Edição 431 | 04 Novembro 2013

A pós-colonialidade potencializa a democracia

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Luciano Gallas / Tradução: André Langer

Eduardo Mendieta aborda a invenção da América Latina no processo colonial, os movimentos de libertação do continente e a construção da história pelos próprios latino-americanos

“Eu diria que a pós-colonialidade é uma desconstrução de um cronótopo — uma forma de configurar o tempo — que foi configurado e desenhado pelo eurocentrismo. A modernidade é um cronótopo [...]. A crítica pós-colonial desmantela e desafia este mapa da temporalidade”, afirma Eduardo Mendieta, para quem “a pós-colonialidade potencializa a democracia de forma tal que não vimos até agora, porque esta esteve sequestrada por uma temporalidade colonial e imperial”. Para o filósofo, em uma democracia, o “povo” deve ser capaz de viver de acordo com as promessas que fez para si. É desse modo que a democracia estaria relacionada com a questão da temporalidade.

Nesta entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line, Mendieta enfatiza que o racionalismo foi uma conquista de toda a humanidade, não estando associado a um local específico, a determinada época ou apenas a uma cultura. Na verdade, estaria associado às lutas contra todas as formas de poder — militar, político, econômico, religioso — e de violências. Assim, o filósofo enumera as raízes deste racionalismo em quatro dimensões: o judaísmo, a filosofia grega, a política filosófica romana e o racionalismo cristão, que seria uma espécie de síntese dos demais. “A crítica ao eurocentrismo e à ‘provincialização’ da Europa tornaram-se possíveis graças ao próprio racionalismo, que não é propriedade de nenhuma cultura. Sim, houve uma apropriação do racionalismo como tal pela Europa, mas também pela China, pela Índia, pela África, etc. Além disso, há elementos do racionalismo europeu que foram contribuições das Américas”, pondera.

Eduardo Mendieta é colombiano, possui doutorado em Filosofia pela New School For Social Research, Estados Unidos, e realizou pós-doutorado na Universidade Goethe, na Alemanha, quando trabalhou com Jürgen Habermas. Atualmente, é professor na Stony Brook University, Estados Unidos, onde exerce também o cargo de diretor do Departamento de Filosofia. Mendieta editou e traduziu do espanhol para o inglês as obras de Enrique Dussel, além de editar e traduzir do alemão para o inglês os estudos do filósofo Karl-Otto Apel. Ao longo dos últimos anos, também editou cerca de uma dúzia de livros sobre a Escola de Frankfurt, a filosofia latino-americana contemporânea e questões relacionadas à religião e à globalização. Sua obra mais recente é Global Fragments: Globalizations, Latin Americanisms, and Critical Theory (Albany: Suny, 2007). Além disso, está finalizando um livro sobre filosofia e guerra intitulado Philosophy's War: Nomos, Topos, Polemos.

Confira a entrevista.

 

IHU On-Line – Fale dos fragmentos que compõem o mundo global de hoje, construído sob a hegemonia do pensamento racional eurocêntrico. A sociedade ocidental é um produto da globalização?

Eduardo Mendieta – Quando falo de “fragmentos globais” quero apresentar uma imagem dialética, para utilizar um termo cunhado por Walter Benjamin . Tento, com esta imagem, elaborar algo como uma alegoria do pensamento que nos motiva a enfrentar a condição humana contemporânea. A expressão, além disso, tem algo de oximorônico . De fato, vivemos em tempos de globalização, ou seja, uma época em que conseguimos níveis inesperados de integração econômica, política, cultural e inclusive de imaginários utópicos, mas, simultaneamente, e como seu reverso ou a contraface de Janus , vivemos em tempos de exclusões e, diria com Saskia Sassen , de “expulsões” tanto cruéis como sistemáticas. O mundo é uno, mas ao mesmo tempo é uma coleção de fragmentos de regiões, povos, culturas que sofrem desproporcionadamente os processos da “globalização”. Isto de um lado.

