Edição 438 | 24 Março 2014

“De Auschwitz saímos pobres em humanidade”

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Márcia Junges e Andriolli Costa / Tradução de André Langer

O filósofo Reyes Mate alerta sobre os impactos causados pelo holocausto, pois na morte a primeira vítima é sempre a humanidade do algoz

A experiência do Holocausto judeu ainda hoje deixa feridas que não foram totalmente cicatrizadas. No entanto, para o filósofo Reyes Mate, retomar o assunto mesmo correndo o risco de expor ainda mais estas escaras é fundamental para manter a memória do acontecimento.  “A memória complica as coisas, já que abre feridas. Mas a única maneira de superar esse passado doloroso é tendo-o presente e não esquecê-lo”, defende. Afinal, se considerarmos que a história foi construída sobre vítimas, “teremos de dizer que continuamos a construir a história da mesma maneira, caso não recordarmos as injustiças passadas”.

Em entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line, Mate destaca a presença do mal banal não apenas nos campos de concentração, mas em outras esferas da vida contemporânea. Isto porque, se não é preciso ser diabólico para praticar o mal, a distância entre o cidadão comum e o criminoso torna-se ainda mais tênue e exige reflexão e autorreflexão para definir os limites. “Essa cultura da reflexão ou do juízo está cada vez mais ausente inclusive nas próprias universidades”, propõe Mate. “A generalização da corrupção entre pessoas cultas e formadas é uma boa prova da facilidade com que optamos pelo mal e convivemos com a melhor boa consciência com ele.”

Para o filósofo, o holocausto foi um crime contra a humanidade. Não por infligir sofrimento ao corpo e ao homem como indivíduo. “Por ‘humanidade’ podemos entender a conquista civilizatória do homo sapiens, a saber, todo esse patrimônio de virtudes e conhecimentos com que fomos modelando o ser humano.” Citando Jorge Luiz Borges, Mate alerta que não se mata impunemente. “A primeira vítima é a humanidade do algoz. De Auschwitz saímos pobres em humanidade, e isso explicaria muitas coisas.”

Reyes Mate é professor do Instituto de Filosofia do CSIC (Conselho Superior de Pesquisas Científicas). Em sua pesquisa, dedica-se à pesquisa da dimensão política da razão, da história, da religião e da memória na filosofia depois de Auschwitz. É autor do livro Justicia de las víctimas. Terrorismo, memoria, reconciliación (Barcelona: Anthropos, Editorial del Hombre, 2008), entre outros. Em português, citamos Memórias depois de Auschwitz (São Leopoldo: Nova Harmonia, 2005).

Confira a entrevista.

IHU On-Line - Se por um lado devemos lembrar Auschwitz do ponto de vista da categoria da memória, por outro é preciso superar o trauma sofrido por todo o povo judeu. A partir da filosofia política, como é possível lidar com esse paradoxo?
Reyes Mate -
É verdade que a memória complica as coisas, já que abre feridas. Mas a única maneira de superar esse passado doloroso é tendo-o presente e não esquecê-lo. Se admitirmos, com Hegel, que a história foi construída sobre vítimas, teremos de dizer que continuamos a construir a história da mesma maneira, caso não recordarmos as injustiças passadas. Na medida em que a filosofia política tem a ver com o conceito de justiça, nessa mesma medida é preciso pensar anamneticamente a política. Sem memória da injustiça, não há política moral.

IHU On-Line - Além do Holocausto, em que outras situações atuais você identifica a banalidade do mal?
Reyes Mate -
A banalidade do mal consiste em reconhecer a proximidade extrema entre o homem normal e o criminoso. É fácil envolver o cidadão normal em uma nuvem ideológica que o leve a cometer atos criminosos. Vemos que o normal é “deixar-se levar”, ao passo que enfrentar as situações criticamente exige um esforço reflexivo do qual nos dispensamos constantemente. Essa cultura da reflexão ou do juízo está cada vez mais ausente inclusive nas próprias universidades. A generalização da corrupção entre pessoas cultas e formadas é uma boa prova da facilidade com que optamos pelo mal e convivemos com a melhor boa consciência com ele. Infelizmente, a tese da banalidade do mal se comprova constantemente.

IHU On-Line - Em outra entrevista à nossa publicação, o senhor afirmou que a memória é ambígua, e pode levar ao ressentimento . A partir dessa constatação, como se pode compreender os mecanismos do ressentimento e da vingança em resposta à banalidade do mal?
Reyes Mate
- É verdade que a memória pode ser utilizada para reformar o dano (ressentimento) ou para combatê-lo. A memória emancipadora é a do sofrimento, mas não a do sofrimento próprio, e sim a memória do sofrimento alheio. Quando um povo se apropria do sofrimento de seus pais ou avós como algo próprio, corre o perigo do vitimismo, de instrumentalizar a dor alheia em função, por exemplo, dos ideais nacionalistas dos netos. A memória do sofrimento não existe para endossar teorias políticas presentes, mas para propor uma política que não se baseie sobre o sofrimento de ninguém. Repito, a memória que salva não é a dos próprios sofrimentos, mas a dos sofrimentos do próximo.

