Edição 439 | 31 Março 2014

Regime militar: A trajetória da mentira

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Luciano Gallas

"A questão principal que permanece até agora é que o golpe é fruto de uma doutrina, que independe de humores. A doutrina da segurança nacional foi a grande novidade que nos trouxe o golpe de 1964", pondera Jair Krischke

“Esta ditadura é a ditadura da mentira. Toda sua trajetória é a trajetória da mentira, do engodo, quando as pessoas são vergonhosamente enganadas. A começar pela data. Eles dizem que a suposta revolução, que na verdade nada mais foi do que um golpe, ocorreu em 31-03-1964. Que 31 de março coisíssima nenhuma!”, afirma Jair Krischke em entrevista concedida por telefone à IHU On-Line. E segundo ele, “e ainda hoje os simpatizantes desta ditadura seguem mentindo”.

Conforme Jair Krischke, João Goulart decidiu não reagir ao golpe porque tinha conhecimento do plano de ação estadunidense de, em um contexto de Guerra Fria, utilizar a força para impedir uma aproximação entre o Brasil e a União das Repúblicas Socialistas Soviéticas, ou mesmo com a China. O planejamento, neste caso, significaria invadir o Brasil a partir do estado do Espírito Santo e estabelecer uma divisão territorial, separando o Brasil do Norte do Brasil do Sul. Esta presença estadunidense entre os militares brasileiros repercute diretamente no pensamento e formação elaborados nos quartéis, constituindo-se em uma das principais influências sobre a doutrina de segurança nacional — a outra influência, segundo Krischke, diz respeito aos preceitos da guerra de contrainsurgência francesa. “A questão principal que permanece até agora é que o golpe é fruto de uma doutrina, que independe de humores. A doutrina da segurança nacional foi a grande novidade que nos trouxe o golpe de 1964”, destaca o ativista dos direitos humanos. Ele mesmo completa: “Este pensamento no Brasil recebeu um aporte interessantíssimo, pouco pesquisado, do pensamento militar francês, que é a guerra de contrainsurgência, que aqui teve uma recepção imensa”.

Jair Krischke é ativista dos direitos humanos no Brasil, Argentina, Uruguai, Chile e Paraguai. Em 1979, fundou o Movimento de Justiça e Direitos Humanos, a primeira organização de direitos humanos do Brasi.

Confira a entrevista.

IHU On-Line - Porto Alegre e outras cidades gaúchas abrigaram militares argentinos, uruguaios, chilenos, paraguaios, bolivianos e peruanos que vinham ao Brasil fazer cursos de combate à guerrilha, implementados durante a Operação Condor . O que os documentos obtidos pelo Movimento de Justiça e Direitos Humanos revelam sobre a participação do Rio Grande do Sul na operação?
Jair Krischke –
Aqui em Porto Alegre, no dia 12 de novembro de 1978, ocorreu o primeiro caso de Operação Condor flagrado e denunciado através da imprensa, resultando no primeiro caso levado aos tribunais de Justiça em todo o Cone Sul de nossa América, episódio que ficou conhecido internacionalmente como “O sequestro dos uruguaios”. Mas eu quero chamar a atenção para o fato de que, naquele momento, não se falava em Operação Condor. Nós desconhecíamos este tipo de operação. Passamos a obter informação quando Dr. Omar Ferri , nosso companheiro do Movimento de Justiça e Direitos Humanos, foi acionado por companheiros uruguaios que se encontravam refugiados em São Paulo, que relatavam ter recebido um telefonema muito estranho de Lilian Celiberti  e passaram a imaginar que estaria ocorrendo algo de anormal, que colocava a segurança dela em muitíssimo risco.

