Edição 430 | 21 Outubro 2013

Interpretações da obscuridade hegeliana

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Márcia Junges e Andriolli Costa/Tradução: Benno Dischinger

Daniel Brauer, pesquisador do Consejo Nacional de Investigaciones Científicas y Técnicas, critica as interpretações tradicionais de Hegel e defende a necessidade de compreender a filosofia hegeliana à luz de sua época

“A filosofia da história de Hegel se deu no marco de um cenário histórico-político que já não é o nosso”, reflete o sociólogo e filósofo Daniel Brauer. “Isto se mostra tanto nas importantes transformações que tiveram lugar na forma das sociedades contemporâneas como nas mudanças da autocompreensão da tarefa da filosofia”. Em entrevista concedida à IHU On-Line por e-mail, o pesquisador reforça que a aplicabilidade da filosofia hegeliana deve ser compreendida à luz de sua época, e que apropriações deste pensamento podem incorrer em visões distorcidas do pensamento do filósofo. “Depois de Auschwitz, defender a ideia de uma razão na história resulta impossível e monstruoso”, pondera.

O pesquisador critica as várias interpretações frequentemente atribuídas a Hegel, mas que para ele são apenas fruto de compreensão enviesada e do próprio obscurantismo da escrita do filósofo. É o que acontece com a teoria do Fim da História, por exemplo. A teoria sustenta que, quando a humanidade atingisse o equilíbrio, ocorreria o fim dos processos históricos — visto que estes são, sobretudo, processos de mudança. Para Brauer, esta visão se deu a partir da visão de outros autores, mas que contraria a própria filosofia hegeliana. Afinal, de acordo com o professor, é justamente o direito da história que é considerado por Hegel como “a forma suprema do direito e, portanto, da liberdade humana”.

Daniel Brauer é graduado em Sociologia e Filosofia pela Universidad de Buenos Aires e possui doutorado pela Universidade de Erlangen-Nürnberg. Atualmente é professor de Filosofia da História e da Metafísica na Universidad de Buenos Aires e pesquisador independente do Consejo Nacional de Investigaciones Científicas y Técnicas. Trabalha principalmente com a reinterpretação da filosofia hegeliana e com teoria da história. É autor de Dialética do tempo. Pesquisas sobre a Metafísica da História Universal em Hegel (Stuttgart: Frommann-Holzboog, 1982), ainda sem tradução para o português. 

Confira a entrevista.

 

IHU On-Line - Como podemos compreender Hegel depois do fim da história?

Daniel Brauer - A expressão “fim da história” não se encontra em Hegel. Trata-se de uma interpretação, a meu juízo, errônea, que se tornou popular a partir das aulas magistrais de Alexander Kojéve  acerca da Fenomenologia do Espírito, que marcaram mais de meio século da recepção de sua obra, particularmente na França. É esta interpretação que está na base do célebre artigo de Francis Fukuyama  acerca do fim da história, que o identifica com o advento definitivo e não modificado em seus traços principais do Estado liberal capitalista. O artigo teve enorme êxito devido — entre outras coisas — às condições de sua recepção no marco do desmoronamento do império soviético. Hegel é, sem dúvida, um grande teórico do Estado de Direito, porém não do final da história, já que isto, a meu entender, contradiz as premissas de seu pensamento filosófico. É precisamente o “direito da história” o que é considerado por ele como a forma suprema do direito e, portanto, da liberdade humana. Isto, sem dúvida, é um dos aspectos que segue tendo vigência entre muitos outros que inspiram o pensamento contemporâneo, particularmente no marco de um incontrolável processo de globalização, no qual tem lugar não somente um intercâmbio de bens e capitais, senão também de ideias que voltam a atualizar aquele obscuro conceito de “espírito do mundo” que caracteriza a filosofia da história de Hegel. 

 

IHU On-Line - Por outro lado, em que medida a história não se encerrou no Estado prussiano? A que se deve a compreensão equivocada de sua filosofia enquanto determinista?

Daniel Brauer - Embora Hegel tenha contribuído, tanto pela obscuridade de sua linguagem como por uma série de textos ambíguos, a ser mal interpretado como filósofo do Estado Prussiano já desde a publicação da sua Filosofia do Direito (São Leopoldo, RS, Ed. Unisinos, 2010), de 1821, trata-se claramente de uma teoria normativa do Estado moderno formulada, é verdade, com certa prudência, de acordo com condições não usuais de sua edição (medidas de censura, etc.). Hoje estamos em condições — vide a publicação dos apontamentos de aulas anteriores e posteriores a essa versão — de poder entender melhor os objetivos do tratado. Muitas das instituições ali descritas não existiam na Prússia de seu tempo. Quanto ao determinismo, resulta paradoxal atribuir a uma filosofia que toma como fio condutor para julgar as formas jurídicas e os organismos políticos o grau em que nelas se realizam formas da vontade livre de seus cidadãos. Mas, por outra parte, muitos textos parecem sugerir um curso predeterminado dos acontecimentos históricos, nos quais os indivíduos atuam como engrenagens de uma dinâmica independente deles. Caso se possa falar de determinismo, é em todo o caso pelo papel que desempenham as ideias que se apoderam dos sujeitos e de suas paixões, convertendo-os em seus instrumentos. Quando se fala de liberdade em Hegel, deve-se ter em conta que se trata de um conceito histórico e que admite graus. Não é tudo ou nada, e no cenário da modernidade dos sujeitos e de suas convicções políticas, estas se tornam cada vez mais decisivas na hora de modificar as formas sociais vigentes. 

