Edição 436 | 10 Março 2014

A liberdade de morrer sem diagnóstico. As críticas sociais de Ivan Illich à saúde

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Márcia Junges e Andriolli Costa

“O Illich da segunda crítica social da saúde não pretende recuperar nada da clínica ou da ciência médica vigente”, diz o pesquisador.

“A Medicina institucionalizada transformou-se em uma grande ameaça à saúde”, alertava o ex-padre austríaco-americano Ivan Illich, em 1975. Esta seria a base de sua primeira crítica social da saúde, que preconizava a desmedicalização e a ampliação do autocuidado. Tempos depois, no entanto, Illich revisitou sua obra e pensamento originais em sua segunda crítica social da saúde. E pontua, ao retomar a discussão sobre a institucionalização da medicina, que “ouvindo isto hoje, eu responderia: e daí? O maior agente patógeno de hoje é a busca de um corpo sadio. E, de uma maneira importante, isto tem uma história”.

Pesquisador da área da saúde e estudioso da obra de Ivan Illich, Roberto Passos Nogueira explora a atualidade das críticas do pensador austríaco. Nesta entrevista, concedida por e-mail à IHU On-Line, Nogueira percorre a antiglobalização defendida por Illich, a influência de Jacques Maritain em seu pensamento e a firme convicção na desmedicalização que o levou, por fim, a recusar o tratamento contra o câncer que acabou por vencê-lo. No entanto, menos simbólica que sua morte física foi a de seu pensamento. “É preciso reconhecer o óbvio, ou seja, que o pensamento de Illich está hoje quase que completamente esquecido”, expõe Nogueira.

Segundo ele, atualmente a obra do filósofo austríaco possui três interpretações negativas: para a igreja, uma variante idiossincrática ao tradicionalismo; para a esquerda, um anarquista; para a academia, um pessimista e de pouca valia para a carreira acadêmica — “ao contrário de um Foucault, por exemplo”. Para Nogueira, no entanto, a atualidade de Illich permanece vigente e seu pensamento “somente poderá ser resgatado daqui a várias décadas, quando a crise da modernidade chegar a um beco sem saída”, pontua. Ou então “quando formos indenes diante da institucionalidade acadêmica contemporânea, cada vez mais sintonizada com os autores globalmente bem-sucedidos”.

Roberto Passos Nogueira é graduado em Medicina pela Universidade Federal do Ceará. Fez mestrado e doutorado em Saúde Coletiva pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Atualmente, é pesquisador associado da Universidade de Brasília. É técnico do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada - IPEA. Entre seus livros, destacamos: La Salud que Hace Mal, Un estudio alrededor del pensamiento de Ivan Illich (Buenos Aires: Lugar Editorial, 2008) e Do Físico ao Médico Moderno, A Formação Social da Prática Médica (São Paulo: Editora UNESP, 2007).

Confira a entrevista.

 

IHU On-Line - Em que consiste a crítica de Ivan Illich  à medicalização da sociedade e por que ele dizia que, para a saúde, a maior ameaça era a medicina moderna?

Roberto Passos Nogueira - Nos anos 1970, em sua estadia no ambiente universitário de Cuernavaca, no México, Illich escreveu o livro A expropriação da saúde: nêmesis da medicina (Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1975), que alcançou grande repercussão internacional por sua acerba e bem documentada crítica à medicina tecnológica, considerada responsável pela difusão de doenças e de invalidez. Illich entendia que a medicina moderna constitui uma ameaça à saúde e que, em termos técnicos, sua capacidade de latrogenia  era criada pela dependência pessoal em relação aos médicos e aos seus meios altamente técnicos de tratamento. A única alternativa possível estava em incentivar a autonomia na escolha e na aplicação de meios de cura pelas pessoas mesmas e suas famílias. O ideal seria alcançar certo equilíbrio entre as ações de saúde autônomas e as heterônomas. Esta é a essência da primeira crítica social da saúde, que preconizava uma ampla desmedicalização e a ampliação do autocuidado, do mesmo modo que Illich, em livro anterior, havia defendido a desescolarização da sociedade.

 

IHU On-Line - O que é a segunda crítica social da saúde de Ivan Illich?

