Edição 437 | 17 Março 2014

Genealogia do governo e da economia política. Uma leitura a partir de Foucault

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Castor Ruiz

Para o filósofo Castor Ruiz, o desejo de controlar a vida humana tornando-a “útil” e “eficiente” por todos os dispositivos de poder modernos faz com que a política se torne, cada vez mais, uma biopolítica

Como governar a vida humana para se tornar útil e eficiente? Esta se tornou uma pergunta fundamental, e “uma das principais, senão a principal, característica dos dispositivos de poder modernos”, afirma o filósofo Castor Ruiz. Considerando “útil”, é claro, as práticas que mais dialogam com os interesses hegemônicos, o “problema novo que as sociedades modernas perceberam, principalmente no processo de surgimento do Estado e do mercado, era como governar os outros para conseguir resultados eficientes”. Este norteamento fez com que a política se tornasse, cada vez mais, uma biopolítica — uma técnica de governo da vida.

Castor Bartolomé Ruiz é professor nos cursos de graduação e pós-graduação em Filosofia da Unisinos. É graduado em Filosofia pela Universidade de Comillas, na Espanha, mestre em História pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS e doutor em Filosofia pela Universidade de Deusto, Espanha. É pós-doutor pelo Conselho Superior de Investigações Científicas. Escreveu inúmeras obras, das quais destacamos: Os paradoxos do imaginário (São Leopoldo: Unisinos, 2003); Os labirintos do poder. O poder (do) simbólico e os modos de subjetivação (Porto Alegre: Escritos, 2004) e As encruzilhadas do humanismo. A subjetividade e alteridade ante os dilemas do poder ético (Petrópolis: Vozes, 2006). Leia, ainda, o livro eletrônico do XI Simpósio Internacional IHU: o (des)governo biopolítico da vida humana, no qual Castor contribui com uma reflexão intitulada A exceção jurídica na biopolítica moderna, disponível em http://bit.ly/castor343. 

O professor Castor está ministrando o curso Estado, governo e tecnologias biopolíticas: Foucault e Agamben, cuja programação começou em 10 de março e segue até 30 de junho.

Confira o artigo.

 

1. A noção de governo é clássica na filosofia política, porém o problema do governo só se tornou um tema e um problema central na modernidade a partir dos séculos XVI e XVII. O peculiar da noção moderna de governo é que foi construída na forma de governo dos outros. Ou seja, o problema novo que as sociedades modernas perceberam, principalmente no processo de surgimento do Estado e do mercado, era como governar os outros para conseguir resultados eficientes. A pergunta de como governar a vida humana para se tornar útil e eficiente se transformou em uma das principais, senão na principal, característica dos dispositivos de poder modernos. Isso tornou a política cada vez mais uma biopolítica, ou seja, uma técnica de governo da vida.

Este marco teórico da biopolítica moderna tem sido amplamente pesquisado desde diversas perspectivas críticas por muitos e relevantes pensadores contemporâneos: Hannah Arendt , Michel Foucault , Giorgio Agamben , Roberto Espósito , entre outros. Desde a perspectiva crítica mais conexa com a tradição marxista, a instrumentalização e administração da vida humana também foi tematizada pelos pensadores da chamada escola de Frankfurt, Walter Benjamin , Theodor Adorno , Max Horkheimer , e os neomarxistas Paolo Virno , Michel Hardt , Antoni Negri , entre muitos outros. 

Cada um dos pensadores destaca em seus estudos aspectos importantes desta complexa problemática. Uma das teses relevantes desta problemática foi desenvolvida pelo filósofo Michel Foucault na sua obra Segurança, território, população (São Paulo: Martins, 2008), correspondente ao curso de 1978 que ministrou no Collège de France. Nesse curso, Foucault faz um estudo genealógico para rastrear o surgimento da noção moderna de governo.

É conveniente lembrar que a genealogia é um método filosófico que tem por objeto subsidiar na compreensão crítica do presente. Não é possível ter uma leitura crítica da realidade sem compreender a historicidade de nossas verdades e práticas. A genealogia nos permitirá tomar consciência das contingências, dos interesses, assim como dos jogos de poder, que estão por trás de cada discurso ou prática, instituição ou verdade, em que estamos envolvidos. A genealogia é o pré-requisito de uma transformação pertinente.