 

IHU On-Line - O que é a dialética do tempo?

Daniel Brauer - O significado da expressão “dialética do tempo” não pode ser explicado completamente em um espaço tão breve. Trata-se, em todo o caso, de pensar a contradição interna à noção de presente, na medida em que o identificamos como um puro ser. O tempo é, em si, uma constatação empírica da passagem do que é ao que não é no próprio instante. E o que denominamos presente e futuro são para Hegel somente abstrações de um processo do devir. A chave está no passado: como resultado, nele o tempo mesmo supera sua própria dinâmica. Porém, isto deve ser explicado pressupondo alguns conceitos da lógica hegeliana. 

 

IHU On-Line - Quais são as principais conclusões oriundas de seu estudo sobre a metafísica da história universal em Hegel?

Daniel Brauer - As conclusões são que se encontra em Hegel uma concepção original do tempo, tanto do tempo da natureza como do da história, e que esta particular visão do processo histórico tem consequências para sua filosofia política e, inclusive, para o papel que desempenha a filosofia na compreensão e modificação da sociedade. 

 

IHU On-Line - Qual a relação entre o princípio de não contradição de Aristóteles  e o conceito de contradição em Hegel? Qual a importância desse conceito na obra hegeliana?

Daniel Brauer - O conceito de contradição é central — como é sabido — na filosofia de Hegel, mas trata-se de um conceito original que não coincide com a noção de contradição em Aristóteles. Enquanto, para este, contradição é um discurso ou uma opinião sempre falsa ou algo impossível de encontrar na realidade por princípio, para Hegel, pelo contrário, a contradição é o princípio dinâmico que permite pensar a mudança e a transformação. Sem embargo, ambos os autores não se opõem, já que usam a palavra “contradição” em sentidos muito diferentes. Sobre isto há consenso entre os intérpretes de Hegel; enquanto a noção de contradição que aparece em Aristóteles — vinculada ao axioma de não contradição — resulta muito clara e precisa, estabelecer o sentido do conceito de contradição em Hegel exige uma tarefa hermenêutica não usual e é motivo de uma interpretação que deve tornar-se plausível ao tornar inteligíveis os textos. No artigo que inspirou a pergunta faço uma proposta nesse sentido, mas ela não pretende ser uma resposta definitiva. 

 

IHU On-Line - Como se pode compreender a relação das categorias Ser, Nada e Devir, que se apresentam no começo da Ciência da Lógica de Hegel, no que diz respeito à filosofia da história que esse pensador formulou? 

Daniel Brauer - O processo histórico deve ser entendido com categorias mais ricas que as de Ser, Nada e Devir, que se encontram no começo da Ciência da Lógica. Sem embargo, nas primeiras lições de Filosofia da História, se apresenta uma tríade que tem certa analogia. Refiro-me à noção de caducidade (Vergänglichkeit) que descreve o caráter passageiro de toda forma de civilização e é oposto à ideia de um ressurgimento (Verjüngung) que indica a reposição de uma forma política por outra nova; ambos os aspectos convergem na ideia de progresso (Fortschritt) tal como a entende Hegel no sentido do devir próprio da história. 

 

IHU On-Line - Qual a importância de se compreender a obra hegeliana a partir do contexto político, cultural e social da Europa de seu tempo?

Daniel Brauer - Trata-se de uma época de grandes transformações. O acontecimento histórico mais importante é, sem dúvida, para essa geração, a Revolução Francesa , na qual Kant  vê um “signo” histórico. Com a ideia de progresso, mostra-se como o próprio Hegel ubica sua filosofia no marco do projeto emancipatório da Ilustração. 

 

IHU On-Line - Gostaria de acrescentar algum aspecto não questionado?

Daniel Brauer - A filosofia da história de Hegel se deu no marco de um cenário histórico-político que já não é o nosso. Isto se mostra tanto nas importantes transformações que tiveram lugar na forma das sociedades contemporâneas como nas mudanças da autocompreensão da tarefa da filosofia. Depois de Auschwitz, defender a ideia de uma razão na história resulta impossível e monstruoso. 

A isto devem acrescentar-se muitos aspectos que fazem com que esses textos não possam ser hoje tomados em consideração sem modificações substanciais. Contudo, a teoria da história de Hegel contém uma série de ideias que podem servir de fonte de inspiração para compreender o lugar do homem na história e, com isto, eu me refiro à tarefa sempre vigente de seguir pensando as condições da liberdade num mundo globalizado. É que, sem a intervenção do pensamento — e isto podemos aprender de Hegel —, essas condições não vão ter lugar. 

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