Edição 432 | 18 Novembro 2013

Por uma agricultura socialmente justa e ambientalmente correta

close

FECHAR

Enviar o link deste por e-mail a um(a) amigo(a).

Ricardo Machado

Segundo Sérgio Sauer, o aumento da produtividade nunca foi uma preocupação da modificação genética das sementes

“O grande argumento para a adoção de sementes geneticamente modificadas (OGM) foi de que esta tecnologia iria baixar os custos de produção e aumentar a produtividade. Nós, que defendíamos a adoção do princípio de precaução para a liberação comercial, já sabíamos que eram promessas vazias, o que está explicitamente comprovado”, aponta Sérgio Sauer, em entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line. Para o professor, atualmente há ganhos para quem opta por produzir soja convencional, no entanto, uma das principais dificuldades enfrentadas pelos agricultores é que não há sementes disponíveis. Além disso, ele aponta que a entrada dos transgênicos aumentou o consumo de agrotóxicos em relação às culturas com sementes crioulas.

De acordo com Sérgio Sauer, a entrada dos transgênicos não se deu em virtude de ampliar o acesso à alimentação para a população mais carente, e o maior desafio à questão é, justamente, uma mudança no paradigma de como o Estado encara a questão. “O modelo agropecuário dominante, em que os transgênicos são apenas uma parte, é o grande desafio. A produção monocultora, em grandes áreas para exportação, não é sustentável; não é social nem politicamente justa, portanto o desafio não se reduz a uma simples volta às sementes convencionais”, avalia.

Sérgio Sauer formou-se em Teologia pela Escola Superior de Teologia e em Filosofia pela Universidade Católica de Goiás. Realizou mestrado em Filosofia da Religião na School of Mission and Theology - Faculty of Arts/University of Bergen, na Noruega, e doutorado em Sociologia na Universidade de Brasília – UNB. Foi professor da Universidade Católica de Goiás e da Universidade Católica de Brasília, além de assessor parlamentar no Senado Federal nos mandatos de Heloísa Helena e Sibá Machado. Atualmente é professor da UNB, na Faculdade de Planaltina - FUP e nos Programas de Pós-Graduação em Meio Ambiente e Desenvolvimento Rural (PPG-Mader - FUP/UnB) e em Agronegócios (Propaga - FAV/UnB). Atua também como relator do Direito Humano à Terra, ao Território e à Alimentação da Plataforma Dhesca Brasil (Plataforma Brasileira de Direitos Humanos Econômicos, Sociais, Culturais e Ambientais) e colaboradora com a ONG Terra de Direitos.

Confira a entrevista.

 

IHU On-Line – Qual a avaliação do senhor em relação à produção de alimentos transgênicos? Quais são os limites desta prática tendo em paralelo a necessidade de alimentação da população?

Sérgio Sauer - Depois de uma década da liberação comercial de transgênicos no Brasil, a avaliação — muito bem colocada em recente seminário internacional sobre o tema — é de um "conjunto de promessas não cumpridas". Por exemplo, o grande argumento para a adoção de sementes geneticamente modificadas (OGM) foi de que esta tecnologia iria baixar os custos de produção e aumentar a produtividade. Nós, que defendíamos a adoção do princípio de precaução para a liberação comercial, já sabíamos que eram promessas vazias, o que está explicitamente comprovado. Hoje há ganhos para quem produzir soja convencional — há demanda, os preços são melhores, o resultado final entre custo e ganhos é positivo, etc. —, mas não há sementes disponíveis. Mais importante que cálculos econômico-financeiros, no entanto, é o fato de que o cultivo de transgênicos está entre as causas do aumento do consumo de agrotóxicos no Brasil, o que é muito grave, especialmente porque a redução deste uso foi outra promessa.

