Edição 429 | 15 Outubro 2013

O lugar do antropos sintético

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Marcia Junges e Andriolli Costa / Tradução: Moisés Sbardelotto

Paul Rabinow e Gaymon Bennett, pesquisadores que trabalharam no Centro de Pesquisa de Engenharia Biológica Sintética, propõem novas formas de compreender os modos de pensar, agir e se relacionar a partir da biologia sintética

Ninguém sabe ao certo que tipo de mudanças o avanço nos estudos na área das nanobiotecnologias pode trazer. Afetariam elas as formas de biopoder como as conhecemos hoje? Entrariam em competição com outros setores além das grandes indústrias farmacêuticas ou da agricultura? Para os pesquisadores Paul Rabinow e Gaymon Bennett, que trabalharam no Centro de Pesquisa de Engenharia Biológica Sintética (SynBERC), o assunto deve ser encarado com “engajamento empírico, trabalho conceitual sustentado e uma vontade de levar a sério as questões que, em um vernáculo mais antigo, eram referenciadas como espiritualidade”. Em entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line, os professores afirmam que desejaram compreender os “novos modos e formas de conhecimento, poder e experiências que a biologia sintética pode trazer para o mundo”. Assim criaram o neologismo Antropos Sintético, para fazer referência às novas formas de compreender os modos de pensar, agir e se relacionar a partir da biologia sintética.

Para os pesquisadores, ainda existe muita dificuldade em conceber quais serão os futuros resultados das pesquisas em biologia sintética, por isso riscos ou benefícios não podem ser conhecidos ou prefixados. Os estudos sobre o assunto devem ser abertos para não se reduzirem ao utilitarismo da bioeconomia ou aos temores das antigas discussões de vitalismo ou do espírito. “Não estávamos interessados no crescimento descontrolado, no progressivismo ou na maximização das capacidades existentes”, afirmam. “As normas que estão realmente em jogo e como elas funcionam devem ser observadas, registradas e avaliadas de forma contínua”, esclarecem.

Paul Rabinow possui graduação, mestrado e doutorado em Antropologia pela University of Chicago. Atualmente é professor de antropologia da University of California e diretor de Antropologia do Contemporary Research Collaboratory (ARC). Atuou também como diretor de Práticas Humanas no Centro de Pesquisa de Engenharia Biológica Sintética, que consiste em um grupo de pesquisa decentralizado com pesquisadores de sete universidades dos Estados Unidos.

Gaymon Bennett possui graduação e doutorado em Ética Teológica pela Graduate Theological Union e doutorado em Antropologia Cultural pela University of California. Foi diretor de Comunicações do curso de Ciência e Religião do Center for Theology and the Natural Sciences (CTNS) em Berkeley (EUA). Atua também como assistente de pesquisa do quadro de aconselhamento ético da Geron Corporation, que trabalha com pesquisa em células-tronco, na Califórnia, nos Estados Unidos.

Confira a entrevista.

 

IHU On-Line – O que é um antropos sintético [synthetic anthropos]?

