Edição 434 | 09 Dezembro 2013

Copa do Mundo 2014, ilegítima: elitista, privatista e anti-popular

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Cesar Sanson

A análise da Conjuntura da Semana é uma (re)leitura das Notícias do Dia publicadas diariamente no sítio do IHU. A análise é elaborada, em fina sintonia com o Instituto Humanitas Unisinos – IHU, pelo Centro de Pesquisa e Apoio aos Trabalhadores – CEPAT com sede em Curitiba-PR e por Cesar Sanson, professor na Universidade Federal do Rio Grande do Norte - UFRN.

O texto na íntegra está publicado no sítio do Instituto Humanitas Unisinos – IHU.

Eis o artigo.

Não é exagero afirmar que a realização da Copa do Mundo no Brasil encontra-se ameaçada. Uma pergunta persegue e preocupa o governo, a FIFA e os organizadores do evento: Como serão as manifestações durante a Copa do Mundo? Já não há dúvidas de que haverá manifestações durante o Mundial. A dúvida é o tamanho das mesmas, o receio da necessidade de colocar o exército nas ruas, o uso desmedido da ‘mão pesada’ do Estado que pode arruinar a imagem do país lá fora, já agravada pós-Copa das Confederações. 

Seis anos atrás, quando o Brasil foi escolhido para sediar a Copa do Mundo de 2014, certo ufanismo tomou conta do país. Já faz tempo, porém, que a Copa deixou de ser uma unanimidade e se torna cada vez menos na medida em que se toma conhecimento dos desmandos que a envolvem. 

Nesses dias, o acidente com um guindaste na Arena Corinthians e a morte de dois operários maculou ainda mais a realização da Copa do Mundo no Brasil. Às mortes de trabalhadores somam-se uma série de outros problemas: greves, atrasos, remoções, abandono de projetos de mobilidade, gastos exorbitantes, falta de transparência, imposições da FIFA, etc.

O sinal de que as coisas não iam bem com a Copa foi dado em junho de 2013 com as grandes manifestações. As multidões sitiaram as arenas de futebol e manifestaram indignação com a exorbitância de gastos, com a falta de transparência, com as imposições da FIFA. As ruas disseram que entre investimentos em estádios e em saúde e educação, ficam com a segunda opção. Aos poucos foi crescendo a percepção na sociedade de que a Copa não passa de um grande negócio. Um negócio que subordina o Estado brasileiro, que privatiza espaços públicos, que elitiza os estádios, que expulsa milhares de seus locais de moradia e que utiliza dinheiro que falta em áreas mais necessárias.

As manifestações voltarão às ruas por ocasião da Copa do Mundo, ainda mais com os holofotes do mundo todo voltados ao Brasil. Independente do que venha acontecer, quebrou-se o mito do “país do futebol”, o mito de que a Copa do Mundo é sagrada. As ruas mandaram o recado “da Copa eu abro mão, quero mais dinheiro para saúde e educação”.

Quem primeiro levantou a série de equívocos envolvendo a organização do evento foram os Comitês Populares da Copa. Na raiz dos cartazes de rua criticando o ‘modelo da Copa’ estão os Comitês Populares que denunciaram a Lei Geral da Copa, as remoções, os gastos absurdos, as imposições da FIFA.

 

Comitês Populares da Copa: Resistência e potência

Os Comitês Populares da Copa foram o embrião daquilo que depois se viu nas ruas. Foram eles que alertaram para os desmandos na organização do evento. Chamaram a atenção para a ingerência de fora para dentro com a Lei Geral da Copa, as violações de direitos, as remoções indevidas, o uso exorbitante e sem consulta popular do dinheiro público, entre outros.

Em 2011, os Comitês Populares da Copa lançaram um Dossiê intitulado ‘Megaeventos e Violações de Direitos Humanos no Brasil’. Nele estão presentes as denúncias que irão aflorar posteriormente nas manifestações:

- Moradia: despejos arbitrários e remoções inteiras em processos ilegais de desapropriação para as obras da Copa;

- Trabalho: as greves e paralisações são resultados de baixos salários, más condições de trabalho e superexploração da mão de obra em função de atrasos e cronogramas apertados;

- Acesso à Informação, Participação e Representação Popular: criação de instâncias paralelas de poder, que estão isentas de qualquer controle social;

- Meio ambiente: facilitação de licitações ambientais para obras;

- Mobilidade: expulsão das famílias mais pobres das áreas centrais e valorizadas e investimentos em transporte e mobilidade urbana sem considerar prioritariamente as demandas da população;

- Acesso a Serviços e Bens Públicos: diante da resistência dos moradores, prefeituras cortam serviços públicos de comunidades em processo de remoção;

- Segurança Pública: perspectiva de militarização das cidades durante os megaeventos;

- Elitização, ‘Europeização’ e Privatização do Futebol: fim dos setores populares nos estádios e aumento dos preços dos ingressos.

 

Lei Geral da Copa – Cavalo de Tróia

Dentre as várias denúncias na preparação da Copa do Mundo, os Comitês destacaram o caráter autoritário, abusivo e de ingerência inscritos na Lei Geral da Copa. Uma legislação imposta de fora para dentro a partir dos interesses da FIFA - um verdadeiro ataque à soberania do país, segundo os Comitês Populares da Copa.

A Lei Geral da Copa altera sumariamente a legislação brasileira, normas amplamente debatidas e, em muitos casos, fruto histórico de pressão e reivindicações dos movimentos sociais para atender a exigências de organismos internacionais como a FIFA e o Comitê Olímpico Internacional – COI. A FIFA e o COI se transformaram em verdadeiras empresas transnacionais, mais preocupadas com o jogo do mercado do que com os jogos esportivos.

