Edição 429 | 15 Outubro 2013

Biotecnologia e responsabilidade - para além do Prometeu moderno

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Márcia Junges e Andriolli Costa / Tradução: André Langer

Para o filósofo Antonio Diéguez-Lucena, é preciso ponderar com cautela os riscos que envolvem a criação de vida sintética, e não se ater à velha discussão de “brincar de Deus”

Biologia sintética é a ciência de redesenhar organismos vivos, “dotados com novas funções que não se desenvolvem na natureza”, e de criar novas formas de vida em laboratório. As possibilidades de uma ciência como essa, de acordo com o filósofo Antonio Diéguez-Lucena, são infinitas. A partir de uma perspectiva dos objetivos imediatos e em longo prazo, o pesquisador prevê conquistas que vão desde a criação de organismos criados para estimular o desenvolvimento de biocombustíveis até a produção de energia a partir da luz do sol ou mesmo bactérias capazes de retirar o CO² da atmosfera, colaborando para o combate ao efeito estufa. No entanto, quais seriam os riscos da liberação de organismos sintéticos no planeta? É possível ter realmente domínio absoluto sobre a vida criada? Ou estaria a humanidade construindo seu próprio Prometeu Moderno, como no Frankenstein de Mary Shelley?

Para Diéguez-Lucena, em entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line, no futuro “o ser humano será capaz, para ir diretamente ao essencial, de controlar a evolução da vida em nosso planeta, embora esteja por se ver se esse controle será tão absoluto como às vezes se pretende”. Isso não significa, no entanto, que tais pesquisas devam ser desencorajadas, mas, sim, que suas implicações sejam devidamente refletidas para além dos princípios mecanicistas que encaram a vida apenas como “informação digital codificada no genoma”. Não se trata da antiga — ainda que não superada — discussão de a Ciência estar brincando de Deus, mas de “desenvolver um sentimento de responsabilidade de acordo com este aumento de poder”. Estas reflexões, para o filósofo, não devem entrar no mérito da religiosidade, e sim de uma diferença de percepção em relação ao objeto. “Considerando-se ou não que a vida é sagrada, no que todos podemos concordar é que a natureza não pode ficar reduzida a um mero objeto à nossa disposição”, conclui.

Antonio Diéguez-Lucena possui graduação e doutorado em Filosofia pela Universidade de Málaga (Espanha) e atualmente é professor do Departamento de Filosofia da mesma universidade, onde ministra as disciplinas Ciência, Tecnologia e Sociedade, Filosofia da Ciência e Filosofia da Biologia. Entre seus trabalhos mais recentes destacam-se os livros La vida bajo escrutinio. Una introducción a la filosofía de la biología (Barcelona: Biblioteca Buridán, 2012); La evolución del conocimiento. De la mente animal a la mente humana (Madrid: Biblioteca Nueva, 2011) e Filosofía de la ciência (Madrid: Biblioteca Nueva, 2005).

Confira a entrevista.

 

IHU On-Line - O que podemos entender por biologia sintética?

Antonio Diéguez-Lucena - Embora muitas definições tenham sido propostas e se costume repetir que não há acordo sobre elas, o certo é que quase todas coincidem no essencial: a biologia sintética é um ramo da biotecnologia (embora inclua também importantes aspectos teóricos) que pretende redesenhar a vida existente e criar novas formas de vida. De forma mais precisa, podemos dizer que a biologia sintética pretende projetar e construir sistemas biológicos completos (organismos), ou componentes dos mesmos, criando-os de novo no laboratório ou obtendo-os a partir do redesenho de organismos vivos, dotados com novas funções que não se desenvolvem na natureza. Os componentes funcionais serão produzidos de forma padronizada e modular, de modo que possam ser facilmente utilizados como peças interconectáveis e intercambiáveis na fabricação de sistemas biológicos mais complexos com o objetivo de alcançar fins prefixados.