Ferri foi até a rua Botafogo, em Porto Alegre, onde Lilian residia, tocou a companhia, não encontrou ninguém. Estava tudo fechado. Isso era um fim de tarde. Voltou na manhã do dia seguinte, tocou a campainha, e novamente ninguém. Falou com um senhor que estava no pátio, que por acaso era o proprietário do apartamento, e ele disse que fazia alguns dias que não via o casal e as crianças. Nosso companheiro Dr. Omar Ferri fez então um bilhete dizendo que tinha estado ali, informou seu telefone e escreveu que ficava à disposição. Passaram-se mais um ou dois dias quando o jornalista Luiz Cláudio Cunha , também acionado por São Paulo, foi até lá, acompanhado do fotógrafo João Batista Scalco , da revista Placar, e entrou no edifício. O apartamento era térreo, de fundos. Eles perceberam que um senhor vinha atrás deles. De frente para o apartamento onde Lilian e Universindo  viviam, havia uma escada pela qual este senhor que vinha atrás subiu. Luiz Cláudio e Scalco tocaram a campainha, a porta se abriu e uma pistola foi colocada na cabeça de cada um. Aquele senhor que havia subido as escadas já tinha descido de arma em punho. Luiz Cláudio e Scalco ficaram chocados por terem sido recebidos dessa forma, afirmaram que eram jornalistas, mostraram suas licenças. Então os policiais confirmaram, os liberaram, disseram que estavam investigando um problema de contrabando e orientaram para que nada falassem sobre o assunto.

Ao sair de lá, Scalco disse a Luiz Cláudio Cunha: “este sujeito que me colocou a pistola na cabeça, eu já fotografei”. Então vão examinar no arquivo da Companhia Jornalística Caldas Júnior e se deparam com a fotografia do jogador de futebol conhecido como Didi Pedalada, Orandir Portassi Lucas . E onde estaria este ex-jogador, então? Vão investigar: policial, trabalhando no DOPS. Aí entenderam o que estava ocorrendo. A imprensa colaborou extraordinariamente nesse episódio. Houve a denúncia, que resultou em um processo judicial. Foi o primeiro caso da Operação Condor flagrado no seu trajeto, denunciado, em meio a uma luta incrível — diziam que mentíamos, que não era verdade, inventaram farsas, mas conseguimos comprovar os fatos. Então este foi o primeiro caso denunciado da Operação Condor. Dois meses antes, ocorrera um caso muito semelhante em Passo Fundo. Hoje, nós temos toda a documentação sobre este outro episódio também. Em ambos, atuaram agentes do DOPS do Rio Grande do Sul. Mas vamos ser claros: não foi o delegado Pedro Seelig  quem autorizou o ingresso em território brasileiro de oficiais e soldados do exército uruguaio. Alguém com muito mais poder e mando, certamente alguém em Brasília, com muitas estrelas nos ombros, é que concedeu esta autorização, evidenciando que havia uma parceria entre os aparelhos repressivos da América Latina, parceria esta que tem muito a ver com a formação que estes militares receberam no Brasil, dentro do pensamento militar brasileiro de guerra de contrainsurgência.

IHU On-Line - O Departamento de Ordem Política e Social – DOPS do Rio Grande do Sul teria sido o único no país a alegar que havia queimado os arquivos da repressão...
Jair Krischke –
De fato, o Rio Grande do Sul foi o único estado brasileiro que queimou os arquivos do DOPS. A imprensa foi chamada, fotografou e filmou, a queima foi proclamada aos quatro ventos, o então governador Amaral de Souza  teve participação ativa neste processo. Uma arrematada mentira, que hoje nós temos condições de comprovar. Os papéis foram queimados? Foram, sim, mas somente depois de terem sido microfilmados. Então, na verdade, o que houve no Rio Grande do Sul foi uma modernização dos arquivos, eliminando-se os papéis que já tinham sido microfilmados. Lamentavelmente, o destino destes microfilmes foi o Comando Militar do Sul. Estes documentos ainda hoje lá se encontram, assim como todos os documentos dos DOPS dos demais estados brasileiros se encontram em mãos do Exército brasileiro. Quem diz isso?  Eu apenas reproduzo o que o general Lucena , então comandante do Exército brasileiro, declarou ao jornal O Estado de São Paulo em agosto de 1995: “sou de opinião de que o Exército deve devolver aos estados os arquivos do DOPS”. Se isso não é confissão, eu não sei o que seria. Os arquivos do DOPS do Rio Grande do Sul se encontram no Comando Militar do Sul. Então esta queima de documentos foi uma farsa. Posteriormente, nós recuperamos em Montevidéu alguns destes documentos “queimados”. E o mais interessante destes documentos “queimados” recuperados é que eles registram duas anotações posteriores à data em que foram publicamente queimados. A queima dos arquivos do DOPS é uma arrematada mentira!

