Edição 432 | 18 Novembro 2013

Ética da neurociência e Neurociência da ética

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Andriolli Costa

Filósofa Cinara Nahra esclarece as diferenças e os dilemas científicos destas duas vertentes possíveis

Existem duas vertentes pelas quais a filosofia da ética se encontra com a neurociência: a neurociência da ética e a ética da neurociência. A filósofa Cinara Nahra se debruça sobre ambas as questões e, nesta entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line, esclarece os principais desafios de cada uma delas. Se a primeira aborda os dilemas da ciência, o aprimoramento do homem pela biotecnologia e o que é aceitável ou inaceitável nas pesquisas científicas, a segunda trata da compreensão dos dilemas éticos a partir do conhecimento do cérebro. 

Neste contexto, muito se questiona sobre as formas como a neurociência pode afetar a responsabilidade e a liberdade do ser humano. Para a filósofa, ainda que frente a algumas questões inquietantes, a reflexão dos antigos filósofos ainda é capaz de dar conta de muitas delas. “Como já havia percebido Aristóteles, quanto mais somos capazes de escolher voluntariamente nossos atos, mais somos responsáveis por eles”, retoma Nahra. “A neurociência da ética, penso, não está descobrindo nada que se oponha à teoria aristotélica da responsabilidade, e penso que mostra a grandiosidade dos filósofos clássicos e a aplicabilidade da reflexão filosófica no século XXI.”

Cinara Maria Leite Nahra possui graduação e mestrado em Filosofia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul e doutorado em Filosofia, na área de Ética, Política e Políticas Públicas pela University of Essex (2005). Atualmente é professora associada do Departamento de Filosofia da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, onde discute autores da filosofia moral como Immanuel Kant e John Stuart Mill, e temas como ética de princípios, ética utilitarista, preconceito, moralismo, sexualidade e procriação. É autora dos livros Malditas Defesas Morais (Natal: Cooperativa Cultural, 2000) e Uma Introdução à Filosofia Moral de Kant (Natal: EDUFRN, 2008) e coautora de livros como Através da Lógica (Petrópolis: Vozes, 2001) e Body and Justice (Newcastle: Cambridge Scholars Publishing, 2011). 

Confira a entrevista.


IHU On-Line - A neuroética, entre as neuroculturas, é uma das mais reconhecidas e que vem sendo alvo de vários estudos. De que forma o pensamento de filósofos como Kant  e Mill  pode colaborar para a compreensão da ética a partir do universo ‘neuro’?

Cinara Nahra – A neuroética, segundo Adina Roskies , divide-se em dois ramos, a ética da neurociência e a neurociência da ética. Normalmente se entende a ética da neurociência como pesquisando o que é moralmente permitido ou não fazer em neurociência e nas pesquisas na área, bem como o desdobramento destas pesquisas do ponto de vista ético. Já a neurociência da ética estuda os mecanismos neurais envolvidos na cognição moral e no comportamento ético, ou antiético, e os mecanismos cerebrais dos principais comportamentos relacionados à ética e à moralidade, como altruísmo, generosidade, confiança nos outros, punição altruísta, violência, livre arbítrio, mentira e preconceito, comportamentos que estão todos relacionados de algum modo à moralidade (ou à falta de moralidade).

É exatamente em relação à pesquisa em neurociência da ética que penso que as filosofias de Kant e de Mill, que são respectivamente exemplos de reflexões deontológicas (Kant) e consequencialistas (Mill), podem mais contribuir. Um destes modos é construindo modelos filosóficos sobre como nosso cérebro se comporta na tomada de decisões éticas, ou seja, se raciocinamos de modo deontológico, utilitarista ou mesclando os dois tipos de raciocínio. Estes modelos podem ser corroborados ou não pelas pesquisas na área de neurociência da ética que utilizam fMRI . Por outro lado, também as pesquisas advindas da neurociência da ética podem lançar luzes sobre a tradicional discussão na ética normativa entre deontologia, utilitarismo e ética de virtudes. A contribuição, então, entre teorias tradicionais da ética e a neuroética é uma via de mão dupla.