 

IHU On-Line - Quais são seus campos de atuação e seus objetivos fundamentais?

Antonio Diéguez-Lucena - Os objetivos e os campos de atuação da biologia sintética são muito diversos. Mas, para não despertar expectativas desmesuradas, que prejudiquem o próprio campo da pesquisa, convém, inicialmente, esclarecer que até o momento quase todos esses objetivos continuam no horizonte do desejável e que as coisas caminham de maneira mais lenta do que muitos pensaram no início, quando as dificuldades técnicas não se haviam manifestado ainda em toda a sua amplitude. Para esclarecer um pouco a situação, talvez fosse bom distinguir entre os objetivos imediatos e os perseguidos no longo prazo e, dentro de cada um deles, entre os teóricos e os práticos.

Objetivos imediatos

Entre os objetivos teóricos mais imediatos, destacaria a tentativa de estabelecer experimentalmente qual seria o genoma mínimo que permitiria a um organismo estar vivo e cumprir funções básicas. Isto traria uma informação muito valiosa para entender os mecanismos do funcionamento celular e permitiria, além disso, a criação de “chassis” celulares, preparados para usos diversos mediante sua posterior complementação genética. A isso se dedica um bom número de pesquisadores atuais em biologia sintética, e os avanços têm sido importantes. Andrés Moya  e sua equipe do Instituto Cavanilles de Biodiversidade e Biologia Evolutiva da Universidade de Valência (Espanha) estabeleceram, em 2004, trabalhando com bactérias muito simples, que o número total de genes necessário para o funcionamento de um organismo heterótrofo estava em torno de 206. Um número surpreendentemente baixo. No entanto, recentemente, a ideia de um genoma mínimo foi posta em questão. Alguns autores acreditam que a diversidade de genes necessários em diferentes organismos é muito grande e depende do contexto. Por esta razão, não parece ser possível encontrar um fator comum. Preferem, por isso, falar de genes persistentes que, embora não estejam presentes em todos os organismos, parecem repetir-se na maior parte dos casos, inclusive em ramos distantes da árvore da vida, e, portanto, são considerados importantes para a sobrevivência. Mas, de um ponto de vista econômico e midiático, primam os fins práticos. Não em vão, com eles se colocam em jogo interesses econômicos em rápido crescimento. Entre os objetivos práticos mais imediatos está a síntese de biomoléculas , que podem ser utilizadas como fármacos ou que apresentam outros atrativos comerciais, como seria o caso dos bioplásticos. A produção destas biomoléculas implica o desenvolvimento de uma bioengenharia capaz de projetar novas estradas metabólicas diferentes das existentes na natureza. 

Biocombustíveis

Outro campo de grande interesse é a produção de biocombustíveis, como o etanol, com bactérias ou microalgas geneticamente modificadas. Mas isto está ainda em seus inícios. Também se espera produzir grandes quantidades de hidrogênio de forma barata e inclusive se está trabalhando na projeção de microrganismos capazes de produzir energia a partir da luz do sol. E não se deve esquecer um dos objetivos práticos mais aventados pelos pesquisadores. Refiro-me às possibilidades de biorremediação, que a biologia sintética trata de oferecer. 

Biorremediação

Atualmente, já se empregam microrganismos para eliminar substâncias tóxicas em zonas contaminadas. A biologia sintética coloca a si própria a tarefa de projetar microrganismos deste tipo mais específicos e mais eficientes, de modo que – segundo se diz – com eles se poderiam solucionar muitos dos problemas ambientais que nos acometem. Estes microrganismos poderiam, por exemplo, retirar CO2 da atmosfera. Não obstante, esta afirmação deve ser contrabalançada com os riscos que a liberação de microrganismos sintéticos no meio ambiente acarretaria. Riscos tão grandes que algumas organizações já pediram formalmente a proibição da biorremediação mediante estes procedimentos.

