Edição 436 | 10 Março 2014

O Neocontratualismo de Rawls – Uma justiça como equidade e imparcialidade

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Márcia Junges e Andriolli Costa

Na avaliação do filósofo Evandro Barbosa, John Rawls não rompe com o contratualismo clássico, mas o complementa

De acordo com o professor e pesquisador Evandro Barbosa, os teóricos contratualistas clássicos estavam mais preocupados com o problema da formulação do Estado Civil, deixando de lado, dessa forma, os problemas morais. “Muitas vezes, o contrato clássico tratou do problema moral como algo secundário”, relata. “Nesse sentido, o trinômio estado de natureza—contrato—Estado civil tinha pretensões quase que estritamente de filosofia política.”

Mais tarde, no entanto, esse trinômio é revisto e reformulado por John Rawls, um dos pais do neocontratualismo contemporâneo. “O estado de natureza converte-se na posição original, o que desfaz a exigência de um ornamento metafísico para se definir uma concepção de natureza humana”, destaca. Em entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line, Barbosa esclarece que em Rawls o contrato ainda é firmado entre partes, mas a discussão sobre a melhor forma de Estado é deixada de lado. Valoriza-se, assim, o modo “como essa sociedade será justa nos termos estabelecidos pelo acordo”. E finaliza: “Em poucas palavras, podemos dizer que Rawls mantém a fórmula do contrato clássico apenas oferecendo novos aportes teóricos para a definição de cada um de seus elementos”. 

Evandro Barbosa possui graduação em Filosofia pela Universidade Regional Integrada do Alto Uruguai e das Missões – URI e mestrado e doutorado em Filosofia pela Pontifícia Universidade Católica – PUCRS. Trabalha principalmente com Filosofia Política, Filosofia do Direito, Teorias da Justiça e Metaética. Atualmente é bolsista de pós-doutorado da UFPel. Barbosa atuou como organizador dos livros Ensaios de Filosofia Política: reflexões contemporâneas (Vinhedo: Editora Horizonte, 2013) e Projetos de Filosofia (Porto Alegre: EDIPUCRS, 2011).

Barbosa participa da mesa redonda O neocontratualismo em questão, parte do evento Neocontratualismo em Questão, no dia 26-03-2014, às 16h30 na sala Conecta, no Centro Comunitário da Unisinos. 

Confira a entrevista.

 

IHU On-Line - Quais são as maiores contribuições de Rawls  para a reflexão do neocontratualismo?

Evandro Barbosa - A primeira contribuição de Rawls foi restabelecer o modelo contratualista como uma teoria relevante para diferentes áreas da filosofia (moral, jurídica e política) a partir de A Theory of Justice (Londres: Belknap Press, 1999), de 1971, pois o cenário filosófico de seu tempo era de pleno desenvolvimento e dominação do modelo utilitarista no âmbito da filosofia prática. Além disso, à medida que retoma o contratualismo clássico presente na figura de Kant, Locke  e Rousseau, Rawls determina o modelo de contrato que vai seguir. Qual é este modelo? Acho que podemos concordar com Brian Barry  que a teoria rawlseana preza por um modelo de justiça como equidade sustentada por uma base de imparcialidade. Com Rawls, a teoria do contrato social é retomada tanto enquanto modelo normativo para a esfera moral quanto para uma reapropriação dos elementos de filosofia política e jurídica. 

Agora, se quisermos pensar especificamente no Rawls contratualista, não podemos deixar de falar de sua posição original (original position) tomada enquanto procedimento equitativo para a construção de princípios de justiça. Destaco também que seu modelo de contratualismo pressupõe muito dos elementos da teoria prática kantiana para fundamentar sua proposta, tais como o conceito de autonomia e de pessoa. Tais elementos constituem a base a partir da qual a posição original, o equivalente ao estado de natureza no contratualismo clássico, consegue ser o ponto de partida a partir da qual Rawls projeta uma sociedade justa no sentido de ser equitativa.

 

IHU On-Line - Em que medida esse pensador rompe com a concepção clássica de contratualismo?

Evandro Barbosa - Talvez a resposta mais acertada seja afirmar que ele complementa a tradição contratualista clássica. No modelo clássico, a preocupação dos teóricos contratualistas estava mais centrada no problema da formulação do Estado civil, por isso o problema moral nem sempre era tratado de forma objetiva e clara. Hobbes é um exemplo claro de um autor que se preocupou em oferecer uma base teórica para o problema político da justificação do Estado e suas formas. O contexto, embora não seja uma premissa teórica capaz de fundamentar uma posição contratualista, ajuda a compreender por que, muitas vezes, o contrato clássico tratou do problema moral como algo secundário, o qual, digamos, entrava pela porta dos fundos no debate. Nesse sentido, o trinômio estado de natureza—contrato—Estado civil tinha pretensões quase que estritamente de filosofia política. 