IHU On-Line – Esse certamente não foi o único episódio em que foi alegada a queima de documentos históricos do período da ditadura militar...
Jair Krischke -
Os militares no Brasil costumam dizer que não têm mais documentos porque os queimaram. Eu afirmo que é mentira. Há outros episódios que provam isso, além deste que relatei dos documentos do DOPS do Rio Grande do Sul. Em dezembro de 2002, no programa Fantástico, da TV Globo, foi apresentada uma matéria [reportagem] na Base Aérea de Salvador que afirmava e exibia documentos do serviço secreto da Força Aérea queimados — alguns totalmente queimados, outros parcialmente. Em um primeiro momento, o que me chamou a atenção foi que uma equipe de televisão ter ingressado em uma base aérea, gravado as imagens — e note que a câmera é um aparelho enorme —, saiu da base aérea, sem ninguém ter perguntado nada sobre o ocorrido. Isso chama por demais a atenção. A seguir, foi entrevistado o chefe do serviço secreto da Aeronáutica, que disse: “olha, isso é muito grave, nós vamos investigar. Mas estou surpreendido, porque todo o acervo documental do CISA [Centro de Informações da Aeronáutica, o serviço secreto da Força Aérea] queimou quando do incêndio do Aeroporto Santos Dumont. Nós não temos mais nenhum desses documentos, porque tudo queimou”.

Estou falando de dezembro de 2002, TV Globo, programa Fantástico. Outubro de 2010: o então comandante da Força Aérea, que continua sendo o mesmo, o brigadeiro Juniti Saito , fez entrega ao Arquivo Nacional, em Brasília, de cerca de 60 mil documentos do arquivo secreto. Na ocasião, um jornalista do centro do país perguntou a minha opinião sobre este acontecimento. Eu disse que era fantástico, porque certamente são aqueles documentos que queimaram no Aeroporto Santos Dumont. Veja, estes são episódios que comprovam a mentira. Estes documentos existem, sim. No meu depoimento à Comissão da Anistia, eu iniciei falando de arquivos que deveriam ser investigados, mas chamei a atenção para o fato de que não escuto falar, no Brasil, da abertura dos arquivos da Polícia Federal brasileira, braço por excelência do aparelho repressivo. Ninguém fala. Eu citei isso no meu depoimento e, pelo que sei, a Comissão Nacional da Verdade ainda não tomou nenhuma iniciativa para resgatar toda esta importante documentação.

IHU On-Line – Há casos já relatados pelo Movimento de Justiça e Direitos Humanos de ações da Operação Condor mesmo após a Anistia, entre eles o sequestro e desaparecimento de argentinos no Aeroporto do Galeão, no Rio de Janeiro, em março de 1980; do padre Jorge Oscar Adur e do estudante de medicina Lorenzo Ismael Viñas, estes dois últimos ocorridos em junho do mesmo ano, em Uruguaiana, dias antes da visita do Papa João Paulo II a Porto Alegre. Como se deram estes fatos?
Jair Krischke –
Este caso do Aeroporto do Galeão ocorreu em 12 de março de 1980 e tem como vítimas Horácio Domingo Campiglia e Mônica Susana Pinus de Binstock. A anistia foi em agosto de 1979. Portanto, os responsáveis pela desaparição de Horácio e Mônica não estão acobertados pela malfadada Lei de Anistia. Estes episódios se esclarecerão no dia em que nós, brasileiros, tomarmos a sério o tema e o levarmos às barras da Justiça. Nós não temos feito isso. Mas a Itália fez, porque Horácio Domingo Campiglia também era cidadão italiano. Ele era ítalo-argentino. E a Justiça italiana acolheu este caso. Como também acolheu o caso de Lorenzo Ismael Viñas, filho de mãe italiana. Portanto, também ítalo-argentino.