Roberto Passos Nogueira - A segunda crítica social da saúde consiste no reconhecimento por Illich, nas décadas de 1980 e 90, de que a cultura contemporânea já advoga um consumismo autonomista da saúde. O autocuidado havia se tornado uma moda e se estendia aos chamados estilos de vida saudáveis, que incluem o incentivo à seleção de alimentos e à prática de atividades físicas. Essa moda expressa uma mania de saúde difundida por todos os lados, incorporando, inclusive, certas práticas e hábitos de origem oriental e com especial valorização de tudo o que é “natural”. A onda de pseudoautonomia consumista pode chegar ao ponto de esboçar reparos à medicina oficial e advogar a medicina chinesa e as terapias naturais.

Segundo Illich, nessa segunda crítica, a obsessão com o corpo sadio é que se torna o principal difusor da patogenicidade. Essa obsessão com a saúde está a serviço dos sistemas científicos e mercantis, cria hábitos maquínicos e gera constantemente novas necessidades de saúde. Em artigo publicado em Le Monde Diplomatique três anos antes de sua morte, Illich diz: “para falar de saúde, em 1999, deve-se compreender a busca da saúde como o inverso daquilo que é a salvação, ela deve ser entendida como uma liturgia societária a serviço de um ídolo que extinguiu a pessoa”.

O que o Illich da segunda crítica social da saúde não podia aceitar, a partir de sua posição fundamentalmente tomista, era a sobrevalorização moderna da saúde e da “mera vida”, independentemente daquilo que é a pessoa e das virtudes que cada uma deveria cultivar. Em Nêmesis da Medicina, ele havia dedicado páginas memoráveis à saúde como virtude. Porém, agora, ao discorrer sobre os lemas púbicos que colocam a saúde quer como direito, quer como responsabilidade do indivíduo, dizia que o próprio conceito de saúde é que precisava ser posto de lado, pois não havia nada mais de virtuoso que pudesse ser feito em seu nome. Definitivamente, Illich rejeitava a ideia de que saúde pudesse ser considerada uma função, um processo ou um comportamento “responsável” que se limita a cumprir normas gerais concebidas pelos especialistas e executadas como um imperativo categórico.

 

IHU On-Line - Qual é a atualidade dessa concepção e em que aspectos ela pode inspirar uma nova compreensão da saúde em nosso tempo?

Roberto Passos Nogueira - O Illich da segunda crítica social da saúde simplesmente não é um autor contemporâneo, no sentido de traduzir uma tendência cultural ou intelectual predominante em nossos tempos. Ele é um antimodernista, tal como o foi Heidegger .

Houve uma época em que Illich podia ser compreendido como um socialista libertário. Quando, nos anos 1970, enquanto denunciava a profusão dos meios de transporte automotores que não mais servem para sua utilidade básica, porque criam os engarrafamentos, ele escreveu: “o socialismo deve vir de bicicleta”. Ele chegou a participar dos encontros intercontinentais dos teólogos católicos progressistas que vieram a criar a doutrina da teologia da libertação. Foi por meio desses encontros que se sentiu atraído pelo carisma de Dom Hélder Câmara , a quem cita em um dos seus ensaios. Mas a imagem de um Illich socialista libertário se desfez nos anos 1990, quando ele passou a divulgar ideais inspirados nas tradições místicas da Imitação de Cristo , levando-o a pregar a premência do resgate da arte de sofrer e morrer.

 

IHU On-Line - Em que medida as ideias desse pensador oferecem subsídios para se repensar o papel da clínica e do médico em nosso tempo e, mais do que isso, a própria autonomia dos sujeitos que são medicalizados?

Roberto Passos Nogueira - O Illich da segunda crítica social da saúde não pretende recuperar nada da clínica ou da ciência médica vigente. Pelo contrário, ele se pronuncia de modo radical contra as tentativas de revitalização ético-filosófica da medicina clínica e da pesquisa em saúde mediante a bioética. Com ironia contundente, ele considera que a bioética veio para criar uma nova ocupação destinada aos padres desempregados e para dar poder aos “biocratas” acadêmicos, que arrogam para si o direito de opinar sobre como a humanidade deve viver e morrer.

 

IHU On-Line - Como analisa a postura e coerência de Illich por ter se recusado a tratar de um câncer que se demonstrou letal?

Roberto Passos Nogueira - Como eu disse antes, na última década de vida, Illich passou a pregar a necessidade de promover a recuperação pessoal da arte de sofrer e de morrer que o Ocidente perdeu. Com a manifestação de sua doença, que possivelmente era um câncer facial, ele se dedicou explicitamente a uma imitação de Cristo. Quando perguntavam sobre o que ele tinha, respondia em latim: “sigo ao Cristo desnudo”. Esta era para ele uma questão não somente de coerência intelectual e moral, mas, essencialmente, de fé. De qualquer modo, é bom relembrar um dos pontos essenciais que ele exigia em nome da liberdade civil em saúde e em defesa dos que preferem celebrar a vida, e não a preservação da vida em sentido estrito, a mera integridade biológica: a liberdade de morrer sem diagnóstico.