Em relação à produção de alimentos, primeiro, é fundamental ter claro que, apesar das narrativas para justificar a liberação de transgênicos, essa nunca foi a preocupação dos setores diretamente envolvidos com a produção e comercialização dos mesmos. Não havia — e não há! — transgênicos em que a preocupação fosse de aumentar a produtividade com, por exemplo, sementes que produziriam mais em menos área de terra. A tecnologia é de resistência a determinados produtos químicos e ponto. Por um lado, se não há nenhuma relação entre demanda de alimentos e produção, por outro, houve uma contaminação generalizada dos alimentos. Em outras palavras, o cultivo de OGMs significa contaminação dos alimentos; significa produção de alimentos contaminados ou, no mínimo, de maiores riscos à saúde da população.

No caso brasileiro, ainda temos um agravante que é a liberação do cultivo comercial de feijão, um alimento básico da população. Até agora, parte significativa dos cultivos era de grãos (soja, milho, canola, etc.), os quais são processados para o consumo humano. Não estou dizendo que os mesmos não trazem riscos à saúde, apenas que há processamentos que podem diminuir os riscos. No caso do feijão, é um produto consumido diretamente da lavoura para a mesa. Além disso, vem sendo propagandeado como uma tecnologia nacional, desenvolvido por uma empresa pública nacional (a Embrapa) e destinado aos pequenos produtores. É tudo falácia, agregando mais riscos, porque apela para elementos simbólicos como mecanismos de convencimento para produção e consumo de um alimento contaminado! 

 

IHU On-Line – Que relações são possíveis de estabelecer entre o “discurso da escassez”, o agronegócio e a agricultura familiar?

Sérgio Sauer - A lógica da escassez é um mecanismo histórico fundamental na reprodução do sistema. Na verdade, é a lógica fundante do sistema capitalista, pois é essencial ter menos oferta que demanda para aumentar preços e, por consequência, lucros. Este discurso da escassez é então frequentemente renovado, reeditado e até vinculado a diversos fenômenos ou acontecimentos. Recentemente, alguns fenômenos importantes para renovar este discurso da escassez foram, por exemplo, os estudos e discussões em torno das mudanças climáticas e, consequentemente, de possíveis diminuições da produção de alimentos. Associado a isto, um segundo fato para reciclar o discurso da escassez, em uma reedição piorada da tese Malthus , foi de a população mundial ter atingido 7 bilhões de pessoas no final de 2011 e a previsão de sermos 9 bilhões em 2050. A Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura - FAO publicou estimativas de que seria necessário dobrar a produção mundial de alimentos para alimentar essa população, sem qualquer referência ao desperdício, à má distribuição da produção atual de alimentos, etc.

Agora, no caso brasileiro, essas narrativas da escassez e da demanda crescente de alimentos em nível mundial retroalimentam a lógica — insustentável ou perversa tanto no sentido econômico como ambiental — de crescimento econômico ou, ao menos, equilíbrio na balança comercial, de produção monocultora de commodities (ou seja, matérias-primas!) agrícolas e não agrícolas para exportação. Este discurso fortalece o grande agronegócio exportador e, por outro lado, procura deslegitimar, entre outras consequências, a produção familiar de alimentos. A pequena produção não só no Brasil — onde é responsável pela produção de dois terços de tudo que consumimos —, mas em nível mundial, é responsável pela produção de alimentos. De acordo com dados da FAO, 90% dos alimentos são consumidos em um raio de não mais que 150 quilômetros de onde são produzidos, revelando a importância da produção local.

 

IHU On-Line - Como se apresenta o atual quadro mundial de produção e consumo de alimentos?

Sérgio Sauer - Por diversos fatores, especialmente devido à escassez de água — infelizmente, neste caso não é só discurso —, há desafios a serem enfrentados na produção de alimentos. No entanto, é fundamental não cair no discurso fácil do produtivismo, ou da renovação da tese malthusiana, e sim pensar o sistema alimentar mundial. O principal desafio hoje não é de produção, mas é primeiro de acesso aos alimentos. Aliás, continua sendo um desafio, mas não é nenhuma novidade. O não acesso — por diferentes razões, mas especialmente a falta de condições financeiras para comprar — é um problema histórico que explica a fome no mundo. A simples equação entre produção de alimentos, excesso de consumo — uma condição dos países e das classes ricas — e não acesso torna o fenômeno da fome no mundo uma excrecência! Nas atuais condições, a fome no mundo é uma vergonha que não tem nenhuma justificativa possível.

