento com a União Democrática Nacional - UDN  e demais setores conservadores, levou à ruptura entre o PTB e o Partido Social Democrático - PSD no processo de aprovação da reforma agrária que tramitava no Legislativo, fraturando a base de sustentação de João Goulart no Congresso Nacional, já num quadro de paralisia e ingovernabilidade que antecede imediatamente o golpe civil-militar de 1964.

IHU On-Line – Qual a diferença entre a Ação Popular e a Ação Popular Marxista-Leninista – APML?  Qual foi a importância da APML à época?
Fábio Pires Gavião -
Após o golpe civil-militar de 1964 e a perseguição e repressão política que se seguiu, as organizações políticas à esquerda foram empurradas para a clandestinidade, e suas lideranças exilaram-se no Uruguai, Chile e outros países. Um processo de autocrítica abateu todas as organizações, e com ela houve viragens nas bases teóricas, estratégicas e táticas das organizações. A AP sofre esse processo, que culmina em 1971 com a adoção do marximo-leninismo como referencial teórico de organização partidária. A AP, depois APML, busca maior inserção em meios operários, o que ocorre com destaque na região do Grande ABC paulista, com a inserção de militantes com origens na classe média nas linhas de produção, o propalado “processo de proletarização”. A APML, diante de fortes disputas internas, alinha-se ao maoísmo e à estratégia da “guerra popular prolongada” para o enfrentamento ao regime militar. Simultaneamente, uma autoproclamada “maioria” dentro do partido discute a possibilidade de incorporação ao PCdoB, também maoísta, o que ocorre em 1973. Os demais militantes continuaram a ostentar a sigla até 1978. As organizações de resistência ao regime militar foram desbaratas pelos órgãos de informação e repressão do regime. A APML soma-se a outras organizações políticas adeptas do ideário socialista, que adota postura revolucionária ao longo da vigência da Ditadura Militar brasileira. 

IHU On-Line – Por que a Igreja, apesar de os seguimentos majoritários terem apoiado o golpe, foi fundamental na organização de grupos de resistência ao regime?
Fábio Pires Gavião -
Muitos setores políticos e sociais que aderiram ao golpe civil-militar de 1964, na perspectiva de evitar as reformas estruturais anunciadas no início da década de 1960, avaliavam uma incursão militar breve, com rápido retorno a um regime civil, no qual os setores populares se mantivessem sob controle e conforme a tradição republicana brasileira, afastadas do poder de decisão política. No imediato pós-golpe, ocorre uma cisão no interior das Forças Armadas, que se divide na “linha castelista”, tendo à testa o primeiro presidente militar Castelo Branco ; e na chamada “linha dura”, vitoriosa com a eleição do segundo presidente militar, Costa e Silva , em 1967. Os primeiros pretendiam o rápido retorno ao poder dos civis, os segundos tinham um projeto de maior permanência dos militares no poder. Em 1968, com Costa e Silva e o AI-5 , o regime abandona as “aparências democráticas” e revela sua face mais autoritária e violenta. Adentramos, então, nos chamados “anos de chumbo”, período no qual se intensificam o terrorismo de Estado, as práticas de desrespeito aos Direitos Humanos, como assassinatos e torturas.

Seria sem dúvida incoerente com os preceitos evangélicos uma posição colaboracionista da Igreja Católica a um regime militar, no Brasil ou na América Latina como um todo. As clivagens políticas das sociedades contemporâneas se reproduzem também no interior do laicato e do clero (regular e secular) da Igreja Católica. Com o pontificado de João XXIII , o Concílio Vaticano II  (1962-1965) e ainda mais com a Segunda Conferência Geral do Episcopado Latino-Americano  em 1968, realizada na cidade colombiana de Medellín, há um reforço de legitimidade para a atuação da esquerda católica latino-americana, que ganha uma nova sistematização teológica e pastoral com a Teologia da Libertação  (TL) e o destaque para os Centros Eclesiais de Base - CEBSs. Tratava-se da “opção preferencial pelos pobres” proclamada na Terceira Conferência Geral do Episcopado Latino-Americano, realizada na cidade mexicana de Puebla de Los Angeles, México, em 1979.  Essa orientação do clero buscava responder a certo distanciamento com as populações mais desprovidas e também fazer frente ao avanço protestante nesses extratos sociais.

