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Márcia Junges e Andriolli Costa
As perspectivas neocontratualistas são, por vezes, discordantes e divergentes. Isso ocorre principalmente devido à concepção das partes contratantes, manifestas em dois modelos centrais: o hobbesiano e o kantiano. Para o filósofo Delamar José Volpato Dutra, a grande diferença entre os modelos é que Kant considera o contrato social como um fim em si mesmo. “Para Hobbes, o contrato social não é um fim em si, visto que ele está delineado por interesses vitais das partes que o compõem”. Já para Kant, “mesmo um Estado injusto é um fim em si, pois é melhor haver um Estado injusto do que a ausência dele, que levaria ao estado de guerra e à abolição de qualquer relação juridicamente regrada”.
Nesta entrevista, concedida por e-mail à IHU On-Line, o filósofo discute, a partir do viés do neocontratualismo, os tensionamentos entre direito e democracia, as principais vantagens filosóficas do modelo ético neocontratualista e as distâncias entre Habermas e Rawls, Kant e Hobbes. Ele destaca: “Kant admite que a ação em estado de necessidade, muito embora seja culpável, não é punível, porque não faria sentido punir um ser humano com a morte, se no estado de necessidade ele pode morrer”.
Delamar José Volpato Dutra é graduado em Filosofia pela Universidade de Caxias do Sul - UCS, bacharel em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina - UFSC. Possui mestrado e doutorado em Filosofia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS e pós-doutorado na Columbia University e na Aberystwyth University, ambos também na área da Filosofia. Atualmente é professor da Universidade Federal de Santa Catarina no Programa de Pós-Graduação em Filosofia. Dutra compõe a diretoria da Associação Nacional de Pós-Graduação em Filosofia – ANPOF e é autor dos livros Razão e consenso em Habermas (Florianópolis: EdUFSC, 2005), Kant e Habermas - A reformulação discursiva da moral kantiana (Porto Alegre: EDIPUCRS, 2002) e Manual de Filosofia do Direito (Caxias do Sul: Educs, 2008).
Dutra participa da mesa redonda Modelos éticos neocontratualistas, parte do evento Neocontratualismo em Questão, no dia 25-03-2014, às 16h30 na sala Conecta, no Centro Comunitário da Unisinos.
Confira a entrevista.
IHU On-Line - Quais são os principais tensionamentos que surgem para o direito e a democracia a partir do neocontratualismo?
Delamar José Volpato Dutra - Creio que a relação com a moral e a justiça, tanto no direito quanto na democracia, seja uma das principais tensões. Isso ocorre porque ambos podem vir a conflitar com aquilo que se considera correto ou justo. Por outro lado, as noções de correto e justo dificilmente têm formulações suficientemente sólidas para poder prescindir do arcabouço do direito e da democracia.
IHU On-Line - Qual é a contribuição de Habermas para o debate acerca do neocontratualismo?
Delamar José Volpato Dutra - Não há uma discordância de princípio entre a filosofia de Habermas e a do neocontratualismo. Ambas estão irmanadas por um credo comum. Por exemplo, ambas são antiutilitaristas. Porém, há discordâncias pontuais entre as duas posições. Habermas parece exigir um grau de fundamentação da justiça e da moral mais profundo do que Rawls — e seu liberalismo político — está disposto a admitir como possível em sociedades como as nossas.
IHU On-Line - Nesse sentido, qual é a relação entre verdade e ética nesse pensador?
Delamar José Volpato Dutra - Como apontado na questão anterior, Habermas defende um tipo de fundamentação mais profunda do que Rawls. Ainda que Habermas não adira a uma fundamentação transcendental forte, ele não abandona um tipo de transcendental enfraquecido, o qual pode se comprovar via contradição performática no uso da linguagem.
IHU On-Line – A partir da filosofia de Habermas, como compreender as principais vantagens filosóficas do modelo ético neocontratualista?
