Edição 438 | 24 Março 2014

O mal como resultado do processo civilizatório moderno

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Márcia Junges e Ricardo Machado

Para Oswaldo Giacoia Junior, a maldade que conhecemos é resultado de uma dinâmica de interiorização e espiritualização da crueldade

Transitando entre o pensamento de Nietzsche e Agamben, entre outros, Oswaldo Giacoia Junior pensa a questão do mal como um aspecto central da ética em nossos tempos, sobretudo no Ocidente. “A ética de nosso século se abre com a superação nietzschiana do ressentimento”, aponta Giacoia, em entrevista por e-mail à IHU On-Line. “O Mal não seria meramente a privação do Bem, ou o agir que resulta de um movimento defectivo em relação ao ideal de perfeição e bondade, mas uma força positiva, que emana das mesmas fontes de onde também procedem as supremas criações humanas, tanto na bondade quanto na beleza”, complementa.

A genealogia do processo civilizatório, estabelecida por Nietzsche, indica que o resultado de modernidade foi uma dinâmica de interiorização e espiritualização da crueldade. Nesse sentido, Agamben aponta como paradoxo a lógica da “biopolítica” e do “biopoder”, com a qual a soberania moderna define o direito de fazer viver e deixar morrer. Em síntese, estamos sob a exposição constante da morte. “Existe algo de comum entre os campos de extermínio nazistas, a atual guerra global contra o terrorismo, o modo de funcionamento dos campos de refugiados e a dizimação étnica em diferentes localidades do planeta: trata-se da redução da vida política à condição de mera vida, de vida não digna de ser vivida, de um excedente descartável, da exclusão decidida a cada vez pelo poder soberano, que não é de um indivíduo, um grupo, um partido, mas própria do funcionamento da máquina biopolítica, que leva a efeito a produção de uma nova figura de sujeito assujeitado, uma peça da engrenagem dos dispositivos de biopoder”, sustenta Giacoia.

Graduado em Direito pela Universidade de São Paulo – USP e em Filosofia pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC-SP, Oswaldo Giacoia Junior é também mestre e doutor em Filosofia por esta instituição. É pós-doutor pela Universidade Livre de Berlim, Universidade de Viena e Universidade de Lecce, Itália, e livre docente pela Universidade Estadual de Campinas – Unicamp, onde leciona no Departamento de Filosofia. Especialista em Nietzsche, sobretudo em seu pensamento político, publicou, entre outros: Nietzsche – para a Genealogia da Moral (São Paulo: Editora Scipione, 2001), Nietzsche como psicólogo (São Leopoldo: Unisinos, 2004), Sonhos e pesadelos da razão esclarecida: Nietzsche e a modernidade (Passo Fundo: Editora da Universidade de Passo Fundo, 2005) e Nietzsche & para Além do Bem e Mal (2ª ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2005). Recentemente publicou Nietzsche versus Kant: Um Debate a respeito de Liberdade, Autonomia e Dever (Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2012) e Heidegger Urgente. Introdução a um Novo Pensar (São Paulo: Três Estrelas, 2013).

Confira a entrevista.

IHU On-Line - A partir das filosofias de Nietzsche e Agamben, que abordagens fundamentais surgem sobre a questão do mal?
Oswaldo Giacoia Junior - A questão do mal é, por certo, a questão central da ética, tal como a conhecemos no Ocidente. Penso que tanto Nietzsche quanto Agamben, enquanto filósofos, situam-se no limiar de um novo pensamento ético. De acordo com a ponderação de Giorgio Agamben, feita em O Que Resta de Auschwitz (São Paulo: Boitempo, 2008), “a ética de nosso século se abre com a superação nietzschiana do ressentimento. Contra a impotência da vontade em relação ao passado, contra o espírito de vingança em oposição àquilo que irrevogavelmente foi e não pode ser querido, Zaratustra ensina os homens a querer para trás, a desejar que tudo se repita. Com Nietzsche, a crítica da moral, feita segundo uma perspectiva filosófica que procura colocar-se além de bem e mal, culmina na capacidade de assumir integralmente o passado, de libertar-se de uma vez por todas da culpa e da má consciência” . O Mal não seria meramente a privação do Bem, ou o agir que resulta de um movimento defectivo em relação ao ideal de perfeição e bondade, mas uma força positiva, que emana das mesmas fontes de onde também procedem as supremas criações humanas, tanto na bondade quanto na beleza.