 

2. Uma das primeiras questões que Foucault chama atenção é para o fato de que antes do século XVI a noção de governo encontra-se, vez por outra, mencionada em diversos tratados clássicos, porém são muito escassos os tratados ou estudos sobre o governo. Surpreendentemente, a partir do século XVI e principalmente no século XVII, encontramos uma ampla literatura sobre o assunto. Nesses séculos proliferam os tratados do governo nas diversas sociedades e versões possíveis, sendo uma temática que não deixou de crescer até nosso momento. Por que ocorreu esta mudança tão significativa? 

A abundância de literatura sobre o governo indica que, nesses séculos, o governo se tornou uma questão central para as sociedades da época. Algo que contrasta com a indiferença com a qual a questão do governo foi tratada nas sociedades antigas e medievais. Por que o governo se tornou uma questão central para as sociedades modernas? E ainda, qual a diferença entre a noção moderna de governo, que é problematizada tão intensamente, e a noção clássica de soberania, tão comum a todos os tratados pré-modernos?

Para abordar esta questão, Foucault analisa, em primeiro lugar, as diversas noções da categoria governo no século XVI. Encontramos que a temática do governo eclode no século XVI sob os diversos aspectos da vida humana. O problema de como governar os filhos se tornará objeto da pedagogia; o governo de si, com o retorno ao estoicismo, se tornará objeto da filosofia; o governo das almas aparece como uma grande preocupação das pastorais cristãs, tanto católicas como protestantes; principalmente aparece uma grande literatura sobre o governo dos Estados pelos príncipes. As questões de como se governar, como ser governado, como governar os outros, inclusive a questão de por quem devemos aceitar ser governados e como fazer para ser o melhor governador possível, todas essas questões perpassam os diversos tratados a ponto de constituir uma nova problemática intensamente debatida.

 

3. Um dos tratados sobre o tema mais conhecidos da época é O Príncipe, de Maquiavel . Foucault propõe uma leitura peculiar do príncipe em relação à problemática do governo. O Príncipe de Maquiavel mantêm uma relação de exterioridade com o território e com os súditos sobre os quais detêm o poder e a soberania. A preocupação central de Maquiavel é aconselhar ao príncipe como se manter no poder na forma de soberania e domínio do território e dos súditos. Embora Maquiavel apresente traços do realismo político moderno, a sua figura do príncipe, diz Foucault, mais do que o primeiro do modernos, representa o último dos clássicos. Pois, ele não tematiza o melhor modo de governar, mas as formas de preservar sua soberania.

Na procura da genealogia das técnicas de governo modernas, Foucault estuda tratados muito pouco conhecidos, por não dizer desconhecidos, da maioria, mas que foram muito significativos ou ao menos representativos da constituição das chamadas artes de governo. Muitos desses tratados sobre o governo se encontram entre a literatura anti-maquiavel. Um dos tratados analisados é o de, Guillaume de La Perriere , 1555, O espelho político, contendo diversas maneiras de governar. Sendo um tratado crítico de Maquiavel, propõe outra perspectiva para o Estado e o príncipe, que são as artes de governo. La Perriere explica que a noção de governo deve ser entendida de forma ampla e que nela estão envolvidas as diversas formas sociais. Governador pode ser chamado o imperador, o monarca, o rei, o magistrado, o juiz, o prelado. Mas, também, as artes de governar são necessárias para governar uma casa, governar as almas, governar crianças, governar uma família, governar um convento. Há pluralidade de formas de governo, inclusive uma imanência das práticas de governo em relação ao Estado. Algo que se opõe à relação extrínseca de soberania que o Príncipe de Maquiavel propõe. Porém, todos esses diversos tipos de governo estão dentro de um governo maior: o Estado ou sociedade.

Foucault também analisa outro tratado significativo na época, embora também pouco conhecido do grande público, L´Oeconomique du Prince, 1670, de François de La Mothe Le Vayer (1588-1672). Numa série de textos pedagógicos para o Delfim , Le Vayer destaca que há três tipos de governo: a) governo de si, a moral; b) arte de governar uma família, a economia; c) ciência de bem governar o Estado, a política. Esta tipologia mostra que no século XVII ainda há uma preeminência da política a respeito das outras artes de governo, porém estabelece entre elas uma continuidade necessária, naquilo que se entende por governo. Essa continuidade entre as diversas artes de governo se faz de forma ascendente, pois quem quiser governar o Estado tem que aprender, primeiro, a se governar a si próprio e a sua família. A pedagogia do príncipe tem essa função, ou seja, assegurar a linha ascendente do governo. Mas as artes de governo também têm uma continuidade descendente, quando um Estado é bem governado, os pais de família e os indivíduos também se dirigem como convêm. Essa linha descendente do governo, que tem por objeto a conduta dos indivíduos e a gestão da família, será função da polícia. Vemos aparecer, no século XVII, a polícia como instrumento de governo e cuidado dos indivíduos e famílias. Esta continuidade entre as diversas formas de governo é outra diferença qualitativa a respeito do Príncipe de Maquiavel no qual há uma descontinuidade radical entre o poder do Príncipe e o dos súditos.

