Edição 429 | 15 Outubro 2013

Mundo em fuga

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Andriolli Costa e Ricardo Machado

A saga dos refugiados e a luta para recomeçar
Barco transportando refugiados. Fonte: Wikimedia Commons

Era maio de 2011, e as águas do Mediterrâneo estavam agitadas naquele dia. Uma falha no motor havia deixado o barco à deriva em meio à tempestade, fazendo as centenas de pessoas apinhadas na velha embarcação verem o sonho da nova terra cada vez mais distante. Eram refugiados; os boat people, como são conhecidos. Os relatos falam de quase 400 pessoas naquele barco, que deixaram a Líbia em busca de refúgio na ilha italiana de Lampedusa. Porta de entrada para a Europa, distante apenas cerca de 100 km da costa africana, a pequena ilha de menos de 20 km² tem sido inundada por refugiados vindos do mar nas condições mais precárias. Insolação, desidratação e mesmo intoxicação pela fumaça dos motores afligem aqueles que fazem a travessia clandestina. No entanto, estes não são os únicos perigos. O desespero evoca tradições antigas; é preciso aplacar a tempestade, afastar os demônios. Até o fim daquela viagem, 12 pessoas foram lançadas ao mar; sacrifícios humanos para acalmar o oceano.

O relato acima, colhido pela ONG Save the Children, repercutiu em toda a imprensa internacional — e era apenas uma das várias vezes em que tragédias envolvendo a ilha e os refugiados ganhariam as páginas dos jornais. A mais recente ocorreu na primeira semana de outubro deste ano, quando uma embarcação que transportava 500 pessoas naufragou pouco antes de chegar à ilha. Apenas 155 refugiados sobreviveram, e a busca pelos corpos ainda continua. A própria entrada dos barcos em território italiano tem sido questionada, e há inclusive denúncias de que a marinha do país esteja interceptando e impedindo a passagem dos refugiados, fazendo a situação da ilha ser comparada à da fronteira do México com os Estados Unidos. Vista pelos fugitivos como um paraíso prometido, Lampedusa hoje tem recebido outra alcunha: Inferno no Mediterrâneo.

Ainda assim, as viagens continuam ocorrendo. Afinal, uma vez na ilha, os refugiados passam a ter os direitos amparados pela legislação da Comunidade Europeia, e de lá são encaminhados para Roma ou outros destinos italianos. Segundo informações do Alto Comissário das Nações Unidas para Refugiados – Acnur, desde o início do ano cerca de 30 mil pessoas chegaram à Itália em embarcações vindas do norte da África e do Oriente Médio. Fogem dos constantes conflitos armados que sempre assolaram seus países, mas que tomaram novas proporções nos últimos anos. Um povo que deixou para trás suas casas, suas famílias e suas raízes para recomeçar a vida em terra estrangeira. A busca agora não é por oportunidades de trabalho ou renda, mas sim pela paz e segurança.

A chegada desse contingente imenso voltou à atenção do mundo para a questão dos refugiados. Como devolver a estas pessoas seus direitos básicos? Como lidar com suas necessidades? Como compreender as demandas sociais que acompanham o processo de globalização? Este é o tema da discussão desta semana da IHU On-Line.

 

Mudanças forçadas

Existem aproximadamente 43,4 milhões de pessoas na condição de refugiados ou que solicitaram refúgio em todo o mundo. Metade desse contingente vem de quatro países: Afeganistão, Somália, Síria e Sudão, de acordo com o relatório Tendências Globais, produzido pela ONU em 2012. Engana-se quem pensa que o destino da maioria dessas pessoas são os países mais ricos. Ao contrário, cerca de 80% dos refugiados são recebidos em regiões em desenvolvimento, sendo que o Paquistão é o país que mais os recebe.

Vale notar que todo esse forçoso movimento migratório ocorre em um período de “paz” — haja vista que não existem guerras mundiais declaradas como no século XX. Dizer “sim ao estrangeiro” (Oui à l’étranger), como propôs o filósofo Jacques Derrida, é, sem dúvida, o desafio das primeiras décadas do século XXI e que já começa a se desvelar. Pela primeira vez, um papa não europeu assumiu o pontificado, e é igualmente simbólico como, em sua viagem inaugural fora de Roma, foi escolhida justamente a ilha de Lampedusa para receber a visita papal de Francisco. O convite ao Vaticano foi feito por carta pelo padre Stefano Nastasi, pároco de Lampedusa.

Antes da viagem, logo após assumir o pontificado, o papa já havia aceitado o convite do padre jesuíta Giovanni La Manna para conhecer o Centro Astalli, uma iniciativa da Companhia de Jesus, localizado em Roma. Longe do Mediterrâneo, mas próximo à central de poder italiana, o Centro Astalli tornou-se ponto de referência de abrigo aos refugiados. “As mortes, no mar, de gente tentando vir até nós, fugindo da guerra, pesam em nossas consciências”, lamentou La Manna pelo Twitter. Atuante e engajado, o padre vem brigando por melhores condições para os refugiados, e foi isso que o incentivou a convidar o pontífice a conhecer o Centro que dirige há dez anos. “Papa Francisco nos lembra que não somos chamados a ser apenas testemunhas ou mestres. As pessoas estão cansadas de palavras bonitas”, escreveu também no microblog.