 

IHU On-Line - Quais são os grandes temas debatidos pela neuroética na atualidade? 

Cinara Nahra – Há vários temas. Discute-se, além da questão do livre arbítrio, se a oxitocina  e a serotonina  podem vir a ser utilizadas no futuro para auxiliar pessoas que gostariam de ser mais generosas ou menos violentas, e têm dificuldades em sê-lo. As bases neurais de certos tipos de violência e do comportamento psicopata são também discutidas e pesquisadas. E todas estas pesquisas nos remetem a questões que pertencem à ética da neurociência, como, por exemplo, se forem descobertos padrões neurológicos que são preditivos de comportamento criminal, o que a sociedade deve fazer? Não podemos obviamente segregar estas pessoas, mas, ao contrário, temos de investir na sua educação. 

Outro tema interessante é que países como os EUA têm investido muito na pesquisa sobre os mecanismos neurais que estão envolvidos na mentira. É possível que um dia venhamos a construir detectores de mentira que sejam confiáveis, e isto seria muito positivo, pois evitaria, por exemplo, que pessoas inocentes fossem injustamente condenadas. Mas várias questões de ética da neurociência então se colocariam: A sociedade tem o direito de exigir que todos se submetam a estes detectores? O Estado tem o direito de compulsoriamente “invadir” o cérebro dos cidadãos? Isto sem contar possíveis maus usos desta tecnologia por grupos terroristas, aproveitadores e pessoas inescrupulosas.

 

IHU On-Line - A mudança na compreensão do cérebro no comportamento humano nas últimas décadas gera novos problemas ou novas respostas no campo da neuroética em relação ao livre arbítrio?

Cinara Nahra – A discussão sobre o libre arbítrio surge especialmente por experiências feitas entre 2008 e 2011 por pesquisadores ligados ao Instituto Max Planck  na Alemanha, cientistas como Bode  e Haynes . Suscintamente, nestes experimentos os pesquisados eram convidados a escolher livremente qual botão pressionar para executar uma determinada tarefa, entre dois botões disponíveis. O que os cientistas verificaram é que era possível “prever”, para alguns destes indivíduos, alguns segundos antes de eles terem consciência de sua decisão, qual botão eles apertariam. Houve um grande alvoroço na mídia científica, na época, em relação a este experimento, porque muitos alegaram que eles de certa forma corroborariam a ideia de que o livre arbítrio é uma ilusão. Parece-me, entretanto, que esta interpretação é equivocada, já que o que os estudos mostram é que há elementos inconscientes, ou pré-conscientes, nas nossas decisões, mas isto não implica nem significa que nossas decisões não sejam livres. 

 

IHU On-Line - Qual sua opinião sobre o enhancement humano? Que tipo de melhorias são eticamente aceitáveis e de que forma elas podem ser desenvolvidas sem gerar a segregação da própria espécie?

Cinara Nahra – Sou, em princípio, a favor do enhancement (aprimoramento) humano, se ele for feito de forma voluntária. Sou a favor também da regulação do seu uso, mas não por tratar-se de enhancement, e sim porque devemos regular o uso de qualquer tecnologia. É assim com automóveis, por exemplo. Podemos construir carros capazes de atingir velocidades de 200 km/h, mas certamente não pensamos em permitir que tais carros desenvolvam velocidades como esta em nossas estradas. O mesmo deveria acontecer em relação ao aprimoramento humano. Se um dia formos capazes de construir pernas mecânicas que aumentem em 100 vezes a nossa velocidade, devemos regular o seu uso que deve ser sempre civilizado e para o bem. 