Vou começar pelo caso do Galeão. É preciso lembrar que este aeroporto, na verdade, é uma base da Força Aérea Brasileira, a Base Aérea do Galeão, em um setor da qual construiu-se um aeroporto civil. Aquilo é um estabelecimento militar por excelência, famoso também por suas tropelias. Não podemos esquecer que, em 1954, no episódio do suicídio de Getúlio Vargas, ali na Base Aérea do Galeão estabeleceu-se o que se chamou a República do Galeão , quando dali passaram a comandar o país. Então é uma base aérea que já tem certa fama há tempos. Mas veja que coisa impressionante: por meio de documentos norte-americanos, nós comprovamos que um avião da Força Aérea argentina veio ao Brasil e aterrissou na Base Aérea do Galeão para realizar esta operação de sequestro. O documento entra em detalhes, cita quem comandava o avião, dá outras informações. Eu representei as famílias de Horácio Domingo Campiglia e Mônica Susana Pinus de Binstock aqui no Brasil. A Comissão Especial de Mortos e Desaparecidos Políticos apreciou o caso. Eu juntei o documento que referi e foi concedida a reparação. O governo brasileiro reconheceu, assim, a sua responsabilidade frente a este episódio e indenizou as famílias.

A mesma coisa ocorreu com Lorenzo Ismael Viñas e o padre Jorge Oscar Adur, ocorridos os dois casos no dia 26 de junho de 1980. O padre Adur vinha a Porto Alegre em um ônibus da empresa argentina Gen. Urquiza, para juntar-se às Madres de Plaza de Mayo em uma possível audiência com o Papa, que aqui se encontrava, pois já tinham ido a Roma e não conseguiram falar com ele; foram ao México, durante a conferência de Puebla , e tampouco conseguiram uma audiência. Na ocasião, elas nos pediram que interviesse junto aos nossos bispos, buscando alcançar uma audiência com o Papa. Juntamente com o deputado Antenor Ferrari, apresentamos este pleito ao arcebispo auxiliar de Porto Alegre, Dom Antonio Cheuiche, que, junto ao Papa, conseguiu a referida audiência, a qual deveria ser muito breve, pois estaria dentro de um espaço na agenda do Papa, em um encontro com os religiosos que ocorreria no [ginásio de esportes] Gigantinho. Foram cinco minutos de audiência. O padre Jorge Oscar Adur nunca chegou. Nós temos todas as informações, o rol de passageiros do ônibus, enfim, toda a documentação — ele usava uma identidade falsa, no nome de Pedro Ramon Altamirando. Nesta mesma noite de 26 de junho de 1980, em um ônibus da empresa brasileira Pluma, desapareceu Lorenzo Ismael Viñas. Foi no mesmo dia, em ônibus diferentes. Isso aconteceu em 1980, já depois da Anistia. E o lamentável é que a Justiça brasileira não deu a menor importância. Também o Executivo, o Ministério da Justiça, não deu a menor importância ao fato e não se fez absolutamente nada. O que é uma vergonha para nós, brasileiros.

