Edição 202 | 30 Outubro 2006

“A cobertura da grande imprensa é escandalosamente tendenciosa”

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IHU Online

Christa Berger, jornalista, professora do Programa de Pós-graduação em Comunicação da Unisinos concedeu uma entrevista por e-mail à IHU On-Line, falando sobre as relações entre mídia e política. Na opinião de Christa, “o que vimos, foi à disputa política (eleitoral e de classe) acontecendo através da cobertura jornalística como se fosse informação”.

Pós-doutora pela Universidade Autônoma de Barcelona (UAB), Espanha, e doutora em Ciências da Comunicação pela USP, com a tese Campos em Confronto: Jornalismo e Movimentos Sociais – As Relações entre o Movimento Sem Terra e a Zero Hora. É mestre em Ciência Política pela Universidade Nacional Autônoma do México (UNAM).

Berger é professora aposentada da UFRGS e professora do PPGCOM da Unisinos. Christa Berger é autora de Campos em confronto: a terra e o texto. Porto Alegre: Editora da Universidade, 1998, e uma das organizadoras do livro O Jornalismo no Cinema. Porto Alegre: Editora da Universidade - UFRGS, 2001. Confira a entrevista concedida por ela na 172ª edição da revista IHU On-Line, de 20 de março de 2006.

IHU On-Line - Como se relacionam política e mídia?

Christa Berger
- Política e mídia estão intrinsecamente relacionadas, pois ao jornalismo cabe a vigilância, através de suas coberturas, do conjunto da sociedade e, a política não pode dispensar os mediadores legitimados (jornais e jornalistas) de diálogo com os cidadãos. Diferentes abordagens da ciência política e do jornalismo trabalham esta relação, seja mediante o conceito de formação da opinião pública, de manipulação ou de midiatização. O que temos observado é que a mídia vem ocupando um lugar de destaque na configuração das sociabilidades, que se reflete também na política. Os partidos e os políticos, percebendo o protagonismo da mídia, submetem-se à sua lógica, provocando profundas transformações no seu modo de atuar e produzindo o que alguns autores denominam de “política da Idade Mídia”. O destaque que o marketing tem nas campanhas eleitorais é apenas um exemplo da submissão da política à lógica midiática. 

IHU On-Line - Como à senhora caracteriza a cobertura política dos jornais e TV nas eleições entre Lula e Alckmin?

Christa Berger
- A cobertura da grande imprensa é escandalosamente tendenciosa – ela vem atuando como um partido que representa uma classe social – mas, com o poder de esconder esta condição ao afirmar-se neutra, imparcial e objetiva. Este é o poder perverso da imprensa – agir em uma direção e argumentar convincentemente que está na direção contrária. A campanha política contra o governo Lula não começou com o processo eleitoral. Logo após a posse, que não podia não ser festiva, uma pergunta foi plantada pela mídia: será que Lula vai conseguir governar? Afinal ele não domina idiomas, tem pouco traquejo internacional e outros tantos argumentos relacionados à sua escolaridade baixa. A associação com a falta de escolaridade não teve sucesso, mas retorna toda vez que há expectativa de funcionar. No primeiro turno da eleição atual, o presidente voltou a ser chamado de analfabeto, houve correções de suas falas na imprensa e afirmações sobre como “a falta de escolaridade impede a pessoa de entrar em contato com a lógica” e tantos outros exemplos encontrados em diferentes seções e jornalistas. Com o mesmo objetivo. A aposta de desestabilização por este caminho segue não tendo sucesso.

Outro caminho foi tentado. Se a campanha do candidato em 2002 se orientou pelo slogan da esperança em oposição ao medo, e se foi a esperança de que um outro mundo é possível que o tornou vitorioso, ao governar é este capital que deverá ser desacreditado. É, neste sentido, que identifico na cobertura jornalística da atuação do governo Lula uma regularidade: dúvida, decepção e frustração anulam a esperança.
É verdade que o governo cometeu erros do ponto de vista de sua história e que cabe à imprensa informar, investigar e apontar criticamente os equívocos. O que se espera do jornalismo é a apresentação dos acontecimentos pela escuta de múltiplas fontes e da diferenciação do espaço da informação e da opinião. O que vimos, no entanto, foi a disputa política (eleitoral e de classe) acontecendo por meio da cobertura jornalística como se fosse informação. Se o capital simbólico da sociedade do conhecimento é a informação é nela que se faz o investimento político de despolitização.

Confusão na grande imprensa

O movimento da grande imprensa foi confundir problemas graves detectados no governo, (a questão da corrupção, da política econômica, das reformas de base não realizadas) com crise de governabilidade. Agora tinha chegado a hora de provar que Lula não tem condições de governar – ele está mal-assessorado, não sabe escolher seus auxiliares. A crise foi construída, enquadrada, produzida por interesses políticos e apresentada como informação apurada (muitas vezes, inclusive desmentida na seqüência). Insistentemente o governo Lula foi comparado com o governo Collor, insinuando que o desfecho deveria ser o mesmo impeachment. As capas da revista Veja de um e outro momento escancaram a intenção de afirmar a relação entre os dois presidentes.

Outro movimento perceptível na grande imprensa foi de afirmação da não-diferenciação - todos são iguais quando chegam ao poder. Em todos os partidos há corruptos e os políticos são corrompíveis. O capital simbólico do PT, desde a sua fundação, foi uma perspectiva ética que inclui a luta contra a corrupção. É este diferencial que deve ser apagado, apresentando o governo em crise, identificando a causa da crise no “mar de corrupção”, argumentando que todos os partidos enfrentam o problema da corrupção (que, no entanto, nunca antes foi tanta) o sentimento de decepção e frustração atravessa o militante e o eleitor. Decepção e frustração levam à desesperança - até no PT há corruptos? – então, um outro mundo não é possível.