Paul Rabinow e Gaymon Bennett - De 2007 a 2011, nós projetamos e tentamos colocar em prática um experimento colaborativo que chamamos de “práticas humanas”. A Fundação Nacional de Ciências dos Estados Unidos decidiu financiar um centro composto por seis universidades, cuja meta era criar normas e formatos fundacionais para um novo estilo de bioengenharia — a biologia sintética. O financiamento para este centro — o Synthetic Biology Engineering Research Center (Centro de Pesquisa de Engenharia Biológica Sintética - SynBERC) — foi baseado na inclusão daquilo que os financiadores e os cientistas estavam se referindo como “implicações sociais”. Estávamos convencidos de que nenhum termo estava correto — estávamos incertos de que a “sociedade” estava em jogo (pelo menos não nos EUA, onde nunca existiu uma sociedade verdadeira, no sentido moderno do termo); e nossa preocupação era mais em como essas tecnologias se ramificariam do que o que elas implicavam. Estávamos mais preocupados com que tipos de novos modos e formas de conhecimento, poder e experiências a biologia sintética pode trazer para o mundo. Por isso, nosso termo proposto — práticas humanas. Seguimos nosso experimento com uma consciência informada de que existe uma demanda incipiente, mas insistente de novos equipamentos éticos — modos éticos, afetos e práticas da verdade —, os quais podem ajudar a reconfigurar as relações entre e dentro das ciências biológicas, das ciências humanas, e entre as diversas cidadanias, nacional e global. Por esta razão, iniciamos nosso trabalho com a intenção de produzir um diagnóstico de uma nova "problematização" ou "esquema" ou "racionalidade" tomando forma no mundo em relação ao qual tal novo equipamento pode ser projetado e colocado em operação. Embora os contornos do que parecia estar surgindo fossem vagos, tivemos um forte senso, decorrente de grande discussão, análise, trabalho de seminário e leitura, de que tudo o que foi tomando forma não poderia ser suficientemente caracterizado por uma doxa analítica reinante. Quaisquer que sejam os significados dos termos "biopoder" e "biopolítica" — e eles estão sendo usados em um número crescente de formas, a maioria dos quais nos parecem enganosos e equivocados — esses termos, conceitos ou marcas não são claramente suficientes para a compreensão da realidade contemporânea. Uma fonte adicional de nosso mal-estar é o fato de que Michel Foucault , que cunhou estes termos, nunca pensou que eles pudessem servir para os usos indisciplinados e heterogêneos para os quais eles estão sendo utilizados. O foco de Foucault tinha sido histórico e conceitual, e (pelo menos na sua obra posterior) não totalizante. Acima de tudo, conceitos como "biopoder" ou "governamentalidade" tinham sido concebidos e apresentados de uma forma que foi expressamente capaz de retificação recursiva. Nem a nomeação de um significado único da história ocidental ou do mundo, nem revelar o funcionamento nefasto de "governamentalidade" em toda parte satisfaz os critérios de retificação recursiva.

Antropos Sintético

Este é o lugar onde a noção de "antropos sintético" começou a tomar forma. Ao invés de nomear uma nova racionalidade, orientamos nossos esforços para diagnosticar o que levou a ser uma montagem emergente — uma coleção subdeterminada pelo conjunto coerente de modos de pensar, agir e se relacionar, caminhos que estavam tomando forma institucional. Pareceu-nos que esta montagem poderia ser abordada, conceitualmente e pragmaticamente, do ponto de vista de dois aparatos estáveis existentes. Os dois aparatos nós designamos como “biopoder” e “dignidade humana”; inicialmente nos referimos à coleção como “o vital”, mas no fim acabou sendo definida como “antropos sintético”. O nosso objetivo em introduzir este neologismo foi especificar e começar a caracterizar zonas contemporâneas, tais como biossegurança e bioética, em que elementos de dois aparatos "anteriores" são recombinados na formação de um terceiro. Resistimos às propostas familiares de que esses aparatos eram redutíveis uns aos outros. Nós os entendemos, ao contrário, como algo que consiste em elementos bastante específicos, se não heterogêneos, como objetos e práticas, no fluxo e no curso de reaglutinação. Uma vez que começamos realmente um sustentado trabalho conceitual, após vários atrasos e bloqueios, concluímos, no entanto, que era prematuro no momento diagnosticar uma nova formação. Chegamos a pensar que, apesar de grandes mudanças em diversos domínios empíricos estarem, sem dúvida, em andamento, não era de todo evidente que tinham tomado uma forma geral e definitiva. Além disso, concluímos que era conceitualmente perigoso supor que isso aconteceria algum dia. Depois de ter chegado a um impasse, decidimos mudar as estratégias através da mudança de registros.