IHU On-Line – Que forças disputavam o poder político no Estado no momento do golpe civil-militar? Como suas lideranças reagiram ao golpe?
Jair Krischke –
Para responder, temos que olhar um pouquinho atrás. O golpe de 1964 teve antecedentes. Eu vou me situar em 1961, quando do Movimento da Legalidade. O governador era Leonel Brizola. Com a renúncia do presidente Jânio Quadros, quem deveria assumir, segundo a Constituição vigente, era o vice-presidente eleito, João Goulart, que se encontrava em visita oficial à China. É muito importante referir isso para entender os dias atuais. Então, João Goulart vem regressando, pela rota do Pacífico. Para em Montevidéu, Uruguai, e fica esperando. Leonel Brizola toma a dianteira aqui, numa ação de resistência contra o golpe, que se chamou Movimento da Legalidade, porque a Constituição dizia que, na renúncia, no impedimento do presidente, assumiria o vice. A Legalidade era Jango assumir. Essa iniciativa de usar rádio — e nos dias atuais eu vejo o rádio substituído pela internet (rede social), pois nós não podemos deixar de fazer uma certa comparação daquele fato com os episódios recentes da Primavera Árabe, quando pelas redes sociais se recrutaram pessoas, houve uma grande movimentação —, Leonel Brizola foi o pioneiro, só que usando o rádio. Então, estabeleceu-se uma resistência, o que fez com que os militares tivessem que negociar. Uma comitiva foi a Montevidéu negociar com João Goulart, dizendo que ele poderia assumir como presidente, mas que se modificaria o regime de presidencialista para parlamentarista. Esta seria a única forma que os militares aceitariam.

Desta comitiva que foi encontrar com João Goulart em Montevidéu, eu gostaria de destacar duas figuras: Tancredo Neves e o então coronel Ernesto Geisel. Veja como é a vida! João Goulart aceitou [os termos da negociação] e decidiu voltar ao Brasil para assumir o cargo de presidente no regime parlamentarista (reina mas não governa). Primeiro-ministro aprovado: Tancredo Neves; porque Tancredo Neves era o nome aceito pelos militares. E assim foi. De qualquer forma, tivemos aí o fracasso de uma tentativa de golpe. João Goulart, com muita habilidade, convocou depois um plebiscito nacional para que o povo se manifestasse se preferia o regime parlamentarista ou desejaria voltar ao presidencialismo, opção que venceu por uma diferença abissal. Assim, voltou-se ao regime presidencialista. Mas os golpistas não pararam de trabalhar, especialmente assistidos pelos norte-americanos. Isso está claríssimo, a história registra com abundância. E aí advém o golpe de 1º de abril de 1964.

Eu quis fazer este retrospecto pelo seguinte: ainda ontem eu recebi um artigo muito bem escrito que falava da transição que não termina nunca, a transição interminável . Mas eu digo que não é transição, é transação. É bastante diferente. Porque, depois de 21 anos de ditadura no Brasil, houve a maior mobilização de massas até hoje vista, o movimento Diretas Já, que mobilizou o povo brasileiro como nunca. Também nunca mais se repetiu. A ditadura resistiu e, através do colégio eleitoral [eleição indireta, realizada pelo Congresso Nacional], elegeu quem? Tancredo Neves. Isso é a prova cabal de que houve uma transação. Aquele mesmo Tancredo Neves que serviu aos militares lá em 1961 e, em 1985, novamente servia como uma luva aos propósitos da ditadura. Estamos frente a uma clara transação, por esta razão, interminável deste processo, e, até os dias de hoje, não conseguimos conviver com uma democracia plena. É por isso que não se abrem arquivos da ditadura militar, é por isso que a Comissão Nacional da Verdade tem dificuldades para avançar. É fruto disso.

IHU On-Line – É possível fazer uma comparação entre o comportamento da população gaúcha durante o Movimento da Legalidade e o comportamento da mesma população no momento do golpe civil-militar de 1964?
Jair Krischke –
Em 1964 nós não tínhamos mais Leonel Brizola no governo do Estado, nós tínhamos Ildo Meneghetti , um político tradicional, conservador, já com uma idade bastante avançada, e muito manipulável. E, não se tendo a possibilidade, a estrutura, para realizar a resistência, tudo fica muito difícil. Foi o que aconteceu. Além do mais, o golpe já era algo anunciado, só não sabíamos como seria; intuía-se que iria acontecer o golpe. Eu diria que a ditadura temia os comandos chamados grupo dos onze, criados por Leonel Brizola, mas que se mostraram absolutamente desarticulados, não tinham condições de resistir coisíssima nenhuma.