No entanto, hoje, o histórico problema do não acesso aos alimentos não está só. Está intimamente associado ao desperdício de alimentos. Pesquisas recentes afirmando que 50% de tudo o que é produzido de alimentos no mundo é desperdiçado levantam uma questão sobre a segurança alimentar que desloca completamente a preocupação com a produção. Segundo esta pesquisa, há diferentes razões para o desperdício que vão de problemas na estocagem até refugo, porque a aparência não é perfeita. O importante, no entanto, é reconhecer o problema do desperdício, inclusive porque afeta não só a alimentação, ou o problema social da fome, mas a própria lógica de produção.

 

IHU On-Line – Como a questão da alimentação se tornou uma problemática de âmbito mundial que abarca aspectos não só da agricultura, mas da economia, da política e do meio ambiente?

Sérgio Sauer - Não há qualquer dúvida de que o tema da segurança alimentar — com todos os diferentes significados e conotações ao tema — voltou para a pauta da política mundial. Há vários sinais disso, como, por exemplo, as preocupações das Nações Unidas, especialmente a partir do crescimento assustador dos preços dos alimentos em 2008 (e novamente no final de 2011), que resultaram na reformulação do Conselho de Segurança Alimentar, o qual está ganhando visibilidade impressionante. No entanto, é importante entender que há uma grande distância entre estar na pauta política e formular soluções socialmente sustentáveis. Aliás, infelizmente até se pode colocar esta preocupação como parte das narrativas da escassez, conforme conversamos antes.

Em todos os casos, uma das principais causas para o tema voltar à pauta foi justamente essa "crise alimentar" de 2008. Não foi uma crise no sentido de escassez, mas de alta dos preços, que os países importadores sentiram fortemente. Esta alta teve várias razões, as quais vão da especulação — há um processo crescente de financeirização do setor — ao crescimento da demanda de matérias-primas para a produção de agrocombustíveis; o caso do preço do milho, devido à produção de etanol nos Estados Unidos, foi o mais evidente, mas não o único.

Conforme já mencionado anteriormente, os estudos e as previsões sobre mudanças climáticas são outro elemento importante, ou seja, estabelece uma relação direta entre o meio ambiente e a produção/disponibilidade de alimentos. É importante não cair no discurso da escassez, mas também é preciso pensar que os processos de degradação e contaminação dos solos, de escassez de água — seja pela contaminação de rios e nascentes, seja por mudanças nos ciclos de chuvas — influenciam a produção. Estes devem ser encarados como desafios, e as soluções não estão no atual modelo de desenvolvimento agrícola, que é predatório e insustentável.

 

IHU On-Line – Como vê o papel do governo brasileiro, que se intitula de esquerda, em relação ao Programa Nacional de Sementes e as escolhas entre sementes transgênicas e sementes crioulas?

Sérgio Sauer - As ações governamentais brasileiras são essencialmente contraditórias, pois de um lado criam — diga-se de passagem, devido a muita pressão social — iniciativas interessantes, e de outro superdimensionam e supervalorizam o agronegócio e a atual lógica predatória. Alguns programas — o de sementes, mas também o Programa de Aquisição de Alimentos — são extremamente interessantes, mas insuficientes e provavelmente insustentáveis em um contexto em que dominam práticas monocultoras e contaminantes (transgênicos, uso excessivo de venenos, etc.). 

Para os produtores familiares, o domínio das sementes, portanto o controle de um dos principais mecanismos de produção, é fundamental. Nesse contexto, um programa que permite ou possibilita a troca de sementes deve ser valorizado, mas não pode ser descolado de outros como a assistência técnica, o crédito (de incentivo à produção e conservação de sementes) e a pesquisa, o que não acontece no Brasil. O Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar - Pronaf, por exemplo, principal instrumento de acesso ao crédito, financia atividades típicas do pacote tecnológico dominante na agricultura familiar. 

 

IHU On-Line – Qual é a avaliação do senhor em relação à Reforma Agrária no Brasil?