No entanto, gostaria de esclarecer que eu não acredito nem defendo a ideia de que a globalização foi o resultado da “hegemonia do pensamento racional eurocêntrico”. Primeiro, porque a globalização é o resultado de muitos processos sociais, políticos, econômicos e culturais. Creio que existe algo que se pode chamar de “pensamento eurocêntrico” e que este está relacionado à hegemonia da Europa, mas não são a mesma coisa. Como materialista histórico, creio que as ideias dominantes refletem o domínio político-econômico social de classes e potências imperiais e neoimperiais. É por esta razão que no meu trabalho filosófico procuro assiduamente apresentar tipologias de teorias da globalização para assim poder distinguir entre essas que são projeções ideológicas e aquelas que se autocriticam e tratam de inocular-se de paroquialismo e chauvinismo.

Segundo, esta formulação me incomoda porque sugere que o racionalismo está implicado com certo tipo de dominação e com o eurocentrismo, o que certamente viola o espírito do racionalismo. O racionalismo foi uma conquista civilizadora da humanidade. De fato, o racionalismo é um projeto de humanização, teve muitas fases e foi possível graças a muitas lutas e revoluções: desde as guerras de resistência dos helênicos contra Xerxes , as lutas contra reis, as lutas de emancipação, as lutas democráticas e revolucionárias dos três últimos séculos, até as lutas mais recentes contra o genocídio. Além disso, diria que o racionalismo não é propriamente uma doutrina ou dogma ideológico, mas antes uma atitude da razão com respeito a si mesma. Diria que o racionalismo é como uma ortopráxis do logos e quaisquer formas de “ismos” — quer sejam eurocentrismo, nacionalismo, imperialismo, racismo, sexismo, etc. — são deformações e traições da razão.

Meu trabalho, que está inspirado no pensamento de muitos pensadores latino-americanos, desde Darcy Ribeiro , Fals Borda , Paulo Freire , até mais recentemente Aníbal Quijano  e Enrique Dussel , trata de elaborar uma concepção da razão como um projeto “global” — da pluriversalidade da razão. A razão como ágora de razões é sempre um projeto e uma conquista. A razão não é unívoca, mas plurivocal. Esta concepção da plurivocidade da razão está intimamente ligada ao projeto do racionalismo. E este está, por sua vez, ligado a uma crítica de uma concepção do Ocidente como autóctone, como partenogênico, como resultado de dinâmicas somente internas. Como a pergunta bem coloca, “o Ocidente é fruto da globalização”, assim como foi também a “América Latina” e a “África” — o Ocidente, como a Vênus que nasce da cabeça de Zeus, é uma distorção ideológica, que é catalisada por uma recusa e um desmentir de como o próprio Ocidente tomou, aprendeu, roubou, negociou, de tantas culturas. Neste sentido, o “Ocidente” é um fragmento da globalização denegada.

 

IHU On-Line – O moderno racionalismo ocidental cumpriu a promessa da salvação da humanidade?

Eduardo Mendieta – A formulação dessa pergunta é bastante interessante e provocante. De novo, quero realçar que o racionalismo é uma conquista da humanidade inteira. Tem suas origens no pensamento egípcio, anterior aos gregos, tem origens nas costas do que atualmente é a Turquia e, claro, tem raízes profundas no pensamento de Lao Tsé  e Confúcio , assim como também no racionalismo dos pensadores árabes que preservaram o racionalismo grego durante a Idade Média europeia. O racionalismo, portanto, não é propriedade exclusiva de uma cultura ou civilização. No entanto, há inflexões ou sabores do racionalismo.