Esta ditadura é a ditadura da mentira. Toda sua trajetória é a trajetória da mentira, do engodo, quando as pessoas são vergonhosamente enganadas. A começar pela data. Eles dizem que a suposta revolução, que na verdade nada mais foi do que um golpe, ocorreu em 31-03-1964. Que 31 de março coisíssima nenhuma! O golpe ocorreu na madrugada de 1º para 02 de abril de 1964, quando o Congresso Nacional declarou vago o cargo de Presidente da República, pois o presidente já não se encontrava em território nacional. As tropas do general Olympio Mourão Filho [que já havia participado do integralismo, movimento de inspiração fascista] acamparam no Rio de Janeiro, no estádio do Maracanã, no dia 02 de abril. João Goulart ainda estava publicamente no Brasil no dia 02 de abril!

Vê como mentiam! E ainda hoje os simpatizantes desta ditadura seguem mentindo. Mas veja, em reunião no dia 02-04-1964, na casa do comandante do 3º Exército — era assim chamado o atual Comando Militar do Sul —, lá nos altos da rua Cristóvão Colombo, em Porto Alegre, quando Brizola incitou João Goulart a resistir, a nomeá-lo ministro da Justiça e, ao comandante do 3º Exército, [general Ladário Teles,] ministro da Guerra, justamente para resistir, João Goulart não quis. Hoje, tem-se mais e melhores informações sobre estes fatos. João Goulart estava a par de que um dos projetos elaborados pelos norte-americanos seria o de invadir o Brasil pelo estado do Espírito Santo e, a partir daí, estabelecer uma divisão, prática que eles já tinham levado a efeito na Coreia e no Vietnã. Teríamos então o Brasil do Norte e o Brasil do Sul. Hoje se tem boa documentação para constatar isso.

IHU On-Line – O senhor citou a importância do Movimento da Legalidade para entendermos o momento posterior do golpe. Na Legalidade, sargentos lotados na Base Aérea de Canoas impediram que oficiais decolassem com caças da FAB para bombardear o Palácio Piratini. Em 1964, qual foi a reação dos militares contrários ao golpe diante da derrubada do presidente?
Jair Krischke –
Esse fato de 1961 foi um lindo episódio. Oficiais reacionários tinham decidido decolar da Base Aérea e bombardear o Palácio Piratini com Leonel Brizola dentro e todo mundo mais que ali estava. Então os sargentos esvaziaram os pneus dos caças. Em outros casos, atravessaram caminhões na frente dos aviões. Nós temos, no Movimento de Justiça e Direitos Humanos, um depoimento lindíssimo de uma pessoa que estava lá e resistiu. Não foram só os sargentos. Alguns oficiais resistiram junto com os sargentos. Ao afirmar isso, lembro-me do querido amigo, de saudosa memória, capitão aviador Alfredo Ribeiro Daudt.

Em 1964, segmentos militares importantes estavam dispostos a resistir, entre eles os sargentos, que organizaram a resistência em Porto Alegre e também no interior do Estado. Estavam dispostos a resistir, sim. Nessa reunião que mencionei, realizada na madrugada de 02-04-1964, na casa do comandante do 3º Exército, o comandante estava disposto a resistir. Com esta postura, ele acabou sendo preso depois.

Em 1966, vieram para Porto Alegre mais de vinte sargentos, com armas e munição, para daqui dar início a uma resistência, que só não aconteceu porque um de seus membros acabou preso. Refiro-me ao sargento Manoel Raimundo Soares, assassinado no episódio que ficou conhecido como Caso das Mãos Amarradas — seu corpo apareceu boiando no Rio Jacuí. Com a queda do sargento Manoel Raimundo, este grupo que estava aqui com armas e munição para iniciar uma ação de resistência à ditadura acabou sendo desarticulado. Quero chamar a atenção para o fato de que o sargento Manoel Raimundo Soares morreu sob tortura porque não entregou, não delatou seus companheiros.