A ameaça aos interesses que a imprensa representa

A cobertura da grande imprensa fez esta aposta e deu mais um exemplo de como age quando os interesses que ela representa se sentem minimamente ameaçados. Foi assim no Chile do presidente Salvador Allende, é assim na Venezuela do presidente Chávez, é assim no Brasil do presidente Lula. Os jornais não vacilam em assumir seu lado na luta de classes. Como nestes períodos a realidade é manifestamente contraditória e complexa e o eleitor/leitor não dá conta do conjunto de informações, o jornalismo tem uma função muito importante. À mídia cabe o “fazer ver” o mundo “fazer crer” que ele é assim como está sendo apresentado. No Chile, na Venezuela, no Brasil quando o poder começa a trocar de lado, ou quando os “de baixo” apontam no horizonte, os jornais apostam nos relatos do medo, da incerteza e da insegurança. São discursos competentes, porque passam pelo “teste da realidade” (de fato, os eleitores do PT estão frustrados), eles têm indícios de real (há, de fato, corrupção no governo Lula) logo, são discursos autorizados a oferecer uma conclusão compatível com a descoberta e orientar nossa leitura do mundo.

O discurso neoliberal, diz Bauman (2000)  reduz-se ao credo de que “não há alternativa”. Além disso, todas as alternativas são, devem ser e se revelarão piores se experimentadas na prática. É a esta política que a grande imprensa está correspondendo no Brasil e este é o tom que encontramos na cobertura política. A primeira investida foi na direção da incapacidade de Lula governar – ele não tem formação, ele não tem experiência administrativa, – mas, como esta não passou no "teste da realidade”, então a aposta foi na direção da corrupção – que, com indícios de real, vem acompanhada de indignação. Na verdade, outra vez um discurso enganoso: parece que, para esclarecer, para contribuir com a construção da cidadania, na verdade um discurso moralista, conservador e despolitizador na medida em que faz a apologia da rendição.

A história do dossiê

Na opção da imprensa antiLula pelo pró-Alckmin a história do dossiê teve um impacto positivo, garantindo o segundo turno da eleição. O interessante nesta história é, pensando nas relações entre mídia e política, observar o papel da imprensa e os efeitos da edição. As capas dos jornais Folha de São Paulo, O Estado de São Paulo, Zero Hora, O Globo e os noticiários de televisão do dia 30 de setembro são primorosos documentos do trabalho de enquadramento ideológico em pauta. Se foram vitoriosos porque garantiram o segundo turno (a mídia, em especial a Globo, omitiu informações cruciais na divulgação do dossiê e contribuiu para levar a disputa ao 2º turno, diz Carta Capital) também propiciaram um intenso debate público sobre a imprensa. Os observatórios de imprensa, a revista Carta Capital, os blogs alternativos trouxeram informação não só do fato (o dossiê), mas também dos bastidores da cobertura e dos sujeitos e interesses que garantiram a linha editorial antiLula/pró-Alckmin. A contra-informação tornou factível a proposta de um dossiê da mídia nas eleições de 2006.

O paradoxal e surpreendente para quem estuda a mídia e observa perplexo seu poder extrapolando todas as fronteiras é verificar que “todo esse poder” também é suscetível de derrota. Outras variáveis originadas na vida real e nas subjetividades humanas também disputam sentidos com a mídia e, às vezes, tornam vitorioso o outro lado.  

IHU On-Line - O que é ensinado nos cursos de Jornalismo sobre as relações entre a mídia e a política? Elas dão conta da questão?

Christa Berger
- No currículo repete-se em mais de uma disciplina a discussão sobre mídia e política. Penso que os alunos têm a oportunidade de conhecer perspectivas teóricas, observar criticamente as coberturas jornalísticas e produzir textos aprendendo a diferenciar informação (apurada com rigor) e opinião. O problema que merece ser criticado na cobertura que estamos comentando não é de responsabilidade de quem exerce a profissão nas redações ou da formação acadêmica dos jornalistas, ainda que isso deva ser considerado na análise. É mais um problema do sistema de comunicação que permite a concentração dos meios e a falta de uma política democrática de comunicação que nenhum governo nem partido político foi capaz de enfrentar. Enquanto a informação estiver submetida aos interesses do capital, é este quem dará a palavra final.

IHU On-Line - Como à senhora avalia a cobertura que a imprensa gaúcha tem feito das eleições para governador do Estado, principalmente no segundo turno?

Christa Berger
- É uma cobertura que acompanha a grande imprensa nacional. Ela tem lado, optou pelas candidaturas tucanas. Mas é, também, uma cobertura mais cuidadosa do que em outras eleições na exposição desta opção. No caso da Zero Hora, parece uma opção por não perder mais assinantes/leitores, afinal, a opção política não pode competir com os ganhos materiais. Há estudantes e pesquisadores coletando as informações políticas dos jornais gaúchos e, seguramente, vamos ter acesso a monografias, artigos e dissertações esclarecendo como ela se comportou. O que chama atenção e, talvez, seja uma novidade nesta eleição é a quantidade de contra-informação à grande imprensa que circula via internet. Há uma disputa de versões sobre os fatos, mas, mais que isso, há textos reescrevendo a informação divulgada, fazendo a crítica da informação, dos modos de fazer a cobertura e dos interesses da informação estar assim construída. O acesso a este conjunto de informações – díspares, contraditórias, complexas e ricas – apontam para uma característica acirrada em nosso tempo: a distribuição desigual da informação.

 

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