Em primeiro lugar, decidimos mudar, sendo que, ao invés de caracterizar um diagrama geral ou uma racionalidade, tentamos distinguir os contornos da problematização a que o esquema geral estava, presumivelmente, respondendo. Até lá, no entanto, depois de dois semestres de labuta com vários projetos empíricos, gradualmente começou a parecer provável que mesmo a tarefa de tentar distinguir e caracterizar os parâmetros de uma problematização emergente de uma forma abrangente era prematura. Ao contrário da questão sobre qual problematização vem "depois" do biopoder, o desafio de especificar os vetores e os contornos de um problema-espaço emergentes permanece, a nosso ver, no entanto, válido. Consequentemente, decidimos voltar para o concreto: o nosso local de investigação e as práticas reais que estão sendo elaboradas.

Biopoder

Foi aqui que começamos especificando o antropos sintético como algo possivelmente exterior ao biopoder e à dignidade humana. Buscamos nomear esse exterior como algo que consistia em uma série de elementos mínimos, que nós pensamos que estavam começando a tomar forma no mundo como uma espécie de série. Trabalhando analiticamente e um pouco formalmente, propusemos que os desenvolvimentos relacionados com a bioengenharia contemporânea — a biologia sintética, em particular — poderiam ser distinguidos por: a) o modo segundo o qual certos atos de fala estavam sendo permitidos para contar (ou não); b) a métrica ou padrão através do qual certas coisas no mundo estavam sendo escolhidas e trazidas a um relacionamento; c) a forma de existir, ou o modo ontológico, que foi dado a esse campo de relações; d) os objetos (que consistem em elementos de vários tipos e escalas), que são tratados como autoidênticos e feitos para servir como ponto de ancoragem e alvo dessas reivindicações de verdade, relacionamentos, etc. Pensamos que, se pudéssemos ver essas variáveis claramente, poderíamos então ter um melhor senso de onde olhar para discernir os meios nos quais os antropos sintéticos podem cair fora do biopoder e da dignidade humana não somente em nível figurativo, mas também em nível de ética e poder.

 

IHU On-Line – Que ligações se pode estabelecer entre biologia sintética e biopoder?

Paul Rabinow e Gaymon Bennett - No SynBERC e no nosso trabalho sobre a biologia sintética de forma mais ampla, a relação entre biologia sintética e biopoder tem uma certa folga — mesmo que os biólogos sintéticos (como a maioria dos microbiologistas) costumem explicar a importância de seu trabalho no que pode ser vagamente descrito como biopolítica. Na verdade, este foi um dos pontos de intriga sobre a biologia sintética desde o início: isso pode permitir-nos ser mais claros sobre o biopoder e suas formações e limites contemporâneos, trabalhando em uma possível faceta dele.

O pano de fundo direto para o nosso trabalho no SynBERC foi o artigo que Rabinow publicou recentemente com Nikolas Rose, Biopower Today  (O biopoder hoje. Princeton: Princeton University Press, 2006). Eles argumentaram que, nas mãos da teoria política crítica de Giorgio Agamben  e de Hardt  e Negri , especialmente, as noções de biopoder e biopolítica tinham perdido sua utilidade como conceitos úteis para a investigação empírica em situações contemporâneas específicas. Movendo-se contra essas correntes, Rabinow e Rose propuseram uma série de critérios para a especificação mais restrita à figura do biopoder como uma lógica distinta do poder — e não apenas um termo vago referindo-se a qualquer relação entre poder e biologia.

Uma das primeiras questões que assumimos foi se seria útil ou não refinar ainda mais o argumento feito em O biopoder hoje. Esse era o outro lado das nossas especulações sobre antropos sintético: poderíamos identificar um conjunto mínimo de elementos que possam, tomados em conjunto, constituir a diacrítica analítica mínima de biopoder? O objetivo era justamente estabelecer uma espécie de grade analítica com a qual desenvolvimentos em biologia sintética podem ser lidos: o biopoder como um estilo de fala da verdade orientada para a verificação, efeitos de poder caracterizados pela normalização, uma orientação à probabilidade como um meio de formas constitutivas de existência, e, mantendo todos esses juntos, um determinado objeto — a agora famosa relação de Foucault entre a população e o corpo.