Foucault, analisando o texto de Guillaume de la Perriere, percebe que o característico das novas artes de governo que estão sendo propostas é que não se governa o território e os súditos como uma realidade externa, mas se governa o conjunto de relações dos homens com as coisas, governam-se as relações, os homens em suas relações com as coisas. O governo, ao contrário do que propunha Maquiavel, é interno às relações que existem entre os homens e as coisas, entre os homens e a produção, o consumo, a agricultura, o comércio, etc. Por este motivo, o princípio das artes de governo é conhecer a natureza das coisas que se pretende governar, porque o que se deve governar é a natureza das coisas, dos homens em relação com as coisas. Um exemplo da natureza desse governo está na metáfora clássica do governo do barco. Governar o barco é governar os homens que manejam as diversas funções do barco, governar a relação dos homens com as diversas partes do barco, governar as habilidades e competências dos que trabalham no barco. O que se governa é a natureza das coisas, ou se governam as coisas de acordo com a sua natureza. Este é um princípio do governo oposto ao modelo da soberania do Príncipe de Maquiavel cujo governo se faz pela imposição de sua vontade de forma estratégica, seguindo o modelo clássico da soberania absoluta.

 

4. A tese central da pesquisa de Foucault é que as artes de governo conseguiram se estruturar a partir da noção de economia, de tal modo que economia e governo, principalmente a partir de metade do século XVII, se tornam conceitos similares. Como se deu a conexão entre estes conceitos e práticas que originariamente pertenciam a campos semânticos e sociais diferentes? A resposta a esta questão exige uma genealogia ampla da economia e do governo, assim como dos discursos e práticas através das quais a economia se tornou uma forma de governo e o governo um método oikonomico de administrar a vida humana. A vastidão deste desafio tem provocado diversas pesquisas, com perspectivas diversas dos vários autores. Como indicamos anteriormente, Arendt estudou esta relação, principalmente, em sua obra, A Condição Humana (Rio de Janeiro: Forense universitária, 2010), e Agamben o fez recentemente em várias obras, entre as que se destaca O Reino e Glória. Uma genealogia teológica da economia e do governo (São Paulo: Boitempo, 2011).

Foucault dedicou vários cursos, com posteriores obras publicadas postumamente, para a genealogia do governo e da economia. Além do curso de 1978 que estamos comentando, Segurança, território e população, ministrou no ano anterior, 1976, Em defesa da sociedade (São Paulo: WMF Martins Fontes, 2000), e no ano de 1979, O Nascimento da biopolítica (São Paulo: WMF Martins Fontes, 2008).

Foucault, como Arendt, e diferentemente de Agamben, entende que, embora haja uma genealogia da economia e do governo a ser levada em conta nas sociedades antigas, na modernidade aconteceu uma ruptura qualitativa pela qual a economia se tornou o governo dos outros, e o governo se transformou numa forma econômica de administrar a vida humana como recurso natural útil e rentável. Esta ruptura moderna transformou a política numa biopolítica. 

Um dos estudos em que aparece esta conexão é no verbete publicado por Rousseau , final do século XVIII, para a Enciclopédia Francesa, intitulado: Economia política. Rousseau é conhecido com um dos principais filósofos contratualistas. Contudo, a agudeza do seu pensamento captou a sinuosa dificuldade que estava se estabelecendo, já no século XVIII, entre as teorias modernas da soberania (contratualismo) e as novas formas de governo (economia). No verbete mencionado, Rousseau comenta que classicamente o conceito economia designa o governo da casa para o bem comum da família. Porém, segundo Rousseau, esse modelo não deve ser mais aceito, já que em “nossos dias” a questão da economia política não é mais a mera questão familiar. A questão moderna da economia é saber como o bom governo da família poderá, mutatis mutandis, ser introduzido na gestão geral do Estado. O que Rousseau sustenta é que governar um Estado moderno implicará introduzir a economia como técnica de gestão dentro do próprio Estado, de tal forma que a economia, superando os limites da família, se torne o modo de governo de todo o Estado. Isso significa estabelecer modos para governar os habitantes, controlando suas riquezas, vigiando suas relações e condutas, assim como um pai de família faz sobre sua casa e seus bens. 

