Edição 430 | 21 Outubro 2013

A tecnologia na ótica de Simondon

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Márcia Junges e Ricardo Machado

Ivan Domingues discute a centralidade da mecanologia como eixo de ligação entre as engenharias e as chamadas ciências básicas

Para o Prof. Dr. Ivan Domingues, “o pensamento de Simondon é um approach e a expressão de uma sensibilidade, com feelings e intuições nem sempre traduzíveis numa axiomática ou conduzindo a uma “logística”. No entanto, mais do que nenhum outro de seus contemporâneos, ele procurou trazer a lume a ratio da técnica, procurada a meio caminho da matemática, da engenharia e da arte, dando vazão à criação, à inventividade e ao design (tecno-design, como nos protótipos industriais, e virtualmente bio-designs)”, comenta, em entrevista por e-mail à IHU On-Line. Segundo o professor, a questão da mecanologia é central no pensamento de Simondo, porque é responsável por fazer a ligação entre as diversas áreas das engenharias e as chamadas ciências básicas. “Penso que o pensamento de Simondon é sumamente atual e nos oferece uma perspectiva em filosofia da tecnologia mais fecunda do que a do positivismo e da filosofia analítica, com sua inclinação de pensar a técnica como mera extensão da ciência”, avalia Domingues.

O Instituto Humanitas Unisinos - IHU recebe Ivan Domingues, no dia 24-10-2013, também para apresentar a conferência A filosofia da tecnologia de Simondon: a centralidade da mecanologia. O evento ocorre na sala Ignacio Ellacuría e Companheiros, às 19h30, e integra a programação do II Seminário em preparação ao  XIV Simpósio Internacional IHU – Revoluções tecnocientíficas, culturas, indivíduos e sociedades, cuja programação completa pode ser conferida em http://bit.ly/Simondon.

Confira a entrevista.

 

IHU On-Line - Quais são as proposições fundamentais da filosofia da tecnologia de Simondon ?

Ivan Domingues - Esta é uma questão difícil de responder: mais do que um sistema de proposições, o pensamento de Simondon é um approach e a expressão de uma sensibilidade, com feelings e intuições nem sempre traduzíveis numa axiomática ou conduzindo a uma “logística”. No entanto, mais do que nenhum outro de seus contemporâneos, ele procurou trazer a lume a ratio da técnica, procurada a meio caminho da matemática, da engenharia e da arte, dando vazão à criação, à inventividade e ao design (tecno-design, como nos protótipos industriais, e virtualmente bio-designs). É nesse quadro que aparece sua hipótese seminal, ressaltada por Vincent Bontems , segundo a qual “o progresso técnico tem suas próprias leis e aquilo que os usuários demandam não tem influência significativa sobre a evolução dos sistemas técnicos”. Ao desenvolver a hipótese, Simondon acrescenta mais dois outros conceitos axiais: a de correlação interna (quanto maior a correlação interna e a autorreferência nas seriações tecnológicas — motores a explosão, por exemplo —, tanto maior será a racionalidade) e a de concretização, perfazendo verdadeiras linhagens técnicas (vários tipos de motores: explosão, elétrico, turbina) e autorizando o estudioso a falar de linhas de evolução dos artefatos e sistemas tecnológicos no contexto econômico e industrial. Quem deu uma importante contribuição ao tema da concretização foi o norte-americano Andrew Feenberg , que proferiu uma conferência com igual título no Colóquio de Cérisy-la-Salle, promovido em agosto deste ano, em homenagem a Simondon.

 

IHU On-Line - Nesse sentido, qual é a centralidade da mecanologia em seu pensamento?

Ivan Domingues - A mecanologia é central pela simples razão de que a ela cabe fazer o link entre as diversas áreas das engenharias e as chamadas ciências básicas. A grande rival é a cibernética, ela mesma parte das engenharias, no entender de Simondon, dividida [a cibernética] entre as máquinas e os sistemas particulares, com seu pragmatismo e exposta às demandas e solicitações do mercado, como, aliás, todas as engenharias. Por isso, as engenharias e as cibernéticas não podem ser o fundamento da tecnologia, pois dela dependem e são suas beneficiárias. Já as ciências básicas, se é que essa expressão faz sentido, também não o podem, mas pelo motivo oposto, não por causa do seu pragmatismo, porém por conta de seu teoricismo e sua natureza abstrata, ao passo que a tecnologia é um conhecimento prático e fundado na ação: techne, savoir-faire e know-how. A preferência pelo vocábulo mecanologia aparece na famosa entrevista, em 1968, concedida a Jean Le Moyne, conhecido escritor, jornalista e político canadense da região de Québec. Antes, durante algum tempo, Simondon cortejou o termo alagmática, criado a partir do grego allatein = modificar e trocar, ressignificado como teoria geral das trocas e das mudanças de estados = ciência das operações, num sentido vizinho dos sistemas cibernéticos, como logo foi percebido, que de seu jeito visava às operações das máquinas, dos animais e dos seres humanos.

 

IHU On-Line - Qual é a atualidade de suas ideias tendo em vista o aprofundamento da técnica em nossas vidas?