Sérgio Sauer - Neste momento não há muito que dizer ou avaliar. Não tivemos nenhuma desapropriação, ou melhor, nenhum decreto desapropriatório publicado até o momento. Há uma clara opção política do Governo Dilma por outras políticas, inclusive as de incentivo ao agronegócio, portanto não há o que avaliar. As promessas de publicar 100 decretos ainda em 2013 devem ser analisadas apenas como promessas.

 

IHU On-Line – Considerando o cenário brasileiro, é possível o sustento dos pequenos produtores sem que eles entrem na engrenagem da produção de alimentos geneticamente modificados? Quais são as alternativas?

Sérgio Sauer - Como mencionei acima, mesmo a produção de soja convencional hoje tem um nicho que remunera, em média, oito reais a mais por saca de 60 quilos. Em outras palavras, economicamente falando, é possível produzir e sobreviver fora deste pacote transgênico. No entanto, a contaminação é o problema. Vários pesquisadores afirmam categoricamente que não é possível produzir, cultivar sementes não transgênicas com as atuais regras de separação. Os níveis de contaminação são muito elevados, o que prejudica quem não produz transgênicos.

Por outro lado, as iniciativas agroecológicas e orgânicas mostram caminhos e outras possibilidades. Isso não só do ponto de vista econômico — no sentido de abarcar nichos de mercado que pagam mais por produtos limpos —, mas também no sentido de uma produção familiar econômica, social e ambientalmente sustentável.

 

IHU On-Line – Quais são os desafios postos à agricultura brasileira tendo em vista que ao menos metade dos alimentos produzidos no território nacional possui sementes geneticamente modificadas (segundo relatório da FAO)? É possível mudar para uma situação de não utilização dos transgênicos? Que medidas devem ser adotadas?

Sérgio Sauer - Conforme já mencionado, dois desafios imediatos e importantes são a falta de sementes convencionais — quem quer produzir sem transgênicos não consegue por falta de sementes — e os problemas de contaminação (não é possível a convivência de sementes convencionais sem que haja a contaminação pela semente transgênica). Agora, o modelo agropecuário dominante, em que os transgênicos são apenas uma parte, é o grande desafio. A produção monocultora, em grandes áreas para exportação, não é sustentável; não é social nem politicamente justa, portanto o desafio não se reduz a uma simples volta às sementes convencionais. 

Nesse contexto entrariam as ações de reforma agrária, não só para repartir as propriedades improdutivas (apenas um dos quatro critérios da função social), mas para fazer cumprir os demais critérios da função social, segundo a Constituição Federal, como, por exemplo, o respeito ao meio ambiente. Mas isto não tem implicações apenas econômicas ou sociais, mas profundamente políticas, o que justifica o presente imobilismo governamental nas ações de reforma agrária. 

Ao defender ações de reforma agrária, é importante não reduzir então ao acesso à terra. É um fator fundamental, mas deve ser acompanhado de políticas condizentes, como o incentivo à produção agroecológica. Nesse sentido, o Plano Nacional de Agroecologia e Produção Orgânica - Planapo é só mais uma promessa. Esperamos que ele possa se transformar em práticas, portanto, em uma medida estruturante da agricultura brasileira.

 

Leia mais...

- Ações de criminalização mostram o autoritarismo das instituições. Entrevista com Sérgio Sauer publicada na Edição 266, de 28-07-2008, da Revista IHU On-Line.

- Limitar a propriedade é democratizar o campo e a sociedade. Entrevista com Sérgio Sauer publicada na Edição 339, de 16-08-2010, da Revista IHU On-Line.

- Código da Mineração: "Os resultados podem ser desastrosos". Entrevista com Sérgio Sauer publicada nas Notícias do Dia, de 20-11-2012, no sítio do Instituto Humanitas Unisinos – IHU.

Últimas edições

  • Edição 552

    Zooliteratura. A virada animal e vegetal contra o antropocentrismo

    Ver edição
  • Edição 551

    Modernismos. A fratura entre a modernidade artística e social no Brasil

    Ver edição
  • Edição 550

    Metaverso. A experiência humana sob outros horizontes

    Ver edição