O racionalismo ocidental tem um caráter específico, dada a dinâmica do desenvolvimento do ocidente. Primeiro, é preciso ter presente que as raízes deste racionalismo são ao menos quatro: o judaísmo, a filosofia grega, a política filosófica dos romanos e, claro, a síntese destes no racionalismo cristão. Segundo, com a cristianização do império romano surge o que Pierre Manet  chamou de paradoxo “teo-político”, que expressa o conflito entre o domínio de Deus e as fontes do poder político em geral. Este é o problema da autoridade legítima. O racionalismo ocidental está marcado por esta luta entre os poderes teocráticos e a legitimação do poder político com e contra a autoridade religiosa. Terceiro, o racionalismo ocidental também está marcado pelo que poderíamos chamar de imperativo da autenticidade espiritual, que está no centro do cristianismo. A fidelidade à razão é expressão da fidelidade à nossa fé — devo mencionar apenas Agostinho  e Kierkegaard , mas também Sóror Juana Inês de la Cruz  e Bartolomé de las Casas , para personificar esta fidelidade à razão como um tipo de confissão espiritual. Quarto, este racionalismo está indelevelmente marcado pelo Iluminismo dos séculos XVII e XVIII, que foi tanto um movimento cultural como social, político e econômico. A luta das burguesias nascentes contra os privilégios estabelecidos da nobreza e do clero. As lutas teóricas e os debates filosóficos dos filósofos do Iluminismo estavam estreitamente ligados às lutas por direitos e pela liberdade política.

O racionalismo ocidental, portanto, tem algo de peculiar: a razão como projeto está ligada à autonomia política. Ou seja, a autonomia racional é a outra face da autonomia política. Por isso, e como Habermas  demonstrou em seu livro Mudança estrutural da esfera pública (Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1984), a autonomia racional e a liberdade política demandavam a criação de espaços públicos para a deliberação e a geração de um consenso racional. Por isso, diria que o racionalismo ocidental pensa a razão como algo fundamentalmente público. Com Habermas, falaria da publicidade, ou melhor, da franqueza e da abertura da razão. Finalmente, e antes que perca a conta dos meus pontos, este racionalismo também está marcado pela dependência entre o avanço tecnológico e a pesquisa científica desinteressada, neutra e desapaixonada.

Com isto posso responder à segunda parte da pergunta. Creio que o racionalismo tout court melhorou a situação da humanidade. Como disse anteriormente, o racionalismo é um projeto de humanização. Salvou a humanidade? A salvação é uma categoria teológico-religiosa. Ao menos para o cristianismo, a salvação depende da graça divina e faz parte do que na teologia se chama história divina ou o plano de salvação. No entanto, a mente de Deus é inescrutável para os mortais e só podemos captar algumas indicações do que este plano de salvação pode implicar. Não obstante, afirmaria que o racionalismo “salvou” algo da noção religiosa da salvação, e diria que a noção de que a história tem coerência ou um sentido moral. Para o racionalismo, o sentido racional da história não é só um princípio hermenêutico, mas também, e principalmente, um imperativo categórico: age de tal forma que o que fizeres contribuirá para o sentido racional da história humana. Neste sentido kantiano, diria que a humanidade foi humanizada por sua fidelidade à razão. A razão, como projeto, é a piedade da humanidade à sua humanidade inacabada. Aqui gostaria de invocar Ernst Bloch , esse grande pensador da utopia e da esperança, para falar antes do Humanum, e não da humanidade. O Humanum é um lugar utópico, não inatingível, mas um “contrafático” que nos guia na ortopedia da humanidade.

 

IHU On-Line – Qual é a medida do alcance social e cultural da globalização?

Eduardo Mendieta – Creio que a resposta mais responsável seria dizer que o alcance social e cultural da globalização é incalculável, ao menos no momento, não apenas porque a globalização é algo que continua, mas também porque só poderíamos fazer o balanço final quando entrarmos em outra etapa da evolução social da humanidade. Esta resposta responsável, sem dúvida, não é interessante. É evidente e afirma o que todos podemos notar. E o evidente não nos convida a pensar. Penso que a globalização pode ser comparada àquilo que Karl Jaspers  chamou de Achsenzeit . Por exemplo, o discurso dos direitos humanos, que faz parte da globalização, criou um novo nível de autorreflexão política que supera o pensamento que estava ligado à nação e inclusive a projetos imperiais. Ao mesmo tempo, o discurso dos direitos humanos, assim como o discurso dos direitos do cidadão, catalisou processos de institucionalização destes direitos como demandas. Por isso temos, atualmente, a Corte Penal Internacional  e temos processos jurídicos de personagens que cometeram crimes contra a humanidade. Ao mesmo tempo, surgiu uma pletora de ONGs que advogam e fazem demandas em nome de muitos grupos que sofrem violação da sua dignidade e direitos humanos.