Pareceu-nos que, em seus primeiros manifestos — suas declarações publicadas e programáticas —, a comunidade de biologia sintética realmente não se preocupava com a verificação. O que vimos sendo colocado em prática era algo mais próximo ao que John Dewey  chamou de "assertabilidade garantida", quanto é necessário saber sobre os sistemas vivos que estão sendo manipulados, a fim de conseguir que esse organismo funcione de uma forma projetada. Os tipos de operações estatísticas características do biopoder clássico não estavam realmente em jogo. Este fato se reflete no uso contínuo de termos e analogias de programação de computadores e na indústria de computadores: dispositivos figurativos feitos para justificar a pesquisa — justificar tanto no sentido de explicar como de alinhar. Pensamos que os pontos comparativos semelhantes poderiam ser feitos sobre os outros elementos da nossa comparação analítica ao biopoder — o objeto, por exemplo, certamente não eram corpos ou populações tomados em nada como um modo de normalização; era, ao contrário, a construção e reconstrução de vias.

Agora, tudo isso foi no início de nosso empreendimento. Enquanto o nosso trabalho no centro prosseguia — por volta de 2007 e 2008 —, a noção de biologia sintética ficou conectada à possibilidade de produzir biocombustíveis de segunda geração. Nos EUA, isso significou que a biologia sintética ficou ligada à lógica de securitização que estava guiando — e ainda largamente guia — a política norte-americana. Falar de "segurança energética" significava que a biologia sintética foi de repente considerada política e economicamente relevante de uma forma que não era antes. Uma vez que a biologia sintética ficou ligada à ideia e à aspiração de biocombustíveis e segurança nacional, algo mais próximo de uma lógica de biopolítica começou a ser assumido. Os locais necessários para levar biocombustíveis ao mundo, por exemplo, precisavam ser estáveis, grandes, burocráticos — capazes de ser uma câmara de compensação para a bioengenharia em larga escala. A biologia sintética entendida como o esforço para "tornar a biologia fácil para engenheiro", através da construção de biotijolos de código aberto — a imagem da biologia como Legos biológicos — começou a ser deslocada. Agora, dito isso, é importante ter em mente que os biólogos sintéticos ainda não produziram um biocombustível viável, pelo menos não um suscetível de ser produzido em escala, apesar de várias empresas norte-americanas tentarem levar seu trabalho para instalações de produção em grande escala no Brasil. Na verdade, muitas das empresas de biologia sintética que tinham prometido fazer combustíveis se voltaram para outros produtos químicos de alto valor, cujas margens de lucro são muito melhores. Neste sentido, é justo dizer que uma figura do biopolítico começou a surgir em relação à biologia sintética — um imaginário biopolítico começou a tomar posse —, mas nos EUA isso tem diminuído um pouco.

 

IHU On-Line – De um ponto de vista antropológico e refletindo sobre a biologia sintética, como se pode compreender a relação estabelecida entre biopoder, biocomplexidade e biossegurança?

Paul Rabinow e Gaymon Bennett - Não está claro se existe, de fato, uma relação estabelecida entre esses conceitos — pelo menos em relação à biologia sintética ou a outras áreas da bioengenharia avançada. Além disso, o significado desses termos, especialmente biocomplexidade e biossegurança, é muito instável e subdeterminado. Nos EUA, por exemplo, o próprio termo segurança está passando por significativa reproblematização — como é evidente nos debates intensos sobre o alcance do aparato de segurança dos EUA em todo o mundo por meio das tecnologias da informação. Neste caso, para simplificar, a questão da segurança tem sido posta para chamar a atenção da questão do terrorismo e na medida em que as situações de incerteza sobre as ações de potenciais agentes maliciosos possam ser gerenciadas. Segurança, neste sentido, nomeia um ponto de confluência entre o político e o militar sob o signo da defesa e do poder consolidado do Estado e seus diversos “interesses”.