Apoio

O apoio do clero católico se deu em diversos níveis, desde o apoio logístico aos grupos políticos clandestinos, com participação direta de freis, que acolhiam às escondidas militantes em mosteiros, atuavam na comunicação entre as “células” das organizações, bem como providenciavam as necessidades básicas para a sobrevivência. São emblemáticas as participações de jovens dominicanos como Frei Tito  e Frei Betto , Frei Fernando  e Frei Ivo .  Destacamos ainda, como desdobramentos do Concílio Vaticano II e no contexto maior das referidas conferências episcopais, e como tomada firme de posição na direção dos Direitos Humanos, a constituição da Comissão Brasileira de Justiça e Paz em 1969, que se subdividiu em seções regionais, com ostensivo apoio de arcebispos como Dom Evaristo Arns , em São Paulo. As Comissões de Justiça e Paz desenvolveram uma ampla rede de prestação de serviços jurídicos a presos políticos, o que permitiu, doravante, o arquivamento de cópias dos Inquéritos Policiais Militares - IPMs que hoje nos permitem estudar diversos agrupamentos políticos clandestinos. Resultante desse trabalho, temos diversas publicações que registram e analisam esse período da história brasileira. Por fim, cabe destacar o papel do alto clero na interlocução direta com autoridades do regime e a denúncia das práticas de tortura, contribuindo para acelerar o processo de abertura política iniciado no governo de Ernesto Geisel , ou seja, para o retorno a um regime representativo no Brasil.

IHU On-Line – Como foi o processo de transição da Juventude Universitária Católica – JUC para a Ação Popular? Por que houve rompimento com a Igreja Católica?
Fábio Pires Gavião -
No final da década de 1950, a JUC foi transformando suas práticas, entendendo que a missão evangelizadora naquele momento histórico demandava um maior “engajamento no temporal”, forma pela qual justificavam o maior envolvimento dos jucistas no movimento estudantil, marcado à época pelos grandes debates políticos e econômicos visando ao desenvolvimento nacional. Ao buscar disputar postos de poder no movimento estudantil, o “setor político” da JUC faz alianças com militantes marxistas e promove um alinhamento programático em torno da luta por reformas sociais, que em essência eram as propostas do PCB. Tal postura, bastante clara nos documentos internos a partir do Congresso dos 10 anos da JUC (1960), não foi bem vista pela Hierarquia, que soma esforços para reorientar o movimento. As lideranças jucistas no movimento estudantil percebem que um movimento de apostolado leigo, tutelado pela Hierarquia, não seria o instrumento ideal para uma luta eminentemente progressista. Organizam, portanto, a Ação Popular em 1962.

IHU On-Line – O Humanismo Cristão pode ser considerado o marco conceitual das estratégias da Ação Popular? A propósito, como este conceito pode ser compreendido a partir do pensamento dos filósofos Jacques Maritain , Louis Joseph Lebret , Teilhard de Chardin  e Emmanuel Mounier  nesta perspectiva?
Fábio Pires Gavião -
O humanismo cristão de matriz francesa se desenvolveu no contexto da resistência ao nazifascismo na década de 1930 na Europa. Por outro lado, por ser cristão, não poderia coadunar-se com o materialismo histórico. Dessa forma, constitui-se em sua face política um ideário de terceira via. Ao buscar orientar a prática de engajamento político de católicos, justifica a prática de alianças estratégicas com grupos marxistas, para o combate comum ao nazifascismo. Tais filósofos filiados a essa corrente de pensamento católico foram a base para a constituição da democracia cristã no pós-guerra, e foram reapropriados no Brasil pela esquerda católica, para justificar a prática de alianças com estudantes marxistas no contexto específico do início da década de 1960 no movimento estudantil e nos movimentos sociais em geral. Uma vez que a organização de AP se dá no interior dos quadros da JUC, ela foi marcada fortemente em sua origem por este ideário, superado posteriormente após o golpe civil-militar de 1964; contudo, semeou os caminhos que levariam ao desenvolvimento paralelo da Teologia da Libertação. Uma análise mais pormenorizada dessa interpretação pode ser encontrada ao longo dos capítulos de minha dissertação de mestrado.

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