Para Rousseau, no verbete indicado, a economia política tem por objetivo definir uma arte de governo. Depois, na sua obra O contrato social (Porto Alegre: L&pm, 2007), deslocará o enfoque do tema visando elaborar uma teoria da soberania através do contrato. Porém, nessa obra, O contrato social, Rousseau diz que o problema agora é saber como é possível, a partir das noções fundamentais do discurso contratualista como “natureza”, “contrato” e “vontade geral”, elaborar um princípio geral de governo que seja ao mesmo tempo um princípio de soberania acorde com as artes de governar, a economia política. 

 

5. A conexão entre o governo e a economia teve um destaque especial, e posterior relevância, na obra de Quesnay  (1694-1774), Máximes générales du gouvernement économique d´un royaume agricole. Quesnay, defensor da teoria fisiocrata frente ao mercantilismo, fala que um bom governo é um governo econômico. Foucault identifica em Quesnay um dos autores que, no século XVIII, consolida a noção de governo econômico no seu sentido moderno. Contudo, governo econômico é uma tautologia, já que a arte de governar é, precisamente, a arte de exercer o poder segundo o modelo da economia. Quesnay afirma que o termo economia está adquirindo um significado moderno identificado com a essência do governo. O termo economia designava no século XVI uma forma de governo (a da casa), no século XVIII há um deslocamento semântico do sentido da economia passando a designar um nível de realidade, um campo específico de intervenção para o governo, com seus processos e tecnologias, o campo onde se desenvolve a arte moderna de governar e ser governado.

 

6. A inversão semântica da economia como governo e a assimilação política do governo como administração econômica não foi um processo linear simples, ele, segundo mostra Foucault, teve diversos entraves e dificuldades que bloqueavam a construção das artes de governo modernas. Entre eles se destacam dois fatores, a soberania como regime de poder dominante e a família como paradigma da economia. 

Os modelos absolutistas de soberania bloqueavam as artes de governo na medida em que discursos como o mercantilismo, fisiocratas e o cameralismo racionalizavam o exercício do poder visando aumentar o poder e a riqueza do Estado, porém o Estado se identificava com o soberano. Contudo, as novas artes de governo não ficaram como meros conselhos filosóficos dados ao príncipe, muito pelo contrário, foram estas novas artes de governo que instalaram efetivamente o aparelho administrativo das monarquias e consolidaram as novas instituições burocráticas do Estado moderno. Porém, enquanto a soberania era o problema maior e suas instituições e seu exercício do poder era pensado como desdobramento da vontade soberana, as artes de governo não conseguiram ampliar além da estrutura do poder soberano. O mercantilismo é um exemplo muito esclarecedor deste bloqueio. 

O que permitiu desbloquear as artes de governo da soberania absolutista foram as teorias contratualistas do século XVII. Os juristas e filósofos deste período formularam a teoria do contrato para deslegitimar o poder absolutista, constituindo o contrato no novo marco jurídico dentro do qual encontraram legitimidade as novas artes de governo e economia, ou da economia como governo. O discurso do contrato teve um papel fundamental para desbloquear o poder absolutista e propiciar uma teoria do direito público em que todos são elementos participantes da sociedade. Porém, a teoria contratualista, segundo Foucault, não foi além da formulação dos princípios jurídicos de direito público, a modo de marco formal legitimador das novas relações. O contratualismo propiciou os princípios jurídicos e formais da legitimidade institucional, mas não se implicou na problematização das artes de governo. Por isso, não é a partir dos discursos contratualistas que poderemos fazer a genealogia das técnicas de governo modernas. Pode-se dizer que as artes de governo emergiram numa espécie de paralelismo com o contratualismo jurídico. Este servia de marco legitimador daquelas. O discurso que formulou e implementou as artes de governo modernas foi o discurso econômico. As artes de governo envolvem-se com os interesses econômicos identificando economia com governo; isso explica que, em muitos casos, são os interesses econômicos os que impõem os princípios jurídicos que melhor se ajustam aos modos de administrar a economia. Esta tensão originária entre formalismo jurídico e governo econômico continuou ao longo dos séculos até nossos tempos em que a economia se impõe, cada vez mais, como o princípio efetivo que define o marco legal que deve vigorar.