IHU On-Line – O sargento Manoel Raimundo Soares era um dos líderes deste movimento? Que destino foi dado às armas e munições arrecadadas pelos sargentos?
Jair Krischke –
Ele era um dos líderes, sim. Daqui estas armas e munições partiram para Caparaó, para a famosa Guerrilha do Caparaó, na divisa entre os estados de Minas Gerais e Espírito Santo [uma das primeiras insurgências armadas organizadas contra o golpe civil-militar de 1964].

IHU On-Line – A postura do presidente João Goulart de evitar o derramamento de sangue teria contribuído para que estes militares contrários ao golpe não desencadeassem uma reação mais intensa ao golpe de 1964?
Jair Krischke –
Sim. Seria necessário um comando maior para que essa reação ocorresse. João Goulart certamente tinha um bom nível de informação para não querer resistir. Mas sou capaz de afirmar muito categoricamente que o que mais influiu na sua decisão foi a traição de seu compadre, o general Amauri Kruel, que era o comandante do 2º Exército, com sede em São Paulo. Amauri Kruel era compadre de Jango, e o traiu. A imprensa brasileira não deu maior destaque, mas, recentemente, na Comissão da Verdade de São Paulo, um coronel do Exército contou que, para aderir ao golpe, Amauri Kruel recebeu duas malas cheias de dólares da Federação das Indústrias do Estado de São Paulo - Fiesp.

IHU On-Line – Em 1966, a resistência nos meios militares se resumia a este grupo de sargentos ou havia outros militares organizados?
Jair Krischke –
Há um episódio anterior, de 1965, que é a Guerrilha de Três Passos, no Rio Grande do Sul. Este grupo partiu de Montevidéu, sob o comando do coronel Jefferson Cardim de Alencar Osório. Isso ocorreu em março de 1965. O grupo era composto por vários militares que estavam exilados no Uruguai, mais um grupo de homens do interior do Rio Grande, quase todos participantes dos grupos dos onze.

Eles ingressam no Rio Grande do Sul por Santana do Livramento, seguindo para São Sepé, Catuípe e, finalmente, Campo Novo, onde realizaram um pequeno treinamento militar. O coronel Jefferson costumava dizer: “eu não posso admitir que estes golpistas completem um ano no poder sem nenhuma resistência”. A Guerrilha de Três Passos é muito pouco falada, mas está muito bem documentada.

IHU On-Line – Que fatores contribuíram para o sentimento de impunidade que imperava entre os militares golpistas, a ponto de praticarem atos de barbárie e de tortura durante a ditadura militar?
Jair Krischke –
Vamos conjugar o verbo no tempo correto: este sentimento de impunidade prevalece até agora, e faz os militares parecerem meninas moças quando impõem que não se pode falar desses assuntos — eles ficam nervosíssimos. A questão principal que permanece até agora é que o golpe é fruto de uma doutrina, que independe de humores. A doutrina da segurança nacional foi a grande novidade que nos trouxe o golpe de 1964. Com ele, pela primeira vez chega à América Latina e tem vigência plena a doutrina de segurança nacional, muito trabalhada na Escola Superior de Guerra. E tudo isso tem a ver com o trabalho do nosso conterrâneo, de má memória, Golbery do Couto e Silva , que adotou a doutrina de segurança nacional com um outro elemento pouquíssimo falado, que é a guerra de contrainsurgência.

Para resumir bastante, a doutrina de segurança nacional, quando começa a ser elaborada, tem inspiração na geopolítica, que depois gera o pangermanismo, que, por sua vez, gera o nazismo. Resumindo bem resumidamente seu pensamento: todo o gesto humano é um gesto de guerra, a favor ou contra. O professor na sua cátedra está praticando um gesto de guerra, o padre no púlpito está praticando um gesto de guerra. Todos nós, desde o operário na fábrica ao estudante na universidade, permanentemente praticamos atos de guerra.