Há outro exemplo que para mim é também muito importante, este de que a globalização originou uma nova consciência em relação à mulher — isto é, toda a problemática de gênero. Se observarmos a história da humanidade, ao menos aquela que se preservou em documentos de todo tipo, vamos perceber que, em sua grande maioria, foi uma história da subordinação da mulher: a mulher como propriedade, como um menor que requer o nosso paternalismo, a mulher como objeto de sexualidade, etc. Depois das lutas dos dois últimos séculos, lutas das mulheres pelos seus direitos, conseguimos uma consciência que é aceita globalmente, embora não de fato implementada faticamente, que diz que a mulher é igual ao homem e que a mulher tem sua dignidade própria que não está subordinada a nada e a ninguém. Creio que algo similar aconteceu com a consciência ecológica do mundo. A fragilidade do planeta com a crescente consciência de que os seres humanos são os principais causadores da crise ecológica, são também partes da globalização. Eu falo, em meu trabalho, em globalização de baixo para cima, em contraste com a globalização de cima para baixo. Os direitos humanos, o respeito às mulheres, a luta contra “o aquecimento global” são lutas de baixo para cima e conseguiram uma globalização a partir do “reverso da história”.

 

IHU On-Line – A organização do mundo é uma construção (e divisão) geopolítica, com a reserva territorial dos centros de decisão. Qual é o impacto do projeto hegemônico sobre a vida humana nas regiões da periferia destes centros e na interpretação do seu papel no mundo?

Eduardo Mendieta – A divisão contemporânea do mundo, de acordo com os desenhos geopolíticos, como disse Walter Mignolo , dos centros e metrópoles hegemônicos, sempre teve uma função instrumental, inclusive quando mascarada com os mantos sacralizados da evangelização, da civilização e da defesa da democracia. Toda forma de dominação imperial tem metas de controle cujo balanço é sempre o balanço do seu enriquecimento. Nada torna isto mais evidente do que a forma como o mundo está configurado hoje. A globalização e sua dimensão geopolítica tem uma face brutal, que é o empobrecimento e a penúria de milhões de pessoas brutalmente expulsas dos benefícios obtidos pela globalização. Já há meio século falamos do “desenvolvimento do subdesenvolvimento” como consequência da colonização e do neoimperialismo. A globalização foi facilitada pela transferência de riquezas do Sul para o Norte e pela estruturação das relações internacionais ao redor da primazia dos interesses dos centros metropolitanos e imperiais. A globalização de cima para baixo, para retomar a linguagem que introduzi anteriormente, é parcialmente a imposição de certas condições de intercâmbio internacional que beneficiam os centros hegemônicos e neoimperiais — por exemplo, todos os acordos de comércio do último século, como também a política financeira do Banco Mundial.

O desenvolvimento de um novo credo político, o neoliberalismo, que impôs uma quantidade de medidas de austeridade fiscal de países em desenvolvimento, foi imposto para beneficiar os centros metropolitanos. Trata-se de impor a nova política de diminuição da produção de hidrocarbonetos, por exemplo, mais severamente sobre os países em desenvolvimento do que sobre os países que são os principais produtores da poluição. A precariedade ecológica, como se sabe, tem efeitos mais severos e evidentes em países em desenvolvimento, exatamente pelo “desenvolvimento do subdesenvolvimento”. Os conflitos militares no Oriente Médio são inexplicáveis sem a intervenção neoimperial europeia e norte-americana do último século. Devemos especificar que muitos dos conflitos nacionais, por exemplo, dos fundamentalismos armados (Al Qaeda e outros muitos similares) devem ser analisados como atavismos resultantes de processos de secularização distorcida. Os nacionalismos religiosos são formas compensatórias de desafiar o imperialismo e de afirmar a autonomia cultural e política — claro, em formas violentas e também ilegítimas.