 

7. O segundo elemento que bloqueava as artes de governo era o paradigma da família. O conceito de economia originou-se como gestão da oikos, casa, a diferença à política que era o modo de governo da polis. A casa era administrada a partir de decisões hierárquicas do pai de família que governava as pessoas e os bens. A polis era o espaço em que ninguém governava a ninguém, todos se autogovernavam. A casa era o espaço da obediência, a polis o espaço da autonomia. A casa subjetivava os súditos, a polis exigia cidadãos. A casa administrava a vida a partir de uma decisão hierárquica, a polis governava por decisão coletiva. A modernidade elaborou os dois tipos de discursos e práticas de forma paralela e imbricada. A teoria contratualista quis recuperar os princípios da política clássica até conseguir fazer da democracia um modelo de governo e do cidadão um sujeito formal de direitos. Porém, concomitantemente ao contratualismo jurídico, a economia moderna entendeu que o melhor modo de governar era o da oikos. Melhor dizendo, a arte de governar moderna se identifica com o modelo da oikos, fazendo da economia uma gestão política das vidas e bens, e tornando a política uma administração utilitária das relações sociais. O problema dos séculos XVII-XVIII era como governar um Estado em sua complexidade e extensão a partir de um modelo tão restrito como era o da família.

Foi um conjunto de processos gerais, como a expansão demográfica do século XVIII, a abundância monetária, o aumento da produção agrícola, associado ao novo discurso da estatística como ciência do Estado, que percebeu que havia um fator essencial para a riqueza e para o governo do Estado que não tinha sido apreendido nas sociedades antigas — esse fator era a população. A população foi criada como um recorte conceitual da massa dos súditos que, agora, são identificados a partir da sua condição biológica de meros seres humanos com necessidades e desejos. São esses seres biológicos agrupados na categoria de população que devem ser governados. O desbloqueio do modelo da família pelas artes de governar foi possível porque foi criado como novo objeto de governo, o recorte da população. A estatística (ciência do Estado), que até então tinha funcionado nos marcos da burocracia monárquica, da administração das instâncias soberanas, descobre que a população é um elemento biológico-material com variáveis específicas, cujo modo de governo não é redutível à família: epidemias, migrações, espiral trabalho e riqueza, trabalhadores, produtores, consumidores, etc., são as novas variáveis naturais que devem ser governadas. O governo da população, seguindo os princípios das artes do governo, se faz a partir da natureza dessa população, dos seus interesses, desejos, expectativas. Como ficou dito anteriormente, o governo deve levar em conta a natureza das coisas que governa, neste caso a da população. Governa-se a população a partir da sua natureza. Em verdade o que de agora em diante o objeto de governo será a vontade coletiva da população, uma vontade que tem regularidades naturais que se expressam na noção de interesse próprio.

O olhar da perspectiva histórica nos permite perceber que o ideal do governante moderno é conseguir produzir a vontade da população de tal modo que ela deseje o que está previsto e conduza seu comportamento segundo os desejos nela produzidos. O bom governo da população consiste em governar sua vontade provocando nela necessidades, produzindo seus desejos, modelando as expectativas, formatando hábitos, enfim, criando subjetividades sujeitadas. 

A população emergiu no século XVIII como objeto a ser governado, enquanto as teorias jurídicas formulavam o conceito de povo como sujeito formal da soberania. A família vai ficar como um elemento interno da população, apoio fundamental para governá-la. A família passa de modelo paradigmático a instrumento de governo das populações. A população é a meta do governo, sua finalidade última. O objetivo do governo não mais será preservar o poder do governante (Maquiavel), nem a justiça ou o bem comum abstrato (soberania clássica), mas melhorar a sorte das populações: alimentação, saúde, moradia, trabalho, etc., na medida em que a população qualitativamente melhorada reverte numa maior riqueza do Estado e do mercado. A população aparece como um sujeito consciente do que ela quer e inconsciente do que a fazem fazer. 

 

8. A noção de interesse passará a operar como categoria que estimula o comportamento natural da população. O bom governo governa os interesses da população, o melhor governo é aquele que fabrica aquilo que a população deve desejar, aquilo que lhe interessa e ao que devem aspirar os indivíduos. O interesse se torna o alvo e instrumento do governo das populações. Governam-se as aspirações, os desejos, os interesses, as vontades. Nasce uma nova arte de governo, uma arte biopolítica do governo dos outros, que é a economia política.