IHU On-Line - Qual é o papel da técnica na disseminação da banalidade do mal em nosso tempo?
Reyes Mate -
Se pensamos, por exemplo, nos programas da biologia sintética que já postulam a possibilidade de substituir o homem que conhecemos por máquinas superiores que ultrapassam os limites do ser humano, encontramo-nos com uma banalização da perda, referida ao valor da liberdade ou à importância do tempo finito, que nos deveria dar o que pensar. Podemos chamar banalização o desprezo desses cientistas pelos limites do ser humano, que é o que explica sua grandeza. A naturalidade com que enfrenta a destruição da liberdade em proveito de um ser mais resistente e mais exitoso tem muito a ver com a desfaçatez com que o hitlerismo colocou-se à liquidação de um povo, estimado inferior, para salvaguardar a pureza da raça superior. A tecnociência está em poder daqueles que Günther Anders  chama de “vergonha de Prometeu”, ou seja, pelo complexo de inferioridade do ser humano que dá maior importância ao que o sujeito humano faz do que ao que ele é. Vergonha por não estar à altura de seus produtos (que são mais confiáveis, mais resistentes, melhor programados...).

IHU On-Line - Em que sentido a razão moderna, e, em última instância, o hiper-racionalismo que caracteriza nosso tempo, tem relação com a irrupção dos totalitarismos?
Reyes Mate -
Hannah Arendt examinou detidamente a origem do totalitarismo. Uma de suas causas é o ideal ilustrado de igualdade que não deixa lugar para o conceito de pluralidade (que é simultaneamente igualdade e diferenciação). O difícil lugar da diferença na cultura moderna explica o antissemitismo moderno e, por conseguinte, propicia formas excludentes em todas as esferas da vida. O que quero dizer é que o totalitarismo está ligado, evidentemente, ao hiper-racionalismo da razão instrumental, mas também a outras formas de racionalismo “mais nobres” (como chamamos a “razão ilustrada”) para as quais, no entanto, a verdade pode ser pensada fazendo abstração do tempo e do espaço.

IHU On-Line - Em 2005 o senhor afirmou que o campo de concentração está se convertendo no símbolo da política moderna. Que lições políticas e filosóficas brotam dessa legitimação da barbárie?
Reyes Mate -
Walter Benjamin  dizia que, “para os oprimidos, o estado de exceção é a norma”. E o campo de concentração exemplifica bem o que é o estado de exceção, isto é, a suspensão do direito, a experiência de que a essência da lei é a decisão incondicional do soberano. O que estamos vendo na Europa, nestes anos de grave crise econômica, é que a solução que se está propondo é um modelo de sociedade no qual o legal é o que convém ao capital financeiro. Não há respeito aos direitos adquiridos, nem a promessas solenes. O único critério com peso e que fatalmente se impõe é o interesse dos poderosos. Esta crise colocou às claras os limites do reformismo. Estamos convocados a pensar de maneira alternativa.

IHU On-Line - Como foi possível para Hannah Arendt escrever Eichmann em Jerusalém e se “distanciar” de sua origem judaico-alemã no sentido de não se colocar como uma das vítimas?
Reyes Mate -
Apesar das críticas de que foi objeto, é um livro indispensável. Suas críticas ao processo, à legitimação do tribunal ou ao papel dos conselhos judaicos são de peso e é preciso levá-las a sério. Penso que fez bem em não “colocar-se no lugar das vítimas”, porque ninguém deveria fazê-lo. Uma coisa é deixar-se interpelar pela vítima e outra é identificar-se com a vítima, que é o que habitualmente fazemos. Mais produtivo é colocar-se do lado do verdugo e nos perguntar o que teríamos feito em seu lugar, que responsabilidades adquirimos, etc. A vítima não quer que se lhe dê razão, mas que se faça justiça. Creio que Arendt entendeu bem tudo isso.

IHU On-Line - Qual é a importância da distinção que a pensadora faz ao afirmar que, antes de ser um crime contra o povo judeu, o Holocausto era um crime contra a humanidade?
Reyes Mate
- Kafka  dizia que, “quando se ataca um judeu, abate-se o ser humano”. Tenhamos em conta que a expressão “crime contra a humanidade” tem dois sentidos, já que por “humanidade” podemos entender a integridade física da espécie. Nesse caso, o genocídio, isto é, o ataque a algum dos povos que compõem a espécie humana, é um crime contra a humanidade, contra a integridade da espécie. Mas, por “humanidade” podemos entender a conquista civilizatória do homo sapiens, a saber, todo esse patrimônio de virtudes e conhecimentos com que fomos modelando o ser humano. Falar, então, de crime contra a humanidade é reconhecer que nos campos de concentração morreu, boa parte desta humanidade morreu de fome. Como disse Borges  em Deutsches Requiem , não se mata impunemente: a primeira vítima é a humanidade do algoz. De Auschwitz saímos pobres em humanidade, e isso explicaria muitas coisas.

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