Não quero perder o fio da pergunta. Cada época tem um índice que ilumina sua contradição mais profunda. Para a nossa época, é a expulsão massiva de milhões de seres humanos do acesso aos benefícios que estão ao seu alcance e que são patrocínio coletivo da humanidade global. A globalização produziu uma afluência que é ilegitimamente apropriada, ao mesmo tempo que é expropriada da maior parte da humanidade. É neste sentido que falei de fragmentos globais — como ilhas de destituição e penúria que são excluídas dos mapas geopolíticos das potências neoimperiais.

 

IHU On-Line – O espaço da América Latina no projeto hegemônico global é o espaço da memória do sofrimento imposto pela colonização?

Eduardo Mendieta – A América Latina começou como um projeto imperial, sem dúvida. A América Latina foi inventada, assim como foi a “América”, no sentido que Zavala  e Zea  — dois mexicanos — documentaram amplamente. Adicionalmente, como o filósofo espanhol Eduardo Subirats , argumento que a “América” foi inventada como um continente vazio — sem história, sem cultura, como uma tabula rasa na qual a Europa escreveria sua história —, como pretendia tanto Hegel  como Locke . Locke, em seus Dois Tratados sobre o Governo, disse que “no princípio o mundo foi como a América”. Para Hobbes , o princípio foi algo fundido nos anais da história da humanidade, o suposto estado de natureza no qual somos todos lobos lutando contra todos, em uma guerra sem trégua e sem perdão.

A origem da ordem política, para Hobbes, nasce da possibilidade da violência sem freios e fronteiras. O estado de natureza é uma guerra perpétua de todos contra todos. Para Locke, muito chamativamente, a origem da ordem política é comparada ao estado, não mítico, mas histórico, da “América”. O princípio da ordem política é a apropriação das terras de outros e a oclusão ou ocultamento do outro, como disse Dussel. Este processo e seu rechaço é a impossibilidade de ocultar o outro, pois o outro rechaça ser exterminado, faz parte do que eu chamo de educação do “senhor” pelo “escravo”. Esta é uma pedagogia da resistência e da libertação, para falar com Freire. Se houve “cosmopolitismo”, é porque o senhor imperial foi educado por seu escravo.

Então, o projeto de escrever uma história prístina e pura foi desafiado e truncado pela resistência do sujeito colonial. Esta não é a ocasião para repassar o que aprendemos tão bem de Darcy Ribeiro e Gérman Arciniegas , mas também de Eduardo Galeano . Menciono Galeano porque sua trilogia Memória do Fogo, assim como também seu clássico As veias abertas da América Latina, nos recordam que a América Latina é de fato, como disse, um espaço de memória, e que memória! — forjada no fogo da dor e do sofrimento, mas também de vitórias: a libertação do jugo colonial, a emancipação da escravidão mental e o desenvolvimento de uma cultura que tem como imperativo a elevação do humano a novos pedestais de dignidade. A cultura e as instituições políticas latino-americanas herdam as lutas do Iluminismo europeu, mas também a apreciação e a integração do africano e do indígena.

Os latino-americanos, na maioria, são orgulhosos de ser mestiços e mulatos, crioulos nascidos em outra pátria, que lhes deu abrigo. Somos filhos de La Malinche , mas também dos desterrados que adotaram a cultura das Américas. Os latino-americanos são híbridos, mestiços, cósmicos; são cosmopolitas em sua cultura, em suas instituições e em sua aparência. Se a América Latina é um espaço de anamnesis, da memoria pasionis da história como plataforma do verdugo, também é um espaço de memória do fogo da resistência criadora que sofre, mas forja, inaugura e projeta. A América Latina foi, de fato, inventada entre os séculos XVI e XVIII, mas depois libertada e converteu-se, nos últimos séculos, em seu próprio projeto, em sua própria criação. Creio que, por exemplo, o último século e meio de criação da América Latina pela própria Latino-América é chamativo e instrutivo.