Já para Agamben, o ‘mal absoluto’, os regimes totalitários com suas ‘fábricas da morte’, são o ponto de partida da ética de nossos tempos, que não podemos ignorar, muito menos denegar por meio de edulcorações consoladoras. Talvez possamos dizer que, para o filósofo italiano, o mal não é banal nem radical, mas se inscreve entre as possiblidades mais assustadoras inscritas na lógica e na dinâmica da política moderna. Relativamente a isso, a experiência de Auschwitz  representa um limiar ético absolutamente inaudito; uma espécie de falência ou perempção da ética nas sociedades ocidentais contemporâneas, que exige ser tomada em consideração, sob a tradicional perspectiva da filosofia política, aquela do ideal de uma ‘vida boa’.

IHU On-Line - Em que aspectos ambos os pensadores oferecem subsídios para uma reflexão sobre as raízes do mal na humanidade?
Oswaldo Giacoia Junior - Em Nietzsche, a exigência de transição para um território ético inteiramente desconhecido não se deve unicamente à desmesura e à atrocidade implicadas nas experiências do ‘mal absoluto’ — que tornaria desumano querer a repetição de um passado atroz. O ensinamento do eterno retorno do mesmo — que nos instiga, pelo amor fati, a vencer a impotência da vontade contra o passar do tempo, contra a dimensão temporal do foi, acerca da qual a vontade não pode senão admitir sua impotência, já que não podemos mais mudar aquilo que foi — não significa uma aceitação conformista de tudo o que acontece, uma amarga resignação diante de tudo o que foi e será, mas a afirmação radical dos processos subjetivos e singulares de responsabilização.

Já em Agamben, depois de Auschwitz, o problema ético mudou radicalmente: “não se trata mais de vencer o espírito de vingança para assumir o passado, para querer que este retorne eternamente. Também não de manter firme, por meio do ressentimento, aquilo que não se pode humanamente tolerar, até o ponto de exigir a suspensão do tempo e do esquecimento, que com ele advém, como medida moral para tornar indelével as marcas do passado. Num tempo em que a exceção tornou-se a regra, talvez a refutação da ética nietzschiana situe-se no espaço aberto entre o amor fati e a preservação do ressentimento pela impossibilidade do perdão; no resto que permanece entre o não assimilável, cuja repetição não pode ser querida, e o imperdoável, que não pode ser aceito nem esquecido, mas que, todavia, não deixa de se repetir. Doravante, estamos diante de um ser além da aceitação e da recusa, do eterno passado e do eterno presente — um evento que eternamente retorna, mas que, justamente por isso, é absolutamente, eternamente inassumível. Além do bem e do mal não está a inocência do devir, mas uma vergonha não somente sem culpa, mas, por assim dizer, sem tempo”.

IHU On-Line - Em que sentido o mal que brotou no Holocausto pode ser compreendido não como uma expressão da barbárie ou da irracionalidade, mas, pelo contrário, da hiper-racionalidade que caracteriza a modernidade e seu projeto político?
Oswaldo Giacoia Junior - A pergunta contempla um campo de indagação que já havia sido explorado por Adorno  e Horkheimer  em A Dialética do Esclarecimento (Rio de Janeiro: Zahar, 1985), qual seja, a conversão do mito em esclarecimento e da racionalidade tecnocientífica em mitologia e dominação. Esse diagnóstico dos pensadores da Escola de Frankfurt  já havia sido estabelecido por Nietzsche, como eles mesmos não deixam de reconhecer, em sua genealogia do processo civilizatório como resultado da interiorização e espiritualização da crueldade. Em Agamben, o paradoxo pode ser remetido à lógica da biopolítica e do biopoder, de acordo com a qual a soberania moderna como poder de fazer viver e deixar morrer funciona de acordo com uma lógica de ‘abandono’, ou seja, sob a forma da constante exposição à morte. É a exposição permanente à morte — essa produção da vida nua como mera sobrevivência, a produção sistêmica da exclusão — que define as formas atuais de ocupação do espaço político. No colapso dos estados-nação, a estruturação do campo político faz-se pela exceção, por uma lei que se aplica ao suspender-se e, assim, faz do ‘abandonado’, do excluído, um homo sacer: alguém, como o refugiado, que é capturado no vácuo da lei, na ‘forma’ vazia de uma lei vigente em sua suspensão, uma vigência sem realização. Temos, com isso, o isolamento de uma forma de vida exposta à morte, um assassinato inimputável juridicamente e insacrificável, em termos rituais — ou seja, de perigo biológico ou político a ser eliminado. Essa ocupação tanatológica do espaço biopolítico, que insere a gestão da vida natural nos cálculos estratégicos da decisão soberana, fornece subsídios para uma compreensão particularmente rica das relações entre a democracia liberal e os totalitarismos contemporâneos.