Objetivos no longo prazo

Quanto aos objetivos no longo prazo, o fundamental, do ponto de vista teórico, é o esclarecimento da noção de vida. As pesquisas sobre a origem da vida em nosso planeta, aliadas a certos desenvolvimentos no campo da simulação da vida por computador (a chamada Vida Artificial), ajudaram notavelmente nos últimos anos para que formássemos uma ideia mais precisa de quais propriedades e processos são centrais no funcionamento dos organismos vivos. A biologia sintética, na medida em que permitir a criação de seres vivos artificialmente, proporcionará indicações que servirão como ponto de contraste para determinar quais destas propriedades são realmente indispensáveis. Os objetivos práticos, em médio e longo prazos, são os mais ambiciosos e se poderia dizer que carecem de limitação. A criação de vida no laboratório é, sem dúvida, o mais emblemático, e a pesquisa em protocélulas vai se encaminhando para isso. Mas, como de novo aqui os interesses comerciais serão prioritários, é provavelmente no campo da biomedicina e, especialmente, no da medicina de melhoramento que se darão os avanços mais notórios. 

Há a garantia de que, com a ajuda da nanotecnologia, a biologia sintética seja capaz de projetar mecanismos biológicos capazes de liberar fármacos exclusivamente nos lugares certos e nos momentos adequados, reparar células defeituosas, eliminar tumores ou potencializar o crescimento de determinados tipos de células. As terapias gênicas, por sua vez, poderiam fazer com que a medicina de melhoramento, isto é, aquela que não busca restabelecer a saúde, mas melhorar as condições físicas, intelectuais e anímicas do ser humano, se convertesse no tipo de medicina dominante. A ninguém passa despercebido que isto inevitavelmente trará problemas éticos e sociais de grande envergadura, os quais será preciso prever e para os quais será preciso buscar soluções.

 

IHU On-Line - Como é a relação entre a biologia e a engenharia neste novo campo do conhecimento?

Antonio Diéguez-Lucena - Na engenharia genética, assim como foi praticada até agora (o que alguns já chamam de ‘engenharia genética clássica’), o termo ‘engenharia’ tinha um uso analógico. Falava-se de engenharia genética porque aquilo que os biotecnólogos faziam tinha certas similitudes com o que os engenheiros faziam: fundamentalmente, aplicar conhecimentos teóricos para transformar a natureza. Na biologia sintética, já não há apenas uma similitude genérica, mas um uso explícito de técnicas, procedimentos, critérios e valores da engenharia aplicados à biologia. Entre eles se encontram, por exemplo, a projeção prévia realizada com computadores, a padronização e a modularização (fabricação de componentes isolados de forma que sejam intercambiáveis e combináveis), a automatização e a simplificação dos processos, as análises de eficiência prévias (custos-benefícios), o controle de resultados, a busca explícita da industrialização e o acesso aos mercados, etc.

 

IHU On-Line - Qual é o contexto do surgimento da biologia sintética?

Antonio Diéguez-Lucena - Embora o termo já tenha sido empregado no começo do século XX, e a ideia, como mera possibilidade, exposta em várias ocasiões ao longo desse século, é apenas no começo do século XXI que começam a aparecer publicadas as primeiras pesquisas relevantes neste campo. A biologia sintética é, pois, um âmbito de pesquisa muito jovem. Sua formação se deu graças à confluência de diversas disciplinas que, por sua vez, tiveram que alcançar um grau suficiente de desenvolvimento prévio. Estas disciplinas são fundamentalmente a biologia molecular, a engenharia, a genética, a química, a microbiologia e as ciências da computação. O primeiro departamento universitário dedicado à biologia sintética foi criado na Universidade da Califórnia, em Berkeley, em 2004. Nesse mesmo ano, realizou-se, no Instituto de Tecnologia de Massachusetts, o primeiro congresso internacional sobre o assunto. A partir de então, foram realizados outros, sendo o último realizado no Imperial College de Londres, em 2013.

 

IHU On-Line - Desde que surgiu, quais são as principais mudanças de paradigma pelos quais passou?

