Edição 435 | 16 Dezembro 2013

As pontes ecumênicas na poética de Rûmi

close

FECHAR

Enviar o link deste por e-mail a um(a) amigo(a).

Márcia Junges e Andriolli Costa

O professor Marco Lucchesi reflete sobre a obra do místico sufi, considerado o maior dos poetas muçulmanos, e as relações que constrói a partir do cristianismo e do islã

Para o professor Marco Lucchesi, historiador, literato e membro da Academia Brasileira de Letras, a mística é uma riqueza guardada da humanidade; uma reserva moral e poética. “Que se trate de uma mística úmida ou seca, pouco importa. É uma densa expressão humana, uma perspectiva primordial e etimologicamente arcaica, donde sua beleza e gratuidade”. Nesta entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line, Lucchesi retorna ao pensamento do místico sufi Jalāl ad-Dīn Muhammad Rūmi — considerado o maior dos poetas muçulmanos. Rûmi retoma os valores essenciais do cristianismo e do islã, promovendo uma relação fraterna e ecumênica entre os pensamentos com “sua grande poesia, inspirada, grávida de abismo e profundidade, em laços de diálogos feitos de luz e sombra”.

De maneira semelhante à relação de fraternidade proposta por Rûmi, o professor menciona também o caso do padre jesuíta Paolo Dall’Oglio, que esforçou-se em construir a ponte entre as religiões no trabalho que desenvolveu na Síria. “Paolo é um dos grandes nesse capítulo. Apostou na encruzilhada, de lanterna acesa dia e noite. Do diálogo passou ao debate não proselitista, longe de teorias do acabamento ou de cristianismo anônimo”, avalia Lucchesi. Após ser exilado do país e a ele retornar ilegalmente, em 29 de julho de 2013 o jesuíta foi sequestrado e permanece desaparecido desde então. 

Marco Lucchesi é graduado em História pela Universidade Federal Fluminense, mestre e doutor em Letras (Ciência da Literatura) pela Universidade Federal do Rio de Janeiro e pós-doutor pela Universidade de Colônia. Atualmente, é professor adjunto da Universidade Federal do Rio de Janeiro. 

Confira a entrevista.

 

IHU On-Line - Em que sentido a mística é importante no momento de crise epocal que vivenciamos?

Marco Lucchesi - Trata-se de uma riqueza guardada. Uma reserva moral. Uma reserva poética. Um antídoto ao velho positivista, sempre alerta. Que se trate de uma mística úmida ou seca, pouco importa. É uma densa expressão humana, uma perspectiva primordial e etimologicamente arcaica, donde sua beleza e gratuidade.

 

IHU On-Line - Como podemos compreender o percurso místico do Padre Dall’Oglio  e as pontes que ele constrói entre o Islã e o Cristianismo, religiões da profecia?

Marco Lucchesi - Paolo é um dos grandes nesse capítulo. Apostou na encruzilhada, de lanterna acesa dia e noite. Do diálogo passou ao debate não proselitista, longe de teorias do acabamento ou de cristianismo anônimo. Uma entrega generosa que espero não tenha pagado com a mesma moeda de Charles de Foucauld : o martírio.

 

IHU On-Line - Na carta  que você e Faustino Teixeira escreveram sobre o sequestro de Dall’Oglio, destacam a importância do diálogo entre essas duas fés. Qual é a importância da mística desse sacerdote para a compreensão das sutilezas que permeiam a vida em países de maioria muçulmana, como a Síria?

Marco Lucchesi - Paolo conhece profundamente a Síria e o Islã. Sabe seus dramas, a cólera e a luz. Amado por todos, menos por Assad . Dizem que é um homem de guerra. E o será na medida da guerra de defesa legítima. Escolheu a grande jihad, porque vive há tanto tempo a pequena jihad - a mais difícil, que é a do combate espiritual. Tenho esperança de seu regresso.

 

IHU On-Line - Em outra entrevista  o senhor afirmou que “obra de Rûmi  sabe a vastidão”. Qual é a peculiaridade de sua mística e de que forma enlaça o Mistério?

Marco Lucchesi - Mistério de sua grande poesia, inspirada, grávida de abismo e profundidade, em laços de diálogos feitos de luz e sombra. Entrega e grande revisitação profética.