IHU On-Line - Qual é a relação que pode ser estabelecida entre o mal, a biopolítica e a máquina de extermínio nazista e os demais totalitarismos do século XX?
Oswaldo Giacoia Junior - Trata-se de uma pergunta muito difícil de ser respondida, pois exigiria a realização prévia da tarefa de diferenciar, de modo suficiente, as diferentes espécies de totalitarismo no século XX. No entanto, existe algo de comum entre os campos de extermínio nazistas, a atual guerra global contra o terrorismo, o modo de funcionamento dos campos de refugiados e a dizimação étnica em diferentes localidades do planeta: trata-se da redução da vida política à condição de mera vida, de vida não digna de ser vivida, de um excedente descartável, da exclusão decidida a cada vez pelo poder soberano, que não é de um indivíduo, um grupo, um partido, mas própria do funcionamento da máquina biopolítica, que leva a efeito a produção de uma nova figura de sujeito assujeitado, uma peça da engrenagem dos dispositivos de biopoder. O homo sacer, que pode ser identificado com o muçulmano de Auschwitz, é o sujeito político contemporâneo, desde que por sujeito entendamos pelo menos duas acepões principais: sujeito no sentido de assujeitado, que é um produto histórico específico de relações totalitárias de poder biopolítico, como aquelas que se operam nos campos de concentração. Mas sujeito também no sentido daquele elemento a partir do qual pode se criar e instituir uma nova forma da política.

IHU On-Line - O que a irrupção do mal em episódios como o Holocausto aponta sobre a natureza humana e o interesse em fazer sofrer?
Oswaldo Giacoia Junior - Creio que a melhor forma de considerar essa pergunta seria dizer, com Agamben, que Auschwitz constitui uma realização concreta da condição inumana. Levando ao extremo a lógica do paradoxo, pode-se afirmar que nela o humano se demonstra como aquilo que resta de sua própria destruição sistemática. O humano é o resto subsistente entre o homem (testemunha, o sujeito que tem a linguagem, e, por causa disso, pode assumir sua condição de sujeito falante) e o não homem (o muçulmano, o morto-vivo, o mínimo denominador comum de funções orgânicas, o homo sacer).

O muçulmano, enquanto testemunha integral, é também não homem e, portanto, é o que não pode testemunhar. O sujeito da enunciação, como sujeito empírico, é o que não é a testemunha integral. Temos aqui uma cisão constitutiva ou afastamento que é, ao mesmo tempo, uma integração: na impossibilidade ou impotência de dizer, que é própria do muçulmano, funda-se a possibilidade humana do discurso, na consistência do sujeito empírico, em sua potência de dicção, na instância do discurso. O sujeito, nesses termos, é a testemunha de uma dessubjetivação; ele é o suporte da condição de testis, supertes, autor, daquele que vê, fala e age pelo outro, em nome do outro, que empresta seu ser e seu agir à atuação e efetivação de uma ausência — ele é, pois, o devir homem do inumano, essas figuras que, como a testemunha e o muçulmano, são divididos e inseparáveis; coextensivos e não coincidentes, cisão viva e indissolúvel. Juntos, eles formam uma dupla sobrevivência, da qual uma é função da outra: o não homem é o que pode sobreviver ao homem = o muçulmano é o homem que pode sobreviver ao homem, e que fala pela testemunha, cujo dizer torna realidade aquilo que ele próprio nem viveu, não foi, nem nunca poderá ser.

Esse é o limiar de um novo ethos, não dignidade humana, mas da vergonha, no sentido radical desse termo. A vergonha é o véu que, como a folha da figueira, encobre a nossa pudenda identidade e nudez, que gostaríamos que permanecesse oculta para sempre. Vergonha é transitus, é antes de tudo um processo de subjetivação e dessubjetivação, pelo qual o sujeito vem a si pela via da negatividade, por uma transcendência que o leva tanto ao que o define quanto a uma alteridade que não tolera reconhecer como constitutiva de si. Vergonha é o índice de um resto entre o eterno passado e o eterno presente, um presente histórico formado por um evento do passado que se obstina na repetição. Podemos ver isso também sob outra ótica, voltada para nosso próprio presente, pois hoje todos partilhamos a condição mais íntima de ‘homini sacer’, existimos como sobreviventes, como mera vida instalada num espaço de exceção, permanentemente expostos à decisão soberana.