Rawls retoma esse modelo clássico com uma diferença em relação ao eixo argumentativo no qual se sustenta sua teoria, uma vez que sua preocupação política corre paralela às considerações de outros elementos normativos (morais e legais). E, embora não entre nesse debate de forma mais consistente, mesmo questões metaéticas — ontologia, semântica e epistemologia moral — são elementos que necessariamente devem ser considerados se quisermos compreender o que Rawls propõe com seu modelo de contratualismo. 

Nesse sentido, o trinômio acima referido é revisitado e reformulado por Rawls. Primeiro, o estado de natureza converte-se na posição original (ponto zero de sua teoria), o que desfaz a exigência de um ornamento metafísico para se definir uma concepção de natureza humana. Segundo, o contrato ainda é firmado entre as partes, só que não se discute mais a melhor forma de Estado (até porque Rawls usará o modelo liberal democrático norte-americano como background para sua teoria), e sim como essa sociedade será justa nos termos estabelecidos pelo acordo. Terceiro, a discussão não passa por justificar a formulação de um novo Estado, mas apenas por definir os princípios norteadores de uma sociedade justa e estável. Em poucas palavras, podemos dizer que Rawls mantém a fórmula do contrato clássico apenas oferecendo novos aportes teóricos para a definição de cada um de seus elementos. 

 

IHU On-Line - Qual é o percurso de Rawls para reformular a teoria da justiça como equidade?

Evandro Barbosa - É importante dizer que sua teoria sofre revisões ao longo de seus escritos, especialmente pelas interlocuções que o autor teve com inúmeros pensadores de seu tempo e as diversas áreas em que o debate tomou forma (por exemplo, Thomas Scanlon, Amartya Sen , Thomas Nagel , Ronald Dworkin , Brian Barry e mesmo Tyler Burge ). Esse percurso de reformulação é longo e marcado por reveses e reconstruções. Embora ganhe destaque em A Theory, justiça como equidade é um projeto mais antigo em Rawls. Ainda em 1958, Rawls escreve um paper intitulado Justice as Fairness destacando como será sua teoria da justiça. Contudo, ele não tem a clareza necessária para afirmar sua teoria como destituída de elementos metafísicos, o que acaba transparecendo na obra de 1971 (A Theory) quando a busca dos princípios de justiça parece continuar vinculada a uma teoria moral forte. Nesse sentido, sua proposta de justiça como equidade seria mais uma proposta no menu das teorias morais de seu tempo. 

A década de 1980 foi fundamental para uma reconstrução do seu pensamento. Além de incorporar de modo claro o método construtivista em sua teoria a partir das Dewey Lectures, em 1985 ele escreve Justice as Fairness: Political not Metaphysical (Londres: Belknap Press, 2001) numa clara alusão de estar abandonando (ou esclarecendo) sua proposta de teoria moral forte em detrimento ao político. Com isso, justiça como equidade sofre uma reformulação em seu alcance também, o que pode ser comprovado por sua proposta de contratualismo político que se preocupa especialmente em oferecer uma teoria capaz de suportar o pluralismo da sociedade e a gama de concepções de bem presentes na mesma. Por fim, a publicação de Political Liberalism (Colombia: University Press, 1993) foi o resultado final desta tentativa de oferecer uma opção em relação aos modelos éticos que ele entende serem concepções de bens particulares que assumem a forma universal. Quando avança para a forma de uma justiça como equidade sem um apelo metafísico, essa concepção passa a se desvincular de um conceito de doutrina moral abrangente (comprehensive moral doctrine), reduzindo-o à esfera estritamente política.

 

IHU On-Line - Em que consiste a teoria rawlsiana de uma deontologia imparcial contratualista?