Diante da abusiva ingerência da FIFA, exigindo, determinando, cobrando, alterando a legislação brasileira, não é surpresa que a mesma tenha se tornado um dos alvos preferidos dos manifestantes. Dentre os absurdos, um dos que mais gerou indignação está a proibição de vendedores ambulantes de comercializar produtos num raio de dois quilômetros dos estádios, ou seja, a FIFA criou um território que é governado por ela e não pelo governo brasileiro.

A FIFA arranhou tanto a sua imagem com o seu despotismo no Brasil que é uma das concorrentes ao prêmio de “pior corporação do mundo”. A FIFA “contribui para a violação dos direitos humanos, assim como ao direito à moradia, direito de protestar e de trabalhar”, destaca o site promotor do prêmio Public Eye Awards, que desde 2000 elege a “pior corporação do mundo”.

 

Remoções arbitrárias e o legado oculto

A realização da Copa do Mundo tem sido perversa para muitas pessoas. Em nome da necessidade de construção das arenas, da reestruturação viária nos seus entornos e até mesmo por higienização e esteticização, milhares estão sendo expulsos do lugar em que vivem há décadas.

De acordo com dados de um mapeamento divulgado pela Articulação Nacional dos Comitês Populares da Copa (Ancop), em parceria com a ONG Conectas, calcula-se que 250 mil famílias correm o risco de serem despejadas por causa das obras em preparativo para a Copa do Mundo. Falta de transparência, indenizações insuficientes e reassentamentos inadequados para as famílias removidas são marcas de um modelo de gestão empreendedora neoliberal no interior das cidades-sede da Copa. Na opinião de Orlando Alves dos Santos Junior, pesquisador da Rede Observatório das Metrópoles do Rio de Janeiro, em entrevista à IHU On-Line nº 422 , 10-06-2013, há um legado oculto nesse processo das remoções. Segundo ele, “todas estas grandes obras se dão no marco do neoliberalismo, pois existe a subordinação do poder público aos valores do mercado, que promove a privatização e a mercantilização da cidade na perspectiva de atração de investimentos”.

Nesse mesmo contexto da mercantilização da cidade, a arquiteta e urbanista Claudia Favaro, também em entrevista à IHU On-Line, aponta para o fato das populações mais pobres estarem sendo removidas de forma violenta, sem nenhuma alternativa, ocorrendo verdadeiras tentativas de higienização e elitização dos espaços públicos, com a expulsão dos mais pobres de determinadas áreas.

 

Gastos exorbitantes que não têm fim

Há outro escândalo que cerca a organização do Mundial. Gastos exorbitantes que não têm fim. Não falta dinheiro para as obras da Copa frente às imensas carências de serviços de saúde, educação, saneamento, entre outros. Esse é um dos fatores que constrange a realização da Copa.

O Brasil já bateu a soma do que a África do Sul e a Alemanha desembolsaram para os dois últimos Mundiais. O valor gasto para reforma ou construção dos 12 estádios chega próximo a 8 bilhões de reais segundo dados do Sindicato Nacional de Arquitetura e da Engenharia – Sinaenco, que conta com correspondentes nas 12 cidades-sede e realiza acompanhamento mensal de projetos ligados à competição. O valor total, entretanto, chegará a R$ 28 bilhões. Além de estádios, têm-se as obras de mobilidade urbana, ampliação de aeroportos e portos, gastos com segurança, telecomunicações e infraestrutura de turismo.

Segundo a Auditoria Cidadã da Dívida, os R$ 28 bilhões que serão gastos com a Copa - evento que vai durar um mês - representam em torno de metade do valor destinado para a Educação no Orçamento Geral da União para todo o ano de 2012, que foi de R$ 57 bilhões, e cerca de 40% do destinado para a Saúde, de R$ 71 bilhões.

Os gastos suntuosos revelam ainda outro caráter perverso, o de que tem muita gente ganhando muito dinheiro com a Copa – particularmente as empreiteiras e os consórcios que irão administrar as arenas. Majoritariamente estão sendo construídas com recursos públicos, mas serão privatizadas em suas administrações.  Um seleto grupo de empreiteiras está à frente das obras da Copa, entre elas, Odebrecht – responsável pela obra do Itaquerão onde morreram os operários –, Camargo Correa, Andrade Gutierrez, Queiroz Galvão, OAS e JBS. Essas mesmas empresas também são generosas doadoras de recursos para campanhas eleitorais.

 

Elitização e privatização do futebol

Junto com os exorbitantes gastos nas arenas para cumprir o padrão FIFA vem outra consequência: a elitização do futebol brasileiro.  Para além da elitização, assiste-se ainda a uma privatização dos espaços públicos. Antes da atual remodelagem, muitos estádios eram públicos e agora se tornarão privados. 

Entre eles, por exemplo, o Maracanã, uma "arena multiuso” que albergava, além de eventos desportivos, também recitais musicais e espetáculos dos tipos mais diversos. Agora, sobre as arquibancadas foram construídos camarotes com ampla visão do campo, com vidros que separam os espectadores VIP do resto dos espectadores. Nas suítes privativas dos estádios reformados com dinheiro público, milionários e empresas pagam 2,3 milhões de dólares por ingresso vendido por associada da FIFA.

Outro exemplo, entre outros, é a arena das Dunas construída em Natal-RN. A arena foi edificada sobre os escombros do antigo Machadão – estádio público. Com a destruição do Machadão se destruiu também o Machadinho – ginásio de esportes que abrigava jogos esportivos da rede pública de ensino. Agora o espaço, anteriormente público, se tornou privado e o Estado não tem mais nenhuma ingerência sobre ele. Tampouco os pobres. Os preços dos ingressos se tornaram proibitivos. Somente entram nas arenas privadas quem pode pagar.

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