A América Latina empreendeu um processo de pedagogia política que deve servir de modelo para outros países e culturas. As transformações políticas em Cuba, Venezuela, Bolívia, Equador e Brasil são profundamente ilustrativas do que chamaria de gênio cívico latino-americano. Digo cívico em dois sentidos. Primeiro, no sentido da integração e constituição de cidadãos a partir de quem era meramente súdito, escravo, e não entidade política. E, segundo, de uma aptidão e sabor pelo cívico, no sentido da civitas, da cidade. A América Latina é uma área do planeta onde temos alguns dos maiores níveis de urbanização. Este processo tomou lugar rapidamente, precipitadamente, o que claramente representou muitos desafios. Mas há práticas de urbanização que são exclusivas da América Latina. Penso, portanto, que o gênio cívico latino-americano tem estas duas faces: integração a um projeto e integração a uma polis, que facilita e demanda a agência política dos sujeitos cidadãos.

Adicionalmente, creio que a experiência latino-americana dos últimos 50 anos é exemplar de um processo de inovação política e de articulação de um imaginário cívico que transcende os modelos da cidadania articulados pela Europa e pelos Estados Unidos. Penso aqui, por exemplo, no trabalho do Subcomandante Marcos , não apenas como articulador do pensamento zapatista, mas também como um poeta da nova política. Creio que os escritos, tanto as declarações dos zapatistas como muitos dos comunicados, como os contos de Durito, são, na realidade, contribuições para uma nova linguagem política e a projeção de um novo imaginário político e latino-americano. Creio que, eventualmente, os escritos de Marcos serão reconhecidos como uma contribuição para a literatura latino-americana e a prosa política do século XX. Seus livros serão colocados ao lado dos de Mariátegui , Martí , Che Guevara , Menchú , Arciniegas e Galeano... para mencionar alguns que me vêm à memória.

 

IHU On-Line – Como entender a transformação da herança colonial em beleza por parte da arte latino-americana?

Eduardo Mendieta – A arte latino-americana é, talvez, uma das melhores ilustrações de por que os processos de colonização, de independência e do que foi chamado, por Aníbal Quijano, de “colonialidade do poder” não foram apenas processos de pilhagem e destruição. A colonização foi também resistência, apropriação e transformação. O barroco colonial latino-americano, por exemplo, é um barroco singular e único em relação ao barroco europeu. Há, na realidade, uma originalidade que não é simplesmente adoção de padrões estéticos europeus e coloniais. De fato, no meio mesmo da conquista e da colônia, os povos americanos se afirmaram artisticamente. Além disso, devemos lembrar duas coisas. Que as próprias línguas europeias foram enriquecidas pela infusão de linguagens indígenas e de que o imaginário europeu sofreu uma expansão com o contato da beleza, da geografia, da arte e da música das Américas. Por exemplo, o grande historiador da cultura e da literatura latino-americana, Pedro Henríquez Ureña, documentou como o espanhol foi colonizado pelas linguagens indígenas e como a pintura europeia se transformou com a introdução da fauna e da flora das Américas.

A criatividade artística latino-americana, em geral, é surpreendente. Não há século, desde a conquista, em que não houve contribuições de primeiro nível e que se converteram em padrões únicos, que se apresentam ao mundo como testemunhos de uma criatividade que se eleva para além da reivindicação do Caliban . Por exemplo, os muralistas do princípio do século XX são artistas que respondem a uma situação única. O trabalho de um Diego Rivera  e um David Siqueiros transcende a experiência de colonialidade. O trabalho de Frida Kahlo , similarmente, tem uma ressonância que vai além de exibir o estigma da colonialidade. Finalmente, diria que a literatura latino-americana, especialmente a dos séculos XIX e XX, pode ser lida como a declaração de um imaginário emancipado e comprometido com a articulação de uma experiência que é singular. O romance latino-americano porta a voz do espanhol e do português nos dois últimos séculos, ou melhor, desta literatura onde estas duas línguas se nutrem e se regeneram. De fato, estas linguagens coloniais vivem mais na América Latina que na Europa. Aqui me lembro de um debate entre George Steiner  e Salman Rushdie , sobre se o romance havia chegado à sua morte, se havia se exaurido como forma de literatura. Rushdie eloquentemente demonstrou que o gênero do romance está tão vital como nos grandes momentos do romance latino-americano. Note-se, por exemplo, o impacto do trabalho de um Bolaño . Tenho que mencionar o último livro de Carlos Fuentes , La gran novela latinoamericana, que é um trabalho que oferece um dos mais detalhados mapas da literatura latino-americana, articulando os princípios que a tornaram tão produtiva.