Delamar José Volpato Dutra - Creio que uma grande vantagem do modelo é fazer um encurtamento das questões morais a questões de justiça, ainda que o escopo da justiça para Habermas seja mais amplo do que para Rawls. A profilaxia elimina do tratamento da moral as questões sobre a felicidade e sobre os deveres para consigo. Em segundo lugar, a proposta pode trabalhar com um modelo de motivação bastante deflacionado, por exemplo, que não imputa virtude ao cidadão, mas delineia a racionalidade a partir de um conceito de liberdade juridicamente concebida, e não moralmente concebida.
IHU On-Line - Tomando em consideração o horizonte do contratualismo, quais são as maiores objeções feitas por Kant a Hobbes ?
Delamar José Volpato Dutra - A crítica de Kant a Hobbes é bastante dúbia, pois ele parece criticar Hobbes por não ter oferecido um fundamento suficientemente forte para as obrigações políticas. Como se sabe, Hobbes tem um modelo bastante naturalizado. Ele raciocina a partir de interesses fundamentais, como a busca pela autoconservação. Por seu turno, Kant sempre pode recorrer a um dever categórico, inclusive no âmbito político. É de se mencionar, também, que Kant critica Hobbes por ter circunscrito demais a liberdade de expressão. Não obstante, segundo eu entendo, ambos os autores albergam o direito de desobedecer ao soberano, sendo que, nesse particular, Hobbes parece mais radical do que Kant.
IHU On-Line - Como podemos compreender que, para Kant, o contrato social se diferencia dos outros contratos por ser um fim em si mesmo?
Delamar José Volpato Dutra - Em minha opinião, esse é um dos pontos principais de sua crítica a Hobbes. Para Hobbes, o contrato social não é um fim em si, visto que ele está delineado por interesses vitais das partes que o compõem. Para Kant, por outro lado, ele é um fim em si; mesmo um Estado injusto é um fim em si, pois é melhor haver um Estado injusto do que a ausência dele, que levaria ao estado de guerra e à abolição de qualquer relação juridicamente regrada.
IHU On-Line - Qual é o conteúdo da lei natural em Hobbes e quais são os distanciamentos dessa proposição em relação àquela de Kant, para quem uma
finalidade em si mesma é ditada pela razão prática pura e fundamenta uma obrigação incondicional?
Delamar José Volpato Dutra - O conteúdo da lei natural em Hobbes é aquele que ordena a autopreservação. Envolve, portanto, evitar tudo o que contrarie a autopreservação. É a lei natural que ordena que se faça o contrato social e se o cumpra. No caso de Kant, não há essa relação hipotética em relação à lei que ordena entrar em sociedade. Entrar em sociedade é um imperativo categórico da razão, cuja finalidade, se há, é estabelecer uma situação jurídica, ainda que o resultado possa ser pior para o agente. Por exemplo, pode-se demandar que o cidadão vá à guerra e arrisque gravemente a sua vida. Como justificar um dever assim a partir do modelo de Hobbes?
IHU On-Line - Em que sentido Hobbes é mais coerente do que Kant ao formular a liberdade do súdito frente a um Estado injusto? Qual é a atualidade
dessa concepção?
Delamar José Volpato Dutra - Creio que a coerência de Hobbes está em que ele honra a autoconservação até o final. Por exemplo, ele aceita que o estado de necessidade seja o bastante para suspender as obrigações da lei natural de respeitar o outro. Kant, por seu turno, nega que haja tal direito. Não obstante, Kant admite que a ação em estado de necessidade, muito embora seja culpável, não é punível, porque não faria sentido punir um ser humano com a morte, se no estado de necessidade ele pode morrer. Ou seja, para o ser humano, querer regrar o estado de necessidade parece inconsistente. É nesse sentido preciso que, muito embora Kant não aceite o estado de necessidade, ele não pode honrar tal posição até o final, por exemplo, para apenar aquele que mata culposamente em estado de necessidade. Ou seja, há pelo menos um caso difícil que levanta problemas para a sua teoria da obediência ao direito de Kant. Um problema que Hobbes não tem.