Evandro Barbosa - Para esclarecer essa proposta é preciso distinguir cada um dos seus elementos. Primeiro, quando eu falo em deontologia em Rawls, remeto-me diretamente às bases kantianas de sua teoria. Basta relembrar o parágrafo 40 de A Theory, quando ele afirma que sua teoria surge de uma interpretação procedimental que faz da concepção kantiana de autonomia e de seu imperativo categórico. Segundo, interpretar sua concepção de justiça como equidade enquanto imparcial implica dizer que as condições iniciais do contrato previstas na posição original são equitativas e que a escolha dos princípios de justiça (sejam morais, sejam políticos) é feita sob um véu de ignorância (veil of ignorance). Terceiro, o seu contratualismo é político, e não moral, o que o diferencia de Thomas Scanlon ou mesmo de Peter Stemmer , ambos com um modelo de contratualismo moral. O fato é que o conceito de razoabilidade é preponderante em sua teoria se quisermos imaginar sua proposta de imparcialidade, no sentido de não dar prevalência a qualquer concepção particular de bem, e é deontológica na medida em que oferece primazia do justo em relação ao bem. Por fim, essa condição deontológica imparcial encontra-se respaldada por uma base procedimental de justificação, de modo que os princípios construídos poderão ser aplicados à estrutura básica da sociedade na forma de justiça como equidade. No fundo, sua deontologia imparcial, que se vale de um método construtivista, passa pela resolução dos limites que uma teoria contratual tem em termos de justificação, pois não se admite nem um mero positivismo, em que a obrigação do agir fica reduzida a uma coerção externa, nem uma normatividade larga no sentido de se estender a toda esfera prática do indivíduo, invadindo sua esfera privada (concepções particulares de bem). 

 

IHU On-Line - Qual é a necessidade de uma deontologia deflacionada para a teoria política de Rawls?

Evandro Barbosa - A necessidade aparece por conta do que considero um melhoramento de sua teoria. A obra de 1971 (A Theory) demonstrou, de forma estruturada, como Rawls justificava sua teoria moral enquanto justiça como equidade, entretanto será em Political Liberalism que o autor fará uma mudança de direcionamento de sua teoria. Se antes eram princípios morais o resultado da posição original, em Liberalism surge com força a ideia do político diretamente arraigado ao conceito de razoabilidade. É por isso que pessoa e sociedade aparecem como concepções políticas nessa obra, de modo que há uma ênfase normativa nas capacidades morais do agente (o senso de justiça e a concepção de bem), um reforço na ideia de pessoa como representação e, por fim, a ênfase no aspecto das relações entre cidadãos na forma de cooperação social. 

Nesse sentido, Rawls tenta provar a necessidade de valores políticos construídos enquanto indispensáveis à esfera social, pois uma relação política ideal coerentemente justificada permitirá explicitar em que medida esse modelo deontológico autoriza que prescrições sejam legitimadas no meio público por intermédio de um processo razoável de construção, cujo resultado são princípios políticos de justiça. Michael Sandel , em sua obra Liberalism and the Limits of Justice (Cambridge: University Press, 1998), de 1982, situa Rawls no perene debate entre liberais e comunitaristas (the liberal comunitarian debate) como um deontologista com face humeana, pretensamente apresentando a inviabilidade deste modelo de justiça como equidade e os problemas decorrentes de sua base deontológica, procedimental e universal (abstrato). Minha resposta vai de encontro à afirmação de Sandel. Compreendo que o contrato social surge como ideia organizadora fundamental da teoria rawlseana. Ele articula deontologia liberal com um procedimentalismo capaz de encontrar uma base publicamente aceitável de justificação, o que proporcionaria um ponto de vista publicamente reconhecido em que as instituições da sociedade e sua forma de organização poderiam ser examinadas por todos os cidadãos. 

Dessa forma, o procedimento utilizado por Rawls aparece como núcleo central da concepção política de justiça que lhe permite estabelecer uma teoria normativa da escolha pública (política). O fato é que a proposta rawlsiana — entendida enquanto deontologia imparcial contratualista — se apresenta como um modelo que incorpora uma teoria normativa da escolha pública; isto é, a condição fundamental de aceitação e justificação de regras ordenadoras da prática social, por parte dos cidadãos, é que tal normatização dali decorrente tenha sido pactuada pelas partes. Em suma, Rawls tenta evitar incorrer em um tipo de justificação fundacionalista como acontece com o construtivismo moral kantiano. Por isso, para que sua proposta de um construtivismo político seja efetiva, ele precisa diminuir a força deontológica de sua teoria. Nesse sentido, Rawls difere de Habermas, que faz um apelo transcendental à sua teoria mantendo o formalismo kantiano no que chama de pragmática transcendental. 

Rawls abandona esse projeto de princípios universalíssimos, cuja base justificadora apela para uma ordem independente de valores. Seu modelo de justiça procedimental pura trará como exigência que os princípios dela resultantes entrem em equilíbrio reflexivo com nossos juízos ponderados. Com isso, a deflação deontológica de sua teoria permite assumir um modelo de justificação coerentista. Logo, acredito que a afirmação de Sandel de que Rawls possui uma deontologia com face humeana seja muito mais uma constatação do que um elemento crítico.