IHU On-Line - Qual é a importância da categoria do ressentimento nietzschiana e da memória e da impossibilidade do esquecimento, em Agamben, para que façamos uma reflexão do mal para além de uma compreensão maniqueísta?
Oswaldo Giacoia Junior - O sentido do pensamento abissal — o eterno retorno — em Nietzsche consiste em liberar o passado de uma petrificação que ameaça tornar-se uma âncora do presente e congelar antecipadamente o futuro; poder querer tudo o que foi, sem acréscimo nem subtração, significa a libertação da vontade humana de seu vínculo de impotência vingativa em relação à passagem do tempo, à finitude e à dor, pela transformação da resignação ou da revolta num evento de responsabilidade própria. Essa é a relação produtiva entre memória e esquecimento, que se coloca como um limite extremo para a vontade, no pensamento de Nietzsche — como criação das condições possíveis para um poder querer libertador. Trata-se de uma transfiguração a ser compreendida no registro da subjetividade, em virtude de rememoração e da simbolização, que, como se sabe, são operadores psicanalíticos de subjetivação.

Em Agamben, a evocação do indizível na experiência de Auschwitz significa menos uma contestação definitiva da ética nietzschiana do que um dos motivos que exigem de nós o reconhecimento da urgência de nos aventurarmos por um território ético até hoje desconhecido — aquele para o qual nos convoca uma ética da vergonha e do testemunho, tal como a entende o próprio Agamben, seguindo as pegadas de Primo Levi .

IHU On-Line - Em que medida Auschwitz é uma sombra que não cessa de se projetar em nosso tempo? O que resta desse evento?
Oswaldo Giacoia Junior - A tarefa de pensar o que se passou nos campos de concentração, sobre o ‘que resta de Auschwitz’, exige ir além do registro cronológico dos acontecimentos passados, para detectar, fixar e expor a estrutura jurídico-política que deu ensejo a essa monstruosidade de destruição. É a partir dessa estrutura que se pode trazer à luz aquilo que os acontecimentos efetivamente foram (e que continuam a ser) — uma vez que este é o elemento possibilitador, a lógica vigente em todo esse processo.

“Aquilo que aconteceu nos campos ultrapassa em tal medida o conceito jurídico de crime que com frequência simplesmente deixamos de investigar a específica estrutura jurídico-política, a partir da qual aqueles acontecimentos surgiram. O campo é unicamente o lugar no qual se realizou a mais absoluta conditio inumana que jamais existiu sobre a Terra. No final das contas, é isso que conta tanto para as vítimas quanto para a posteridade. Seguiremos aqui, propositadamente, uma maneira contrária de proceder. Ao invés de derivar a definição do campo a partir dos acontecimentos que lá se passaram, perguntaremos, antes: o que é um campo; qual é sua estrutura jurídico-política; por que tais acontecimentos puderam se passar ali? Isso nos levará a considerar o campo não como um fato histórico, como uma anomalia que pertence ao passado (mesmo que, em certas circunstâncias, ainda possamos nos deparar com ela), mas, em certa medida, como a Matrix oculta, como o nomos do espaço político, no qual sempre ainda vivemos.”

IHU On-Line - Filmes como A vida é bela (Roberto Benigni, Drama, Itália, 1997, 116min) e O trem da vida (Radu Mihaileanu, Drama, França, 1998, 103min) se valem da criação de fantasias entre seus personagens para que estes conseguissem sobreviver ao horror do Holocausto. Nessa lógica, como a arte, tão cara a Nietzsche e Agamben, lida com a questão do Mal e da sua sublimação?
Oswaldo Giacoia Junior - A esse respeito, gostaria de repetir aqui, a meu modo, uma interpretação de Christoph Türcke , que considero extremamente lúcida e que exprime o espírito autêntico da dialética negativa da Escola de Frankfurt, um espírito que, de certa forma, já encontramos em Nietzsche, e que também não é estranho a Walter Benjamin , um pensador imprescindível para a compreensão de Agamben. Türcke observa que o essencial na experiência do eterno retorno do mesmo é a criação das condições para a “transformação da aceitação num evento de dignidade própria. O artifício do amor fati é um modo emocional-mental de agarrar, semelhante ao judô, que absorve a força do oponente, aumenta seu impulso e inverte-a em força sobre o oponente. Onde existe o amor fati, existe a arte da inversão. Para Nietzsche, ela é idêntica à arte em geral, pois a arte, conforme diz, é ‘a realidade mais uma vez, apenas em seleção, reforço, correção. O artista trágico não é nenhum pessimista — ele precisamente diz sim a tudo o que é questionável e mesmo ao que é terrível’. O verdadeiro artista é um artista da vida — justamente por desarmar dizendo ‘sim’ e fazendo como quem diz ‘sim’”.

