Edição 202 | 30 Outubro 2006

O desafio da conquista da cidadania acadêmica da teologia

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IHU Online

Walter Ferreira Salles possui graduação em Teologia pela Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia, graduação em Filosofia pela Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia, mestrado em Teologia pelo Instituto Superior de Filosofia e Teologia da Companhia de Jesus e doutorado em Ciências da Religião pela Universidade Metodista de São Paulo. Atualmente é professor temporário da Pontifícia Universidade Católica de Campinas. Tem experiência na área de teologia, atuando principalmente nos temas: teologia, religião e hermenêutica. Na entrevista que segue, concedida por e-mail para a revista IHU On-Line, ele fala sobre os desafios e perspectivas da teologia hoje e afirma que “a teologia vive um momento singular no atual contexto brasileiro”. 

IHU On-Line - Quais as perspectivas e desafios que podemos apontar para uma relevância pública da teologia na universidade e na sociedade?

Walter Salles
- No que diz respeito ao Brasil, acredito que, a partir do reconhecimento oficial por parte do Ministério da Educação (MEC) em 1999, a teologia se vê desafiada a conquistar de fato a sua cidadania acadêmica. O reconhecimento oficial das autoridades brasileiras não significa necessariamente a sua aceitação de fato como saber que possua espaço no universo acadêmico e tampouco expressividade social, por parte das diversas formas de saber que compõem o cenário acadêmico. O espaço da teologia na universidade está por ser conquistado, o reconhecimento do MEC não é de modo algum um ponto de chegada, é na verdade, a meu ver, o início de um longo caminho, talvez árduo, até a conquista de uma cidadania acadêmica e relevância social. Dentre tantos desafios que se apresentam à teologia, é possível destacar a necessidade de construir-se um discurso que seja audível para além dos muros da Igreja, ou seja, mostrar que o exercício da teologia não se restringe à formação de padres e pastores, no caso da teologia cristã. Além disso, é importante lembrar que a pergunta pelo lugar da teologia na universidade não é um mero artifício retórico, uma vez que a resposta a esta questão acaba configurando a maneira de conceber a reflexão teológica e igualmente porque o problema da alocação da teologia na universidade não é físico, mas epistemológico: que maneira de fazer teologia na universidade? Seja como for, não se pode negar que a teologia vive um momento singular no atual contexto brasileiro.

IHU On-Line - Hoje se fala muito da necessidade de a teologia assumir o diálogo em várias perspectivas: com a cultura, com as ciências, com as religiões, com a sociedade. Isso não seria algo constitutivo do fazer teológico?

Walter Salles
- Certamente. Infelizmente, ao longo de séculos de história que caracterizam a tradição teológica, pouco a pouco o exercício da teologia foi se confinando e sendo confinado aos limites do estritamente eclesial, a tal ponto que, no Brasil, tornou-se lugar comum associar o estudo da teologia à formação de padres e de pastores. Todavia, a teologia como discurso sobre a maneira de o ser humano falar de Deus e de se comportar diante dele, deve estar aberta à perspectiva do diálogo com tudo aquilo que diz respeito ao ser humano, o que inclui o diálogo com a cultura, a sociedade, as religiões e as ciências. Isso é o que para mim significa dizer que o discurso da teologia deve ecoar para além dos muros das igrejas cristãs.

IHU On-Line - Quais as possibilidades e as dificuldades do diálogo entre teologia e ciência no atual contexto do mundo acadêmico? Até que ponto é possível o diálogo entre teologia e outras ciências?

Walter Salles
- De modo geral, a relação entre a chamada ciência moderna empírico–formal e a teologia evoca automaticamente a história de um longo conflito, presente ainda hoje em boa parte das universidades brasileiras. Para muitas pessoas, imbuídas de uma mentalidade de corte positivista, fora dos paradigmas da ciência moderna reina a fantasia, o irreal, o irracional, o não-objetivo. Para este tipo de mentalidade, o discurso teológico não possui consistência por carecer de uma base empírica, eliminando consequentemente da teologia a razoabilidade de seu discurso e a possibilidade de apreensão da realidade. Por isso, talvez, o passo inicial para estabelecer-se um diálogo entre teologia e ciência no mundo acadêmico passe por uma reinterpretação do conceito mesmo de ciência e uma ampliação do conceito de razão, a fim de não nos tornarmos cativos de uma visão racionalista típica do pensamento moderno. Afinal, não obstante o valor de todas as dimensões da racionalidade moderna, não parece mais ser razoável a idéia de que qualquer forma de saber que não seja capaz de observar, medir e quantificar o seu objeto de estudo não possa ser qualificada como ciência. Ou ainda que o discurso da chamada ciência experimental seja o único método capaz de aproximar-se da realidade em detrimento de outros discursos (poesia, mito, crenças...), que são freqüentemente reduzidos à insensatez, à falta de sentido. É preciso pensar a realidade para além da razão (moderna), porém jamais contra ela e nunca sem ela. O diálogo entre teologia e ciência não é somente possível como necessário na busca da compreensão do ser humano e de seu mundo.