Antonio Diéguez-Lucena - Na realidade, é um campo de pesquisa muito jovem para que tenha passado por uma mudança de paradigma no sentido estrito do termo. Ou melhor, deve-se dizer que a biologia sintética surge da mudança de ideias e de procedimentos que se dá na biologia a partir de 1953, com a descoberta da estrutura molecular do DNA por parte de James Watson e Francis Crick . Esta descoberta sentou as bases da biologia molecular, abriu as portas para um enfoque molecular e genético da medicina e assentou cada vez com mais força entre os cientistas a convicção de que uma célula viva, em última instância, não é mais que um conjunto sumamente complexo e bem coordenado de mecanismos moleculares. 

Isto não foi, certamente, uma mudança de paradigma no estilo kuhniano , posto que não foi precedido por um período de crise, nem por uma revolução científica, e, por outro lado, não colocou em questão o paradigma biológico anterior. Pelo contrário, foi uma mudança apoiada em uma infinidade de descobertas prévias que prepararam o terreno sem grandes rupturas epistemológicas. O filósofo britânico Alexander Bird  chamou este tipo de mudança revolucionária na ciência, que não implica em questionamento das ideias anteriores, de ‘revolução conservadora’. Provavelmente, a biologia sintética também será uma destas revoluções conservadoras. Não parece que seu desenvolvimento irá significar uma mudança radical dos conceitos e teorias biológicas vigentes, embora certamente contribuirá para a redefinição de alguns conceitos centrais, como o conceito de vida, e, por outro lado, certamente promoverá procedimentos metodológicos que modificarão os vigentes até agora na biologia molecular.

 

IHU On-Line - Quais são as principais descobertas da biologia sintética até hoje?

Antonio Diéguez-Lucena - Sem dúvida, a conquista mais conhecida até este momento, porque foi a que mais difusão teve nos meios de comunicação, é a Synthia, bactéria com genoma completamente sintético, criada por Craig Venter  e sua equipe em 2010. O que estes pesquisadores conseguiram foi sintetizar artificialmente o genoma da bactéria Mycoplasma mycoides, e este genoma artificial foi utilizado para substituir o genoma original em células de Mycoplasma capricolum, processo que deu lugar a células capazes de se replicar.

Mas uma conquista mais significativa por sua utilidade prática, embora isso não seja do conhecimento do grande público, foi a produção sintética do ácido artemisínico, que é um precursor químico necessário para a fabricação de um dos fármacos mais usados contra a malária: a artemisina. Jay Keasling , do Lawrence Berkeley National Laboratory, conseguiu reconfigurar alguns genes de uma levedura bastante comum, a Saccharomyces cerevisiae, empregada na elaboração da cerveja, para que esta produzisse tal substância. Até agora, a artemisina era obtida de uma planta, a Artemisia annua, ou absinto doce, oriunda da China, o que limitava e encarecia substancialmente sua produção. Por esta razão, o fármaco estava fora do alcance da maioria das pessoas nos países pobres.

Apesar de não ter alcançado a mesma divulgação obtida pela conquista de Craig Venter e sua equipe, do ponto de vista social este avanço tecnológico tem maior importância, porque não apenas ajudará no tratamento de uma das doenças que mais seres humanos mata anualmente, mas também porque é a primeira vez que um projeto pertencente à biologia sintética consegue ter verdadeiro impacto industrial e comercial. Alguns críticos assinalaram que a comercialização da artemisina produzida artificialmente terá um efeito secundário muito negativo: acarretará um prejuízo econômico significativo às zonas agrícolas, fundamentalmente na China, dedicadas ao cultivo do absinto doce . Isto é algo que deveria ser evitado mediante ações políticas que busquem alternativas econômicas para estas zonas, o que não parece ser nada fácil.

 

IHU On-Line - O que apontam as descobertas científicas derivadas da biologia sintética sobre o gerenciamento da vida e o papel do ser humano na manipulação da vida?