 

IHU On-Line - Em que medida a concepção de autonomia e dignidade da pessoa humana são fundamentos das teorias de justiça de Kant, Rawls e Dworkin?

Evandro Barbosa - Esta resposta exige reconhecer, antes de tudo, a polissemia destes termos, embora autonomia e dignidade humana estejam intimamente imbricadas no pensamento desses autores. Em Kant, o tema da autonomia se coloca de modo mais robusto nas esferas moral (Grundlegung zur Metaphysic der Sitten, 1785) e política (Zum Ewigen Frieden, 1795). Na esfera moral, Kant faz um longo percurso em sua filosofia prática para determinar a autonomia como uma condição sine qua non para a realização moral do indivíduo. Posterior ao primeiro imperativo (fórmula da universalizabilidade), a afirmação de que o ser humano jamais deve ser tratado simplesmente como meio, e sim como fim em si mesmo, reflete exatamente seu apelo a um princípio de dignidade humana que não se deixa solapar por desejos de instrumentalização. Nesse sentido, a dignidade humana não seria refém de qualquer cálculo de interesse que o utiliza como mero meio para obtenção de fins egoístas. De forma semelhante, no campo da política a discussão se estende para a liberdade de um povo dar leis a si mesmo. Por isso, a possibilidade do uso público da razão e do ousar saber (Sapere Aude) que constitui o humano permeiam as condições de sujeito livre enquanto pedra de toque para que um povo seja livre e imbuído de dignidade humana.  

Rawls segue a mesma linha para explicar os elementos da dignidade e autonomia em sua teoria da justiça, especialmente se observarmos os textos Kantian Constructivism in Moral Theory (Lecture I - Rational e Full Autonomy), de 1980, ou em Political Liberalism (Conferência II, §§ 5-6). De início, a divisão entre o que chama de autonomia racional (rational autonomy) e autonomia plena (full autonomy) é extremamente relevante para o desenvolvimento de sua teoria. As partes na posição original representam a autonomia racional dos indivíduos no espaço equitativo de escolha, sendo os princípios morais-políticos escolhidos para representação dessa autonomia. Entendidas como agentes artificiais, tais partes são motivadas por interesses calcados em um conjunto de bens primários a partir do qual agiriam de acordo com sua racionalidade artificial (não política). Por sua vez, autonomia plena diz respeito ao indivíduo como cidadão, ou seja, como ser político inserido em uma sociedade bem-ordenada. Nesta condição, os cidadãos completam sua condição de autonomia plena via termos justos da cooperação (fair terms of cooperation) no sentido de que todos podem esperar termos razoáveis em suas interações. 

Quanto à concepção de dignidade humana, ela compõe sua teoria da justiça quando falamos em mínimo social. Em outras palavras, uma lista de bens primários básicos aplicados à estrutura básica da sociedade a que todos os cidadãos têm direito. Isso, contudo, não é algo tão claro na teoria rawlseana, o que gera dúvidas e críticas como, por exemplo, a afirmação de que a dignidade humana é o fundamento metafísico que subjaz à justiça como equidade de Rawls, pois sem esta condição sua teoria e seus princípios de justiça seriam ininteligíveis. Em suma, muito da crítica ao seu liberalismo afirma que ele não pode acomodar a concepção da dignidade da pessoa humana, pois, ou sua teoria tem um ponto cego sobre essa questão, ou o liberalismo repudiaria a possibilidade de uma metafísica geral. Por outro lado, os defensores de uma concepção de dignidade humana defensável em Rawls afirmam-na como preceito moral que fundamenta as garantias dos cidadãos diante do Estado. Para tanto, os mencionados bens primários devem estar assegurados no exercício da cidadania. Parece que a dimensão da dignidade aparece em Rawls como o resultado de seus esforços em determinar garantias políticas aos sujeitos, e não um ornamento metafísico que fundamenta sua teoria. 

A obra Taking Right Seriously, de 1977, torna a figura de Ronald Dworkin importante para o debate filosófico com sua proposta de uma teoria liberal do direito. Na medida em que este propõe uma teoria da justiça baseada em um igualitarismo liberal, os indivíduos possuem direitos invioláveis e competência para o exercício de sua autonomia. Logo, a defesa de um Estado liberal exige impor limites a este para que não interfira na vontade do indivíduo na realização do que deseja para si. Provindo de uma vertente kantiana, Dworkin atribui uma prioridade ética à autonomia da vontade no debate de questões jurídico-políticas, demonstrando sua importância quando relaciona convicção e valor no que chama questão de integridade. Ser autônomo envolve a capacidade de se identificar com os desejos escolhidos e, quando necessário, colocá-los em questão. Logo, esta autonomia individual é entendida como um traço que os indivíduos podem apresentar em relação a todos os aspectos de suas vidas, não se limitando a questões de obrigação moral.