O primeiro trabalho elaborado na América Latina sobre a guerra de contrainsurgência é de 1957, de um pensamento militar francês elaborado apenas dois anos antes, em 1955, e que diz respeito à derrota francesa no Vietnã, a Argélia “pegando fogo”. Neste momento, os franceses se dão conta de que aquela formação convencional do militar não tem mais valor. Agora a guerra era diferente. E aí elaboram um pensamento que, aqui no Brasil, acaba tendo um espaço muitíssimo grande, inclusive com a presença do então coronel Paul Aussaresses , que foi adido militar francês no Brasil, professor na Escola Nacional de Informações (em Brasília), e também instrutor no Centro de Instrução de Guerra na Selva (Manaus).

Este pensamento, do qual eu discordo profunda, total e absolutamente, mas reconheço que é um pensamento tão forte que empolgou os militares, os quais, muito semelhantemente aos seguidores de Adolf Hitler, até hoje dizem que prestaram um grande serviço ao Brasil — Hitler dizia que estava prestando um grande serviço à humanidade. Por favor! É por isso que eles têm não só este sentimento de impunidade, mas uma cartilha na qual eles rezam todos os dias. Quando na verdade foram “bárbaros”. Dizem que havia uma guerra, mas que guerra? Até esta coisa mais absurda que o ser humano pratica, que é a guerra, tem convenção — a Convenção de Genebra, que determina, por exemplo, que os inimigos presos não sejam torturados, tendo apenas a obrigação de revelar o nome e a patente. E, aos inimigos mortos em combate, com respeito devem ser enterrados, registrando-se o local e demais dados que ajudem em uma posterior identificação, facilitando, assim, que os corpos sejam entregues aos seus familiares. Nada disso foi observado durante a ditadura militar no Brasil. Romperam até com as regras da guerra e foram covardes. Aliás, têm sido covardes até hoje, porque não assumem os crimes que praticaram, os crimes de lesa humanidade.

IHU On-Line – O senhor vê um desdobramento do pensamento da guerra de contrainsurgência nas iniciativas de repressão às manifestações populares hoje em implementação no Brasil?
Jair Krischke –
Lamentavelmente, este é o pensamento militar ainda vigente hoje, não só no Brasil, mas em geral nas forças armadas da América Latina. Frente a estas mobilizações, junto às questões que envolvem a Copa do Mundo de 2014, quando os olhos do mundo vão estar voltados para o Brasil, os militares foram chamados. Não se pode admitir isso. E é aí que se dá o problema.

IHU On-Line – A chamada segurança pública é uma questão das forças policiais, não dos militares...
Jair Krischke –
A presidenta Dilma Rousseff chamou os militares no Palácio do Planalto para dizer: “eu quero que a Copa aconteça. Os senhores são responsáveis pela segurança”. Disse um general: “presidenta, isso é atribuição da polícia, não é nossa”. “General, o senhor já está escalado. O senhor será o responsável pela segurança”. Esse diálogo foi relatado por alguém que estava lá. Verdade ou não, o resultado final foi péssimo.

Sim, esta é claramente uma questão de polícia. A segurança pública é uma questão de polícia, não é uma questão militar, absolutamente, porque eles, os militares, estão totalmente despreparados para tal função. Mas agora, frente à incompetência da chamada polícia militar brasileira, seremos forçados a conviver com o mal maior. Nossa presidenta acabou por cometer um lamentável e terrível equívoco.

IHU On-Line – Gostaria de adicionar algo?
Jair Krischke –
Trata-se da questão da impunidade. Os militares brasileiros estão convencidos de que cumpriram bem o seu papel. Com aquele viés golpista, puritanista, eles estão convencidos, sim, de que fizeram um bem para o país, quando, na verdade, nos infelicitaram e atrasaram o Brasil com duas décadas perdidas. E não admitem responder sobre seus crimes de lesa humanidade.

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