Já a questão da segregação da nossa espécie, que muitos temem que poderia acontecer em um cenário futurista no qual teríamos humanos e pós-humanos, penso que pode ser evitada com educação moral. A princípio todos devem ter acesso à tecnologia, o que, infelizmente, não acontece no mundo de hoje. Penso então que a segregação da espécie já acontece, com uma enorme diferença de qualidade de vida entre países superdesenvolvidos, como os países nórdicos, o Japão e outros países europeus, e os países mais pobres na África, onde, em alguns casos, direitos humanos mínimos não são garantidos; é o caso de países como o Congo, onde mulheres são submetidas a estupros em massa e maldades indescritíveis. Quero dizer, então, que o que causa a segregação, que já acontece, não é e não será o enhancement humano, e sim a falta de educação moral no mundo e o comportamento imoral tanto de indivíduos quanto de alguns governos e de alguns grupos ao redor do mundo. 

 

IHU On-Line - Normalmente a neuroética se depara com dilemas e desafios ainda distantes dos que se encontram na realidade atual. Nestas projeções, às vezes se acerta nas antecipações e às vezes eles se provam temores infundados. Como você enxerga essas projeções no âmbito da responsabilidade moral? 

Cinara Nahra – Acho que nós, humanos (ou mesmo pós-humanos, como alguns preveem), nunca deixaremos de ser livres e de ser responsáveis por nossas decisões. Penso na neuroética, neste sentido como um instrumento para a libertação, e não para a escravidão do ser humano. Em relação à responsabilidade moral, o que podemos esperar da neuroética, penso, é que ela nos ajude a cada vez mais conhecer as condições e os fatores que limitam a responsabilidade humana, não para dizer que ninguém é responsável por seus atos, sendo nós meras máquinas em um mundo onde tudo está determinado, mas, ao contrário, para descobrir mais acuradamente que condições e que fatores limitam nossa liberdade, para que assim julguemos as pessoas de um modo mais justo, atribuindo responsabilidade àqueles que são de fato responsáveis por seus atos e sendo tolerantes com os que têm sua liberdade diminuída, como já acontece hoje com aqueles que são inimputáveis.

Responsabilidade

Vejam o caso do “pedófilo de Virginia” que é bastante debatido nas discussões de neuroética. Trata-se de um caso real, um homem que no início deste século começou a assediar sexualmente sua enteada, ao mesmo tempo em que começou a queixar-se de fortes dores de cabeça. Foi feito o escaneamento de seu cérebro e descobriu-se um tumor, que foi retirado. Depois de retirado o tumor, entretanto, o homem não mais apresentou comportamento pedófilo, e continuou assim por muito tempo até que voltou a assediar menores, quando foi então descoberto que o tumor tinha voltado. 

Neste caso, muito provavelmente seu comportamento pedófilo estava associado ao desenvolvimento do tumor, do qual ele não tinha controle, interferindo com sua liberdade. Neste caso o que deveria ser feito não seria, é claro, efetivar a prisão do homem, mas realizar a cirurgia, devolvendo ao homem, com isso, suas faculdades plenas. Trago o exemplo aqui para mostrar que, neste caso, a neurociência ajudou a descobrir que um fator externo estava provavelmente diminuindo o controle deste indivíduo sobre seus atos e, com isso, é claro que ele deveria ter diminuída a sua responsabilidade. 

Na maioria dos casos, no entanto, as pessoas tomam suas decisões de forma livre, ou seja, influenciadas, sim, por circunstâncias e fatores externos, mas, ainda sim, na grande maioria das vezes, sendo livres para tomar suas decisões, fazer suas escolhas e construir seus destinos. E como já havia percebido Aristóteles , quanto mais somos capazes de escolher voluntariamente nossos atos, mais somos responsáveis por eles. A neurociência da ética, penso, não está descobrindo nada que se oponha à teoria aristotélica da responsabilidade, e penso que isso mostra a grandiosidade dos filósofos clássicos e a aplicabilidade da reflexão filosófica no século XXI.

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