 

IHU On-Line - Vivemos em tempos atrozes, marcados pelo individualismo e pela secularização, mas ao mesmo tempo por uma revivescência do sagrado. Em que medida a abertura para o Mistério pode oferecer chaves para uma vida mais agradecida?

Marco Lucchesi - Penso no fascismo laico da França. Um fascismo integralista ou fundamentalista. Perigoso, de pensamento único. Deveriam abrir o templo positivista em Paris, pois arrancam véus, desrespeitando o oxigênio de práticas distintas em nome da democracia.

 

IHU On-Line - Em que aspectos o Canto da Unidade de Rûmi é um descortinar do Mistério? Como podemos compreender a generosidade divina a partir dos escritos de Rûmi?

Marco Lucchesi - Na ideia da unidade e na ascensão. Beleza que ausculta o abatimento cardíaco do mistério, de Norte a Sul, no tido e na parte generosidade da beleza. Demanda de espaço e justiça. Podemos compreender a generosidade divina como se fosse um dom, que se espelha em cada gesto, mínimo e maior, a cada instância ou sintonia com a dança da unidade, o espelho de todas as coisas, com a sabedoria do coração.

 

IHU On-Line - Como Rûmi sinaliza os nexos entre Beleza e Verdade e Morte e Vida em sua obra? Que perspectivas essas concepções descortinam para a nossa vida?

Marco Lucchesi - Sem dúvida de modo fascinante. Compacto na aparência, mas, como se costuma dizer, em síntese explosiva. Como um longo e amoroso tirocínio, no mistério de se estar no mundo. Um modo pré-hamletiano, longe do interim, mas na parte de dentro, quando era possível pensá-lo, habitá-lo e refleti-lo.

 

IHU On-Line - Qual o papel da poesia nessa aproximação enigmática do mistério do meio divino? A sua leitura e vivência de Dante  favoreceram alguma pista para compreender esse mistério?

Marco Lucchesi - É o mistério da poesia, por todas as faces, as gradações do itinerário da mente para Deus e para os arquétipos, numa viagem com motores racionais e afetivos. Vale uma boa conversa com Rûmi. Talvez façam isso hoje, agora, no céu da poesia: ambos conversam e se reconhecem primos de primeiro grau.

 

IHU On-Line - Numa de suas nove cartas sobre a Divina Comédia, a de número seis, que trata do prefácio de Deus, você fala da tensão entre o silêncio e a palavra, e que encontra o seu auge na "metáfora de Deus como o livro dos arquétipos". Poderia falar um pouco sobre isso? 

Marco Lucchesi - Sim. É uma visão neoplatônica, da tradição mística de deus como fonte dos arquétipos, que é o mundo das ideias, mas com rosto, com nome e assinatura. Deus como fonte que transborda luz e mistério, essências que se derramam pelo cosmos.

 

IHU On-Line - Você diz que "Empíreo  sugere a poesia da poesia". Quando o poeta navega nesse horizonte, buscando traduzir o mistério de Deus, a palavra se encurta, mas o poeta, com sua ousadia, busca procedimentos específicos para acercar-se do indizível. Como você vê essa palpitante questão?

Marco Lucchesi - É a questão. Não há outra mais importante e radical, tudo nasce e volta para esse alto desafio, que é o que mais me interessa, confunde e apaixona. A tradução do inefável, suas harmonias e dissonâncias.

 

Leia mais...

Marco Lucchesi já participou da IHU On-Line com outras colaborações. Confira:

- Democracia e diversidade. Artigo de Marco Lucchesi publicado nas Notícias do Dia, de 15-01-2013, no sítio do Instituto Humanitas Unisinos;

- Editoria Invenção. Edição 258 da Revista IHU On-Line, de 19-05-2008, disponível;

- “Rûmî se utiliza do poder soberbo das metáforas”. Edição 222 da Revista IHU On-Line, de 04-06-2007;

- Rûmi: um dos místicos mais abertos à cortesia e hospitalidade inter-religiosos. Edição 242 da Revista IHU On-Line, de 05-11-2007;

- O livro de Deus na obra de Dante. Edição 65 dos Cadernos Teologia Pública.

Últimas edições

  • Edição 552

    Zooliteratura. A virada animal e vegetal contra o antropocentrismo

    Ver edição
  • Edição 551

    Modernismos. A fratura entre a modernidade artística e social no Brasil

    Ver edição
  • Edição 550

    Metaverso. A experiência humana sob outros horizontes

    Ver edição