No que diz respeito ao "biopoder", ou à "política vital" de forma mais ampla, a noção de segurança, para Foucault, foi muito mais abrangente do que isso. Era uma espécie de termo mestre para citar o problema dos séculos XVIII e XIX de como se poderiam melhorar as normas de uma população — o famoso ditado de Foucault de que o poder visa à promoção da vida. Neste sentido, os termos saúde, riqueza e segurança podem ser usados de forma a coincidir com o último.

Isso é importante para manter em mente quando a questão da biossegurança é colocada em relação à biologia sintética. Neste caso — como nós tentamos, sem sucesso, convencer muitos dos biólogos que estavam trabalhando conosco — o problema não é mais uma questão técnica per se. A questão-técnica — e aqui ressaltamos a palavra técnica — de quais tipos de perigos que possam surgir em relação à biologia sintética realmente só pode ser tomada como uma questão de bioproteção ou de preparação, mas não de biossegurança. Isso ocorre porque as soluções técnicas são úteis apenas em relação a questões de proteção ambiental e laboratorial, ou em termos de reforço das capacidades necessárias para responder no caso de um evento biológico nefasto.

A questão da biossegurança é um assunto de meio político e dos tipos de atores existentes dentro de um ambiente político. Nesse nível, o problema já não é mais se técnicas de salvaguarda podem ser construídas para evitar que eventos perigosos ocorram. Longe disso. Na verdade, um objetivo declarado e meta da biologia sintética (como outras áreas da bioengenharia contemporânea) é a construção de ferramentas, materiais e conhecimento (know-how) que aumentem a potência e precisão das manipulações técnicas dos organismos vivos e, simultaneamente, diminuam o custo e o nível de habilidade necessária para realizá-las. Isso contribui para o que tem sido vagamente conhecido como "a democratização da capacidade biológica". O ponto aqui é que essa distribuição de capacitações só pode intensificar a questão da biossegurança; não pode ajudar a resolvê-la. A questão que realmente não foi respondida, mas que requer uma reflexão mais séria, é se essa distribuição de capacitações vai intensificar ainda mais relações negativas de poder. Como sabemos, a distribuição das capacidades técnicas em informática, considerando toda a conversa de democratização nesse domínio, facilitou tanto a consolidação do poder, como fez as práticas de autoformação. Além disso, ambos os lados da divisão estão profundamente interligados e eticamente preocupados. A democratização da tecnologia da informação nos deu as relações difíceis e preocupantes entre atores como o Anonymous, Google, Facebook e a Agência de Segurança Nacional dos EUA. Não se tem claro que lições deveriam ser tiradas para a biologia, se é que há.

 

IHU On-Line – Até que ponto o biopoder e a dignidade humana são categorias importantes para uma reflexão ética sobre as descobertas e aplicações da biologia sintética?

Paul Rabinow e Gaymon Bennett - Elas são cruciais, mas talvez não pelas razões que se poderia esperar. Como já sugerido, elas não são decididamente úteis como teorias sobre o contemporâneo — racionalidades dominantes de uma época — que podem ser usadas como chaves hermenêuticas para descobrir a verdade secreta sobre o que está realmente acontecendo. São úteis, em vez disso, como guias, como pontos de orientação para discernir as diferenças possíveis hoje.