Antonio Diéguez-Lucena - É óbvio que os futuros avanços na biologia sintética, especialmente no caso de muitas das atuais promessas se efetivarem, colocarão nas mãos do ser humano um poder de controle sobre a vida como nunca antes visto. Um poder muito maior que aquele proporcionado pela engenharia genética clássica baseada no DNA recombinante. O ser humano será capaz, para ir diretamente ao essencial, de controlar a evolução da vida em nosso planeta, embora esteja por se ver se esse controle será tão absoluto como às vezes se pretende. É possível pensar que os organismos sintéticos encontrem vias para escapar desse controle humano e sigam um caminho evolutivo autônomo. Além do mais, há um componente aleatório e contingente na evolução biológica, o que torna praticamente impossível que o ser humano consiga administrá-la por completo. Este é um elemento de juízo que deve ser levado em conta por todos aqueles que confiam plenamente nos mecanismos de segurança. Posto que o controle total é impossível, convém extremar a prudência neste assunto.

 

IHU On-Line - A partir da biologia sintética, como se apresenta a questão do pós-humano em nosso tempo?

Antonio Diéguez-Lucena - Nesta tentativa de controlar a evolução biológica à qual acabo de me referir, a trajetória evolutiva futura do ser humano será um objetivo permanente. Há quem afirmou que não só não se deve impedir este controle sobre a nossa própria espécie, como temos o dever moral de assumi-lo. Para os que pensam assim, quando a tecnologia o permitir e seja seguro, o melhoramento genético da nossa espécie será algo desejável e irrenunciável. Os defensores do pós-humanismo defendem que isso nos conduzirá à criação de uma nova espécie a partir da nossa, uma espécie pós-humana. Esta possibilidade, no entanto, além de ser meramente especulativa no momento, recebeu críticas a partir de diversas posições ideológicas.

 

IHU On-Line - Tendo em conta que a nanotecnologia pode aprender da natureza a fim de fabricar novos dispositivos “imitando-a” em suas estruturas e funcionalidades, quais são as problemáticas que se colocam sobre a autonomia do sujeito e sua “equiparação” ao poder Criador (divino)?

Antonio Diéguez-Lucena - Este último assunto, o de se a biologia sintética encerra o perigo de “brincar de ser Deus”, foi muito repetido e merece uma atenta consideração. Aqui não podemos nos estender sobre essa acusação, que, certamente, não procede apenas de ambientes religiosos, mas também de alguns movimentos ecologistas. A ideia que há por trás dela é que a vida, de algum modo, tem um caráter sagrado ou inviolável e que não deve ser manipulada nem subjugada. Na literatura, temos o mito de Frankenstein, criado por Mary Shelley , em 1816, quando completava apenas 20 anos, que se converteu em um símbolo universal dos perigos que a técnica encerra quando o ser humano transgride determinados limites considerados como intransponíveis. O mito representa, de forma muito efetiva, o perigo de que a criação da técnica adquira autonomia frente ao ser humano e acabe voltando-se contra ele. 

Inteligências artificiais

No entanto, não deixa de ser estranho o fato de que essa acusação não se tenha formulado também contra uma disciplina como a Inteligência Artificial - IA, que trata precisamente de criar algo que, para o cristianismo e outras religiões, caracteriza o ser humano e o dota de singularidade em relação aos animais: a inteligência. De fato, a Igreja Católica aceita sem problemas a origem evolutiva do ser humano, assim como está estabelecido pela paleontologia atual, mas acrescenta a exceção de que a alma (e suponho que aqui se deve incluir a mente e a inteligência humana) é criação direta de Deus. Por que, então, não se costuma acusar os engenheiros que trabalham na IA de estarem brincando de ser Deus e, ao contrário, foi uma acusação repetida contra biólogos e médicos em diversos momentos da história recente (como quando começaram os transplantes de órgãos ou quando se iniciou o desenvolvimento das técnicas de fecundação in vitro)? Não tenho uma resposta clara e bem meditada sobre isto, mas tenho a impressão de que qualquer mudança importante relacionada com a vida, com a reprodução, com o governo do corpo, por assim dizer, é vista imediatamente por algumas pessoas como um potencial desafio aos códigos morais tradicionais, coisa que não ocorre com o puramente mental. Ao fim e ao cabo, estes códigos tradicionais deram uma grande importância ao controle sobre o “carnal”.