IHU On-Line - Que aproximações e distinções precisam ser guardadas entre teologia e outros estudos da religião, considerando a especificidade epistemológica de cada área de construção do conhecimento?

Walter Salles
- No que diz respeito à aproximação entre a teologia e as outras formas de saber, estou convencido de que o postulado hermenêutico é um dos principais fundamentos da pesquisa científica, ou seja, a ciência passa a ser vista como um ato construtivo de interpretação da realidade. Nesta construção, o ato de pesquisar surge como um ato interpretativo subordinado a determinado contexto e que atende a interesses particulares, colocando-se em oposição à centralidade outrora concedida à mediação empírica, ao dogma da objetividade e à pressuposição da neutralidade do pesquisador na análise de seu objeto de estudo, como referenciais absolutos. No tocante à distinção, acredito que o lócus hermenêutico de quem se dedica ao estudo da religião não indica rigor ou falta de rigor científico, mas somente esclarece desde onde se interpreta a realidade. Além disso, é preciso lembrar que o discurso teológico interpreta a religião por meio de uma linguagem distinta da empírico–formal ou positivista e que nem por isso falseia a realidade. Na verdade, a teologia interpreta a realidade por meio de uma linguagem metafórica e simbólica, e com base em uma forma narrativa de discurso.

IHU On-Line - Quais as contribuições específicas da teologia para os estudos das religiões tendo em vista o diálogo inter-religioso?

Walter Salles
- Do ponto de vista da Teologia cristã, é de suma importância entender o estudo teológico da religião como uma aproximação hermenêutica que leve em conta a historicidade e a relatividade da verdade religiosa (mesmo da verdade revelada), bem como a historicidade do intérprete da religião. Nesta perspectiva, o trabalho teológico referente ao estudo da religião é um empreendimento hermenêutico que interpreta os textos da tradição da fé sempre em diálogo com as questões que emergem do contexto histórico no qual estamos inseridos. Por isso, uma hermenêutica teológica do pluralismo religioso deve ter como preocupação primeira ajudar o fiel a melhor compreender a sua fé, a sua experiência religiosa, fazendo-a ser um processo de humanização, de amadurecimento humano, ajudando a iluminar nossas inquietações existenciais. Hoje, o pluralismo religioso aponta para um significativo deslocamento teológico, desde que se busque um discurso teológico que considere o valor positivo da historicidade das religiões no que diz respeito à sua relação com o Transcendente. Uma Teologia cristã do pluralismo religioso tem como desafio a valorização das outras tradições religiosas em sua diferença irredutível, pensar o pluralismo religioso como algo querido por Deus. Em outras palavras, considerar este pluralismo não como uma cegueira culpável do ser humano, tampouco como um fracasso da missão da Igreja, mas como uma realidade que misteriosamente faz parte dos desígnios de Deus. Hoje, num mundo globalizado, mais do que nunca, o reconhecimento teológico do valor da diversidade religiosa coloca obrigatoriamente a pergunta pelo lugar das religiões no projeto salvífico de Deus.

IHU On-Line - Em seu artigo O estudo teológico da religião: uma aproximação hermenêutica, o senhor dá a entender que a antropologia é o caminho que a teologia precisa percorrer para abrir-se mais ao diálogo com as outras ciências. Não seria reduzir a teologia a uma antropologia?

Walter Salles -
Esta é uma crítica feita à teologia, desde o momento em que se passou a falar de um giro antropológico no exercício de determinada prática teológica. O perigo existe, é verdade. Mas quando digo que a antropologia é o lugar de toda a teologia, penso, sobretudo, na antropologia como lugar epistemológico da teologia, ou seja, na possibilidade de se produzir uma linguagem audível ao ser humano, marcado pela experiência da modernidade e igualmente da pós-modernidade. Trata-se de fazer teologia das experiências humanas de Deus, ou seja, do que o ser humano diz de Deus e da maneira como se comporta diante dele. Por isso, entendo que uma teologia de orientação antropológica seja uma interpretação da linguagem da fé e da existência cristã. Todavia, diferentemente do giro antropológico próprio da modernidade que conduz freqüentemente ao fechamento sobre a própria subjetividade, ao esquecimento do outro, e mais amiúde à rejeição do outro, o antropocentrismo teológico deve ser visto como uma abertura ao outro e ao seu mundo. Esta experiência da alteridade que nos interpela já é em si mesma a experiência de uma alteridade mais radical, absoluta, que a fé cristã nomeia Deus.

 

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