A economia política se configurou como uma ciência e, ao mesmo tempo, uma intervenção característica das artes de governo modernas. Ela deve governar a nova rede de relações entre população, território e riquezas. Já no século XVIII, a economia política suplanta o regime da soberania através das técnicas de governo, fazendo da população um objeto a ser governado. Se neste século as teorias da soberania impuseram o povo como sujeito da soberania e sujeito de direito, neste mesmo período, o discurso da economia política elaborou um conjunto de técnicas de governo para administrar a população. O povo é sujeito de governo, a população objeto a ser governado; o povo se subjetiva na forma de cidadania, a população cria consumidores/produtores; o povo é sujeito formal da soberania, a população é objeto das políticas de governo. A tensão contraditória que perpassa estas duas práticas coetâneas de soberania e governo explica, em grande parte, a crise das democracias contemporâneas, muito mais formais que democráticas, e a crise dos Estados de direito, muito mais administradores econômicos que garantidores dos direitos de cidadania.

A emergência da economia política como técnica de governo não significa que a temática da soberania desapareceu ou que sequer deixou de ser importante nas sociedades modernas. O problema da soberania nunca foi tão debatido como na modernidade, porém em vez de, como ocorria nos séculos XVI-XVII, tentar deduzir as artes de governar do modelo da soberania, no atual modelo da economia política trata-se de deduzir uma teoria da soberania que legitime as novas técnicas de governo, que são técnicas econômicas e biopolíticas. As teorias da soberania, agora, procuram criar modelos institucionais e jurídicos que sejam condizentes com as exigências das novas técnicas de governo. 

Um exemplo da importância da soberania nesta nova perspectiva encontra-se nas obras de Rousseau mencionadas anteriormente. No Contrato social, Rousseau expõe o dilema que existe ao pensar a soberania moderna de tal forma que seus princípios jurídicos possam servir para viabilizar as novas artes de governo da economia política. O problema da soberania não é eliminado, mas deslocado para a procura de princípios e instituições que legitimem as técnicas de governo, com isso o problema moderno da soberania se torna muito mais agudo. É o caso de nossas democracias contemporâneas ajustadas na forma de meros modelos jurídicos formais que servem para legitimar o capitalismo imperante como sistema econômico de governo.

 

9. Segundo Foucault, a disciplina também não é eliminada. Ela é essencial para administrar a população, tem que administrar os comportamentos globais da massa, mas também o detalhe de cada indivíduo. Não há substituição de um poder por outro (soberania-disciplina-biopolítica/governo). Encontramos uma triangulação deles, cujo alvo é a gestão da população e cujos mecanismos essenciais são os dispositivos de segurança. Governo/população/economia emergem desde o século XVIII como nova trindade do poder biopolítico. 

A genealogia das técnicas de governo mostra que o Estado é mais o produto destas formas de governo que uma entidade externa que as pensou. Este breve percurso genealógico mostra uma radiografia mínima da historicidade do Estado em que aparece como resultado das práticas governamentais que, da mesma forma que foi produzido, poderá ser desconstruído. Foucault entende que o nosso problema contemporâneo não é uma estatização da sociedade, mas uma governamentalização do Estado. Vivemos na era da governamentalidade produzida no século XVIII. Uma governamentalidade que é eminentemente econômica e está gerida pelos interesses econômicos que administram economicamente a vida humana e o conjunto do planeta a modo de recursos produtivos úteis e rentáveis.

Embora Foucault defenda a tese de que as atuais técnicas de governo, a economia política, é uma inovação da modernidade e como consequência uma ruptura com os modelos clássicos, entende que essa ruptura não aconteceu sem, concomitantemente, dar continuidade a outras técnicas semelhantes que desde as sociedades antigas serviram para gerenciar a vida das pessoas. Entre elas, Foucault destaca a importância do que ele denominou de poder pastoral. Para Foucault, há concomitantemente uma ruptura e uma continuidade entre as técnicas de governo da economia política no Estado moderno e as técnicas de poder pastoral das sociedades antigas, principalmente do pastorado cristão. Este foi implementado durante os séculos anteriores, e seus discursos e práticas de cuidado de cada ovelha e de todo o rebanho ao mesmo tempo desembocaram nas técnicas modernas de gestão do Estado que procura ter o controle individual de cada cidadão e a gestão coletiva da população: omnes et singulatim. Esta é uma questão que merecerá um outro trabalho específico.

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