Desde 1981, o Centro abriu suas imponentes portas verdes de madeira para acolher imigrantes e solicitantes de refúgio, fornecendo alimentação, orientação, apoio espiritual e psicológico. Para estas pessoas, o Astalli torna-se o mais próximo possível de um “lar”, e não apenas no sentido figurado. Isto porque, para a formalização do status de refugiado, a União Europeia solicita uma série de documentos, inclusive um comprovante de residência. Como a maioria dos refugiados não possui mais estes dados à disposição, a via degli Astalli 14/A tornou-se a casa comunal de mais de 500 refugiados.

Além de fornecer assistência, o Centro, na figura do padre La Manna, tem se posicionado também politicamente sobre o assunto. “Outros refugiados chegaram por mar. Não esperem por outra tragédia e estabeleçam imediatamente canais humanitários seguros para aqueles que fogem da guerra”, apelou o diretor nas redes sociais. A presença do papa na ilha trouxe junto com ele os olhos do mundo, que passaram a dar mais atenção ao que ocorria lá. A expectativa é que essa atenção resulte em ações efetivas. “Que a tragédia de Lampedusa não se torne uma triste lembrança. O sacrifício destes refugiados levará à mudança de nossa política e da União Europeia”, previu La Manna.

 

Direito à vida

Atualmente, de acordo com as convenções internacionais, nenhuma organização pode incentivar uma pessoa a deixar seu país de origem. Aqueles que, em sua terra natal, são vítimas de perseguição por razões de raça, religião, grupo social, nacionalidade ou opinião política podem solicitar refúgio apenas quando já estiverem em terra estrangeira. Esta é uma das críticas apontadas pelo padre La Manna, que teme que a insegurança da trajetória da fuga continue a gerar tragédia em cima de tragédia — e não apenas no caso de Lampedusa.

No entanto, nem todos compartilham da política humanitária defendida pelo Centro Astalli. Desde o início do ano, mais de 15 mil boat-people chegaram à Austrália aportando na Ilha Christmas, localizada no Oceano Índico e mais próximo da Indonésia do que da Austrália. O fato levou o primeiro-ministro do país, Tony Abbott, a iniciar uma campanha contra a chegada dos refugiados, direcionando os recém-chegados para o repatriamento na Indonésia.

Para a professora de Relações Internacionais da Unisinos, Gabriela Mezanotti, a mobilidade humana faz parte da lógica da globalização tanto quanto a movimentação de bens, serviços e capitais. Para ela, catástrofes como a recente em Lampedusa apenas confirmam que a questão da migração, dos refugiados e da ação humanitária ainda tem muito que se desenvolver. “De quem é o dever de proteção dos direitos humanos? A resposta ainda é vaga e nossa realidade confirma que nós ainda não levamos os direitos a sério”.

Os conflitos armados, para a professora, são marcas do século XXI. Neste contexto, “os refugiados são o produto dos piores instintos da humanidade e a manifestação da instabilidade das relações internacionais”, pontua ela. “Eles são ao mesmo tempo invisíveis e testemunhas, seguindo a perspectiva de Giorgio Agamben. Não são vistos ou ouvidos, mas estão em todos os lugares. São testemunhas ao resistir, por existir”.

Durante a Segunda Guerra Mundial, foram mortos cerca de 53 milhões de pessoas, entre membros das forças Aliadas, do Eixo e civis. Outros milhares de sobreviventes, sobretudo judeus, eslavos e ciganos, se espalharam, inicialmente, pela Europa e depois para outras partes do mundo em busca de abrigo. Naquele momento, nenhum deles era legalmente considerado refugiado.

O termo, em sua conotação sociopolítica, surgiu na Convenção das Nações Unidas sobre o Estatuto dos Refugiados, em 1951, mas só entrou em vigor em 1954. Inúmeras guerras se sucederam nas décadas seguintes, o que criou regiões de conflito, levando os povos a migrações forçadas. O termo boat people, inclusive, foi utilizado pela primeira vez para se referir aos refugiados da Guerra do Vietnã, que preferiam partir para a incerteza do oceano a viver na insegurança da terra firme.

No Oriente Médio, a instabilidade social que leva às migrações forçosas que vemos hoje iniciou com conflitos internos, agravados com a intervenção estrangeira. Na segunda metade dos anos 1970, começa a Guerra Civil no Líbano e, em 1979, a Revolução Iraniana, que derrubou um regime monárquico pró-Ocidente, dando lugar a um governo voltado à tradição Islã. Nos anos 1990, os Estados Unidos invadem o Iraque durante a Guerra do Golfo, cena que se repetiu mais de uma década depois, em 2003, com a alegação de que o então presidente Saddam Hussein mantinha um arsenal de armas químicas que ameaçavam a paz mundial. Nenhuma arma foi encontrada, mas o ditador foi capturado, julgado e executado.

Recentemente, uma nova investida americana estava sendo planejada, sob a alegação de levar a “democracia” aos povos do Oriente Médio. Estados Unidos, Inglaterra e França defendiam uma intervenção militar na Síria, movidos pelos conflitos internos entre rebeldes e o exército do país, enquanto a Rússia entendia o contrário. O presidente sírio Bashar al-Assad, em acordo mediado por Estados Unidos e Rússia, comprometeu-se em entregar as armas químicas de seu exército caso não houvesse intervenção de outros países na Síria.

Enquanto os chefes de Estados se envolvem em imbróglios geopolíticos, ao menos 6,8 milhões de sírios necessitam de ajuda humanitária, segundo dados da ONU. Desse total, 3,1 milhões são crianças e 4,25 milhões são deslocados internos. Com aproximadamente 185 mil km², a Síria é menor que o território do Paraná. Até a primeira metade do mês de setembro, havia 2 milhões de refugiados sírios em países vizinhos do Norte da África.

 

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