 

IHU On-Line – A possibilidade de uma ruptura com a tradição eurocêntrica do racionalismo ocidental centra-se no conceito de uma nova consciência global? Uma nova ética se desprende disso?

Eduardo Mendieta – Eu diria que a crítica ao eurocentrismo e à própria “provincialização” da Europa tornou-se possível graças ao próprio racionalismo, que não é propriedade de nenhuma cultura. Sim, houve uma apropriação do racionalismo como tal pela Europa, mas também pela China, pela Índia, pela África, etc. Além disso, como dizia anteriormente, há elementos do racionalismo europeu que foram contribuições das Américas. Nomeio apenas os nomes de Arciniegas e Dussel para marcar esta contribuição. No entanto, concordo com a intuição que a pergunta desvela. De fato, desde os processos de descolonização da primeira metade do século XX até a emergência de movimentos como o Fórum Social Mundial, está se perfilando uma consciência que é simultaneamente global e cosmopolita. Não devemos nos esquecer de que o século XX foi a anulação da cultura europeia com seus genocídios e guerras mundiais. Mas não foi apenas o colapso moral da Europa que abriu a porta para uma nova consciência. As culturas globais se afirmavam propriamente e clamavam por seu respeito e sua contribuição para os processos de emancipação intelectual.

Nos meus trabalhos, eu distingo entre processos de globalização, a constituição de uma sociedade global e a consciência que lhe corresponde, que eu creio que deve ser chamada de cosmopolita. A consciência global reflete exclusivamente sobre a condição de globalidade, de que fática e irreversivelmente já vivemos em um mundo que está globalizado, onde os problemas de cada cultura e região são problemas globais que requerem soluções e organizações globais. O Estado nacional, com sua territorialidade atrelada à soberania política, converteu-se em desculpa tanto para nacionalismos xenofóbicos como para a obstrução do desenvolvimento de soluções regionais e globais. Isto de um lado. Por outro lado, falo de um cosmopolitismo dialógico em consciência autorreflexiva que toma a condição global como seu ponto de partida. Uso o termo cosmopolitismo dialógico para enfatizar precisamente a dimensão ética e política da nossa condição global e pós-colonial. Ao cosmopolitismo dialógico corresponde a maturidade cosmopolita: e esta demanda que pensamos desde a integridade das culturas do mundo, mas também desde a dignidade de cada ser humano. À maturidade cosmopolita pertence o imperativo de assegurar e expandir a ordem global dos direitos humanos.

Quero precisar esta formulação apelando a uma distinção que Ernst Bloch fez em seu livro Direito natural e dignidade humana, creio que um dos livros mais bonitos que já li. Ali Bloch diz algo como o que segue: há uma tradição de utopias sociais que tem como meta articular a eliminação da exploração, da opressão e da escravidão. Há outra tradição que está associada ao desenvolvimento da lei natural e que remonta aos sofistas e estoicos gregos. Esta tradição tem como meta articular a eliminação dessas condições que degradam, corrompem e viciam a dignidade humana. Para Bloch, uma requer a luta revolucionária; a outra, a demanda pelos direitos humanos. Ambas as tradições convergem na luta pela dignificação dos sujeitos políticos com seus direitos de cidadãos e os direitos humanos que não dependem dos anteriores. Por isso, diria que a ética sem direitos é vazia, e os direitos sem ética são cegos. A ética deve ter caninos, a menos que seja meramente um sermão domingueiro, pronunciado no púlpito da ineficácia. Há tanto uma ortopedia moral da humanidade quanto uma ortopedia legal da humanidade, e é isto que atestamos nas últimas seis décadas.