 

IHU On-Line - Por que Illich é considerado um dos pais da antiglobalização?

Roberto Passos Nogueira - Entendo que Illich era contra a globalização na medida em que há uma quantidade de tendências da modernidade contra as quais ele se manifestou abertamente, a começar pela obsessão com a tecnologia e aquilo que é sua base, o ideal de progresso. Nesse sentido, a formação intelectual de Illich, entre as quais devem ser destacadas as figuras de Jacques Ellul  e Karl Polanyi , levou-o a se convencer de que o homem tecnológico e o homem econômico são duas faces do mesmo mito. A globalização é apenas a crença contemporânea de que as técnicas e as trocas econômicas se reforçam mutuamente e podem ser estendidas sem limites para garantir benefícios de bem-estar para a humanidade. Tudo o que Illich escreveu sobre transporte, educação, saúde e as profissões buscou o desmascaramento desse mito. Mas Illich não foi um militante da ecologia nem um defensor da autolimitação do consumo pessoal ou coletivo. Seus motivos de crítica à globalização são outros e um deles fica bem retratado quando diz que, depois da Segunda Guerra Mundial, as doutrinas do desenvolvimento destruíram a cultura, a técnica e o espaço arquitetônico nos quais a arte de sofrer e de morrer era cultivada.

 

IHU On-Line - Em que se fundamenta sua crítica à aliança entre a igreja e o culto ao desenvolvimento?

Roberto Passos Nogueira - Illich nunca defendeu a opção preferencial pelos pobres. Ele suspeitava que esse mote levaria inevitavelmente a iniciativas de desenvolvimento econômico e social que acabam por erradicar as culturas tradicionais ao gerar programas de educação para inculcar os valores da ciência e da técnica. O desenvolvimento traria consigo um novo tipo de miséria, resultante da opressão ou da supressão das culturas tradicionais dos povos. 

 

IHU On-Line - Qual é a influência de Jacques Maritain  e qual o futuro destinado ao pensamento de Illich?

Roberto Passos Nogueira - Illich foi aluno de Maritain e muito influenciado por seus ensinamentos em torno da pessoa como centro das virtudes cristãs. Illich retornava constantemente ao tema axial da concepção neotomista de Maritain acerca da pessoa e da prática das virtudes, posicionando-se contra todas as tendências que ameaçam o significado ético da pessoa na fase atual da modernidade: os sistemas, o gerencialismo, os recursos humanos, os métodos de produtividade e, em geral, as técnicas.

Em 1957, quando exercia um posto de assessor de planejamento junto ao governo de Porto Rico, Illich foi visitar seu mestre em Princeton e pôs-se a discutir com ele o significado e o alcance do planejamento. Depois de reiteradas explicações por parte de Illich, Maritain indagou: “não será o planejamento mais um pecado que decorre dos vícios da presunção?”. Não é de surpreender, portanto, que, posteriormente, Illich passasse a ver no desenvolvimento planejado a própria encarnação do mal.

É preciso reconhecer o óbvio, ou seja, que o pensamento de Illich está hoje quase que completamente esquecido. O que ele disse tem hoje três interpretações negativas: 1) para muitos setores da Igreja, ele representa uma variante idiossincrática do tradicionalismo; 2) para a esquerda leiga, sua mordacidade crítica muitas vezes soa como uma posição anarquista, incapaz de apontar novos caminhos para a sociedade; 3) para os estudantes de muitos campos disciplinares, Illich é entendido como um autor profundamente pessimista e de pouca valia para a carreira acadêmica (ao contrário de um Foucault , por exemplo).

Pessoalmente acredito que o pensamento de Illich somente poderá ser resgatado daqui a várias décadas, quando a crise da modernidade chegar a um beco sem saída e novamente for possível a muitos de nós pensarmos livremente, sem as amarras, não da fé, mas dos paradigmas cientificistas dominantes, e quando formos indenes diante da institucionalidade acadêmica contemporânea, cada vez mais sintonizada com os autores globalmente bem-sucedidos.

 

Para ler mais:

- Será o decrescimento a boa nova de Ivan Illich? Artigo de Serge Latouche. Cadernos IHU ideias, no. 164.

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