Encarar o horror extremo pela perspectiva do amor fati é tomá-lo pela ótica do artista, que é também a do filósofo, na medida em que filosofia não é para Nietzsche outra coisa que ‘arte da transfiguração’. Em filosofia, como na arte, não se trata de reproduzir o real à la lèttre, mas de torná-lo visível, perscrutando seu cerne, dispô-lo em perspectiva a partir de uma distância artística, capaz de destacar o essencial e, por isso mesmo, de relacioná-lo à esfera positiva e criadora da responsabilização e da subjetividade.

Não se trataria, pois, apenas de recusar o acontecido, tal e qual aconteceu, mas de desintoxicar o peso inercial do passado, libertar a memória do ‘espírito de vingança voltado contra o tempo’, que é também a perpetuação do ressentimento ameaçando tanto o presente quanto todo futuro. Afinal, contestar ao veneno do ressentimento a força e a prerrogativa de ensombrecer todo futuro é uma pesada tarefa de transvaloração e de transfiguração, que nada tem a ver com neutralização do potencial tóxico e destrutivo da história. Novamente Türcke: “Ela não se poupa a memória: aprofunda-a. Não evoca apenas, mas também presta contas acerca do que perfaz, em última instância, a força e o sentido de toda lembrança: que nos libertemos do pesadelo do passado, ao invés de enrijecermos sob sua pressão” .

Em Agamben, o pensamento da repetição não é menos radical. Nesse sentido, Auschwitz, que, do ponto de vista de sua lógica e de sua estrutura, foi um acontecimento, não cessou de se repetir na modernidade, libera o acesso a uma ‘nova matéria ética’, cujo limiar consiste justamente no ponto em que, na figura do muçulmano, por ser a ‘testemunha integral’, fica tolhida para sempre toda possibilidade de distinguir entre homem e não homem, dignidade e indignidade; justamente porque habita esse espaço fronteiriço de trânsito entre o humano e o inumano, entre a vida e a morte, o muçulmano adquire significado ético e político. A esse respeito, Agamben escreve: “Primo Levi começa a testemunhar somente depois que a desumanização foi realizada, somente quando falar de dignidade não teria mais sentido. Ele é o único que se propõe conscientemente a testemunhar em lugar dos muçulmanos, dos submersos, daqueles que foram demolidos e tocaram o fundo. Que, de resto, em Auschwitz cada um tivesse, de um modo qualquer, deposto a dignidade humana, fica implícito em muitos testemunhos. Porém jamais tão claramente, talvez, como na passagem de Os Submersos e os Salvos (É isto um homem? - Primo Levi. Rio de Janeiro: Rocco, 2013), na qual Levi evoca o estranho desespero que acometia os prisioneiros no momento da libertação: ‘naquele momento em que sentíamos nos tornar novamente homens, isto é, responsáveis’. Portanto, o sobrevivente conhece a necessidade comum da degradação, sabe que a humanidade e a responsabilidade são algo que o deportado teve de abandonar fora das cancelas do campo” .

É nesses termos que se recoloca em nossos dias a questão do sujeito, especialmente em vista de uma nova biopolítica; essa retomada tem de ser colocada em termos de processos de subjetivação e de dessubjetivação, como um resto, um afastamento, uma distância aberta entre processos de subjetivação e dessubjetivação. Agamben se pergunta ‘quem’ seria o sujeito de uma nova biopolítica de resistência, de uma biopolítica menor. E responde: “Porque o Estado moderno funciona, parece-me, como uma espécie de máquina de dessubjetivar, quer dizer, como uma máquina que quebra todas as identidades clássicas e, ao mesmo tempo, Foucault o mostra bem, como uma máquina de recodificar, notadamente o modo jurídico, as identidades dissolvidas: há sempre uma ressubjetivação, uma reidentificação desses sujeitos destruídos, desses sujeitos esvaziados de toda identidade. Hoje, parece-me que o campo político é uma espécie de campo de batalha onde se desenrolam esses dois processos: ao mesmo tempo, destruição de tudo o que era identidade tradicional — eu digo isso, por certo, sem nenhuma nostalgia; e ressubjetivação imediata pelo Estado; e não somente pelo Estado, mas também pelos próprios sujeitos (...) o conflito decisivo que se joga doravante, para cada um de seus protagonistas sobre o terreno disso que que eu chamo de zoé, a vida biológica. E, com efeito, não é outra coisa: não é questão, creio eu, de retornar à oposição política clássica, que separa claramente privado e público, corpo político e corpo privado, etc. Mas esse terreno é também aquele que nos expõe aos processos de assujeitamento do biopoder. Existe aí, portanto, uma ambiguidade e um risco” .

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