 

IHU On-Line – Quais são as possibilidades da democracia na sociedade pós-colonial?

Eduardo Mendieta – Diz-se que a democracia nasceu na Grécia, mas eu diria que a democracia nasce cada vez que um povo se determina a conseguir um projeto coletivo, pois a democracia é sempre a natalidade do coletivo. Nos últimos anos, empreendi o projeto de reler Hannah Arendt , que creio ser uma das filósofas e pensadoras da política mais originais e importantes de — e para — nosso tempo. O conceito chave para ela é o de “natalidade”. Este conceito refere-se a que os seres humanos estão marcados ontologicamente pelo fato de que nascem — são lançados em um mundo como um novo começo. Cada ser humano é a possibilidade de um novo começo. Para Arendt, o que determina o caráter do ser humano não é a morte, a ansiedade diante da finalidade da vida, mas, ao contrário, a ansiedade do novo. Somos liberdade, somos o nada da decisão, mas decidir é uma ruptura no tempo que desata a novidade, o novum. Neste sentido, temos algo parecido com Deus, no sentido de que introduzimos algo novo na criação do nada, ex nihilo. Cada vez que um ser humano age, decide, pensa, diz, algo novo surge, que cria uma cesura no mundo.

De fato, estou contemplando a ideia de que o pensamento de Arendt, como judia, é, no entanto, uma das interpretações e apropriações da noção judaico-cristã mais interessantes do Imago dei, da doutrina de que somos criados à imagem de Deus. Mas menciono isto por duas razões. Primeiro, porque, como disse, a democracia é a natalidade de um grupo que trata de conseguir algo depois de um processo de deliberação coletiva. Segundo, e isto é o mais relevante da sua pergunta, a democracia é um cronótopo, uma forma de criar e localizar o tempo. A democracia requer tempo e cria tempo. Para deliberar necessita-se de tempo, mas o resultado da deliberação cria tempo, o tempo de um coletivo que se autoidentifica como um “nós”, o nós daqueles que decidiram coletivamente ser sujeitos de suas decisões. Permitam-me elaborar esta ideia um pouco melhor. A autonomia moral, que é a fonte da nossa dignidade e que é inviolável e inalienável, é de fato uma temporização. Ser autônomo é a produção de um sujeito moral no tempo. É isto que Nietzsche  esclarecia em Para a Genealogia da Moral, quando dizia que, para ser moral, requer-se que sejamos calculáveis, que possamos antecipar as ações dos outros. Ser moral é poder fazer promessas e poder cumpri-las. A democracia é este fazer promessas e poder cumpri-las de um povo, mas ao mesmo tempo é a capacidade de um povo de viver de acordo com suas promessas para si. Espero que se veja como a democracia está relacionada com a temporalidade e, portanto, ao que Arendt chamou de natalidade e novidade.

Mas, desculpe-me, tudo isto é uma forma de circunavegar o miolo da pergunta, sobre a relação entre a pós-colonialidade e a democracia. Eu diria que a pós-colonialidade é uma desconstrução de um cronótopo — uma forma de configurar o tempo — que foi configurado e desenhado pelo eurocentrismo. A modernidade é um cronótopo, como escrevi em muitos lugares. Entretanto, a crítica pós-colonial desmantela e desafia este mapa da temporalidade, abre o horizonte à natalidade, à novidade de cada grupo coletivo. Para dizê-lo o mais breve possível, a pós-colonialidade potencializa a democracia de forma tal que não vimos até agora, porque esta esteve sequestrada por uma temporalidade colonial e imperial. Tudo isto, na minha opinião, é o que vivemos na América Latina com as interações democráticas na Venezuela, Bolívia, Equador e, claro, Brasil. Eu creio que, retrospectivamente, o século XXI será o século das democracias dos povos descolonizados e pós-coloniais. Basta pensar nas constituições escritas na América Latina no último século, verdadeiramente a produção de novas formas de agência política e, portanto, um novum político.

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