Uma das dificuldades principais em nossa capacidade de implementar novos equipamentos de ética em nosso trabalho no SynBERC foi precisamente que os engenheiros e biólogos, bem como os financiadores, ficavam esperando nosso trabalho ser indexado à biopolítica ou a lógicas dignitárias, embora, obviamente, eles não tivessem usado estes termos. Eles esperavam que falássemos sobre risco ou incerteza, ou sobre códigos de conduta, ou sobre a propriedade intelectual, ou sobre a moralidade de "violar" a natureza. Em vez disso, continuamos voltando, decididamente, para a questão da relação entre as formas em que os biólogos estavam tentando formar a si mesmos e as suas instituições e os tipos de operações técnicas que eles eram capazes ou não de realizar. Este relacionamento — entre formação e capacitação — pareceu-nos ser o mais antigo, que é o cerne da ética. Por essa razão, decidimos recorrer a um antigo conjunto de termos éticos, incluindo a noção aristotélica  de eudaimonia — florescimento. Poderíamos ter usado outros termos semelhantes: prosperidade, boa vida, felicidade, realização, alegria, abundância, e assim por diante. Colocamos o termo florescimento à frente como uma espécie de provocação: uma postura crítica à otimização técnica, já que estávamos convencidos de que as capacidades que estão sendo trazidas ao mundo pela biologia sintética (ou não trazidas ao mundo) não podem ser conhecidas ou prefixadas. Não estávamos interessados no crescimento descontrolado, no progressivismo ou na maximização das capacidades existentes. Nosso objetivo foi insistir que a questão do que constitui uma boa vida hoje em dia, e a contribuição das ciências biológicas para aquela forma de vida, devem ser afirmadas e reafirmadas vigilantemente. As normas que estão realmente em jogo e como elas funcionam devem ser observadas, registradas e avaliadas de forma contínua.

 

IHU On-Line – Até que ponto a "antropologia da razão" fornece elementos para a compreensão da vontade de conhecimento que impulsiona áreas do conhecimento como a biologia sintética?

Paul Rabinow e Gaymon Bennett - Achamos que é importante distinguir entre um dilema e um problema. Um dilema, naturalmente, descreve uma situação em que alguém tem de escolher uma, entre duas ou mais alternativas insatisfatórias. Um problema, como entendemos em nosso trabalho, é uma situação de colapso que exige pensamento — uma situação em que as formas anteriores de pensar, agir e se relacionar, bem como as normas anteriores do estado e disposição, tornaram-se indeterminadas ou discordantes. Problemas éticos, portanto, exigem tanto inquérito como o trabalho em si mesmo. Ambos os lados têm sido pertinentes à biologia sintética. É um domínio em que os pesquisadores não estão mais claros sobre os objetos que estão trabalhando ou os caminhos que eles deveriam tomar para si ou para suas instituições, a fim de assumir estes objetos. Esta falta de segurança tem sido tratada pelos principais atores envolvidos em grande parte através de uma moralização familiar: ou se é a favor da biologia sintética porque é salvadora, ou contra ela, pois é irremediavelmente perigosa. Pensamos que essa dicotomia deve ser refutada a fim de que um melhor entendimento das forças que moldam a situação possa ser alcançado. Como, por exemplo, a mudança de normas da indústria de alta tecnologia do Vale do Silício começou a penetrar e transformar as ciências biológicas que vão além das grandes indústrias farmacêuticas e de agricultura? Como esta mudança das normas e a tentativa de reformulação da biologia em uma imagem de tecnologia revolucionária afetam a capacidade dos cientistas de construir o seu caminho no mundo — para proteger os recursos e o status necessários para manter um modo competitivo de operação? Que tipos de mudanças nas relações de poder, se houver, esses campos estão introduzindo e como podemos entendê-los? Como a vida está sendo percebida hoje, e como ela pode ser percebida de forma diferente? Essas questões, parece-nos, exigem engajamento empírico, trabalho conceitual sustentado e uma vontade de levar a sério as questões que, em um vernáculo mais antigo, eram referenciadas como espiritualidade, como um vetor fundamental para a transformação da relação contemporânea entre conhecimento, poder e subjetividade.

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