Apesar de importante para o desenvolvimento de sua teoria como um todo, é no âmbito da ética prática em Life’s Dominion (1993) que Dworkin trata da relação autonomia e dignidade humana mais detidamente. Aqui, o autor apela para uma questão de qualidade (e não quantidade) de vida ao retomar o conceito de dignidade humana e autonomia. Nesse sentido, a sacralidade da vida — interpretado enquanto dignidade — despe-se de um apelo metafísico e recebe contornos históricos para sua formulação. Nesse contexto, a autonomia se revela como a capacidade do indivíduo de tomar decisões em relação aos seus projetos de vida, ao mesmo tempo que tem assegurada a sacralidade dela — o que Habermas chama de momento de indisponibilidade — que lhe constitui enquanto dignidade. Retomo aqui o que afirmei inicialmente: nestes autores, a relação de autonomia e dignidade humana assume diferentes contornos e os termos são extremamente polissêmicos. É isso que torna a discussão tão profícua. Por isso, seja como fundamento de sua teoria moral-política (Kant), seja como parte integrante de sua justificação teórica (Rawls), seja ampliando esta discussão para a esfera prática nos polêmicos debates sobre aborto e eutanásia (Dworkin), esta é uma discussão que permanece em aberto. 

 

IHU On-Line - E quais são os tensionamentos que se apresentam no debate entre Rawls e Habermas? Quais são suas discordâncias fundamentais?

Evandro Barbosa - A primeira discordância é de enquadramento. Embora ambos se assumam como modelos deontológicos e com fortes traços kantianos em suas teorias, Rawls assume a forma contratualista de justificação para justiça como equidade, enquanto Habermas dá preferência a um modelo de justificação discursiva pautado em bases de filosofia da linguagem. Além disso, tanto Rawls quanto Habermas não possuem uma teoria definitiva. Encontramos melhoramentos e novidades em Political Liberalism que não encontramos em A Theory of Justice, assim como Habermas estabelece uma nova forma de justificação em Faktizität und Geltung: Beiträge zur Diskurstheorie des Rechts und des demokratischen Rechtsstaats (1994), quando comparado a Theorie des kommunikativen Handelns (1981). Nesse sentido, precisamos situar onde estamos verificando os tensionamentos no debate Rawls-Habermas. 

Creio que essa discussão enquanto uma querela familiar, como observou o próprio Habermas, já que ambos compartilham os mesmos pressupostos teóricos, tenha seu ápice na discussão sobre o conceito de razão pública. Em seu texto Reconciliation through the public use of reason: remarks on John Rawls’s Political Liberalism, Habermas concorda que Rawls faça uma interpretação do princípio kantiano de autonomia como algo intersubjetivo e não encontra propriamente objeções de cunho teórico, mas com relação à execução do procedimento. Habermas reconhece os avanços dessa proposta procedimental (expressando, inclusive, admiração por ela), mas entende que Rawls cedeu muito terreno de sua proposta original ao ser condescendente demais com seus críticos. Em suma, suas reformulações o afastaram do transcendental, o que acabou por enfraquecê-la. A resposta rawlsiana será dada em sua réplica a Habermas (Reply to Habermas), na qual assume algumas distinções de sua própria teoria em termos de liberalismo político, distinguindo-o das doutrinas abrangentes. Rawls indica que a proposta de uma ética do discurso está limitada ao contexto de uma doutrina abrangente, enquanto sua teoria da justiça, em que se pretendem princípios políticos, deve ser identificada como uma concepção política. Por isso, sua teoria teria vantagem em relação à teoria habermasiana. 

Entretanto, dadas essas divergências, percebo o problema de Rawls como paralelo ao problema habermasiano. Habermas tenta resolver a chamada falácia idealista e propor uma pragmática transcendental, ou seja, trazer à Terra este transcendental e abandonar os resquícios da metafísica. Com isso, ocorre uma deflação do transcendental de modo que a obrigação fica reduzida ao plano fático, ou seja, o momento histórico pode oferecer o fato para articular a teoria estritamente necessária. Do mesmo modo, os princípios da justiça de Rawls mantêm elementos da filosofia prática kantiana, todavia não há uma estrutura transcendental que os sustentem. Temos, com isso, uma teoria de base contratualista (procedimental) que se afasta da proposta habermasiana por seu modelo de justificação, mas que concorda acerca da necessidade de reduzir a força do transcendental. 

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