Ivan Domingues - Penso que o pensamento de Simondon é sumamente atual e nos oferece uma perspectiva em filosofia da tecnologia mais fecunda do que a do positivismo e da filosofia analítica, com sua inclinação de pensar a técnica como mera extensão da ciência. Apoiados em Simondon, poderemos pensar tanto numa sócio-técnica quanto numa antropo-técnica, como viu Bruno Latour , que em matéria recente se reconhece devedor de sua obra. Porém, por mais fecundo que seja, o pensamento do filósofo francês tem limites. No plano da tecnologia tout court, ao apostar todas as fichas na autonomia e na autocorrelação interna da técnica, levando-o a trocar o paradigma do artesão pelo do engenheiro, ele terminou por dar poderes demais a este último e por afastar o usuário do destino e direcionamento da tecnologia: foi o que viu Feenberg que, com toda a sua simpatia pela obra de Simondon, propõe, com Marcuse, a bidimensionalidade da técnica e coloca o usuário no centro dos artefatos e sistemas tecnológicos, podendo até mesmo refuncionalizar os usos e as finalidades dos artefatos, como no caso do Minitel francês nos primórdios da informática, programado pelos engenheiros para ser uma extensão do telefone (tecnologia da informação) e depois reconvertido pelos usuários em tecnologia da comunicação. Outro limite importante da filosofia da tecnologia de Simondon é a ausência da ética, além da política, as quais ele deixou de lado, mas que hoje estão no centro das agendas e das preocupações, com o tema das regulações em linha de frente, levando os estudiosos a falar de racionalidade técnica e normativa, e não tão-só técnica e científica como queria Simondon.

 

IHU On-Line - Por outro lado, qual é a influência do ciberneticista Norbert Wiener  e a do tecnólogo Jacques Lafitte  em seus escritos?

Ivan Domingues - A obra de Simondon, certamente original, tem, não obstante, raízes profundas na cultura e no pensamento franceses, bem como apresenta importantes interfaces com outros pensadores fora do hexágono francês. Do lado da França, podem ser citados Leroi-Gourhan  e sua paleo-técnica, bem como Jacques Lafitte, o arquiteto (não confundir com o piloto de Fórmula 1) e seu importante livro Réflexions sur la science des machines. Fora da França, como você mesmo lembrou, o grande nome é Norbert Wiener e suas duas obras seminais no campo da cibernética — Cybernetics: Or Control and Communication in the Animal and the Machine (1948) e The Human Use of Human Beings (1950). No tocante às influências, pode-se dizer que a de Wiener era do tipo desafiadora e estava associada à cibernética, à chamada primeira cibernética, cujo approach das máquinas, e por extensão da técnica, foi acompanhado de perto por Simondon ao longo de toda a sua vida. No tocante à de Lafitte, a relação é de filiação, pode-se dizer, de quem Simondon herda até mesmo o termo mecanologia e a distinção das máquinas passivas, ativas e reflexas. Na minha conferência, vou tratar das conexões entre a cibernética e a mecanologia.

 

IHU On-Line - Em que sentido as ideias de Simondon nos ajudam a refletir sobre o pós-humano e o futuro da autonomia em nossa sociedade?

Ivan Domingues - Não creio que a mensagem de Simondon seja pós-humanista ou transumanista. Muitas de suas proposições têm que ver com o ideário de humanização da técnica, no qual é possível vislumbrar, além do desafio pessoal de vencer o fosso das duas culturas (a tecnológica e a humanística), o legado iluminista de uma grande confiança na razão e em seu poder de inventar e criar. Do fato de Simondon ter combatido as diferentes tecnofobias, não se segue que ele fosse um tecnófilo de estrita observância ou um tecnoprofeta entusiasmado. Sua ideia de progresso técnico, tendo como vetor a “concretização”, não o deixa de braços dados com aqueles estudiosos que patrocinam a visada da inovação industrial em termos de P&D  e de C&T&I . Em vez de patentes e business, a serviço do capitalismo, a tecnologia há de promover o bem-estar da humanidade, levando aos lares o conforto e a vida boa, bem como — por que não? — reparando órgãos e turbinando funções com a ajuda de próteses e instrumentos nas aplicações médicas e de outras sortes. Todavia, Simondon se ocupou muito pouco das biotecnologias e aplicações médicas. 

 

IHU On-Line - Por que Simondon ainda é um filósofo pouco estudado?

Ivan Domingues - Não me parece acertada a sua pergunta, ao menos no tocante à França. De fato, há nos meios franceses um revival do pensamento de Simondon. Exemplo disso foi o Colóquio Gilbert Simondon et l’invention du futur, que ocorreu num dos grandes templos da “alta cultura” francesa que é Cérisy-la-Salle, esplendidamente localizado num château na região da Normandia. O Colóquio durou 10 dias, em regime de imersão completa, entre os dias 05 e 15 de agosto último, e foi organizado por dois eminentes especialistas na obra do filósofo, Jean-Hugues Barthélemy  e Vincent Bontems. Recomendo aos leitores uma olhadela na programação do Colóquio , a qual pode ser facilmente encontrada na Internet. Quem o fizer, poderá constatar a grande riqueza do pensamento simondoniano nas dezenas de mesas e atividades a ele dedicadas — desde a filosofia da tecnologia, passando pela ciência da informação e a mecânica quântica, até a tecno-estética e a projeção de um filme sobre o filósofo. No tocante ao Brasil, o pensamento de Simondon vem sendo estudado na Universidade Federal de Minas Gerais - UFMG e na Universidade de São Paulo - USP em meu grupo de pesquisa, o Núcleo de Estudos do Pensamento Contemporâneo – Nepc, e no de Pablo Mariconda [Scientiae Studia]. Há dois anos fizemos na UFMG uma bela jornada consagrada à filosofia da tecnologia de Simondon e o resultado será publicado, em breve, num número especial da revista Scientiae Studia. 

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