Eu, no entanto, não vejo por que uma célula artificialmente criada representaria um desafio maior para a nossa condição de seres humanos ou para os nossos códigos morais que a construção de uma máquina inteligente. Creio que a acusação de brincar de ser Deus pretende infundir medo sob a ideia de que a tecnologia está entrando em âmbitos nos quais jamais deveria entrar. Mas, como foi assinalado em múltiplas ocasiões, inclusive por vários teólogos, os argumentos usados para sustentar esta afirmação são muito fracos. Em primeiro lugar, ninguém pode estabelecer com clareza e de uma forma assumida por qualquer interlocutor o que é brincar de ser Deus; em segundo lugar, essa acusação só terá peso para as pessoas crentes; e, em terceiro lugar, sempre se pode aduzir, como fazem os mais tecnófilos, que, de certo modo, a tecnologia não fez outra coisa ao longo da sua história que ultrapassar permanentemente fronteiras que muitos consideravam intransponíveis.

Criação de vida

Estou convencido de que, no dia em que tivermos uma primeira célula completamente artificial construída em laboratório, caso isso venha a acontecer, a conquista será vista como importante, mas recebida com normalidade por parte do público, porque, entre outras razões, terão sido dados anteriormente muitos passos graduais para se chegar até aí. Alguns analistas, certamente, ventilarão as arbitrariedades do doutor Frankenstein, mas o alvoroço durará apenas alguns dias. Por outro lado, uma das principais razões pelas quais se acusa a biologia sintética de brincar de ser Deus é porque parece questionar a separação entre o natural e o artificial, entre o vivo e o inerte. No entanto, essas fronteiras não são tão claras como muitas pessoas pensam. Poderia haver desacordo, entre os próprios cientistas, sobre se um determinado sistema biológico sintético complexo obtido pela primeira vez em laboratório está realmente vivo ou não. Não temos uma noção clara e distinta do que é a vida. Muitas definições foram formuladas, mas todas têm seus pontos fracos. A vida não é algo que possa ser caracterizado mediante um conjunto de propriedades necessárias e suficientes. Há casos imprecisos e limítrofes, como o vírus, que já foram sintetizados em laboratório, e que, dependendo dos critérios selecionados, podem ser classificados ou não como seres vivos. A biologia sintética só fará ressaltar este fato com a criação de novas entidades limítrofes.

Há uma preocupação, no entanto, que subjaz à ideia de que estamos brincando de ser Deus e que, esta sim, vale a pena resgatar. Os seres humanos foram aumentando o seu poder sobre a natureza de forma avassaladora nas últimas décadas. Necessitamos desenvolver um sentimento de responsabilidade de acordo com este aumento de poder. Para isso, não seria ruim se começássemos a contemplar a vida e a natureza em geral com uma atitude mais respeitosa e menos invasiva. Digamos que, considerando-se ou não que a vida é sagrada (isto dependerá das ideias religiosas de cada um), no que todos podemos concordar é que a natureza não pode ficar reduzida a um mero objeto à nossa disposição, o que Heidegger  chamava de “fundo de reserva” (Bestand). Os enormes benefícios comerciais produzidos pela biologia sintética não deveriam impedir uma regulação adequada neste campo. E, apesar do que defendem alguns políticos e cientistas, a autorregulação é insuficiente, como já denunciaram, em 2007, em uma carta aberta, mais de 30 organizações internacionais e voltaram a repetir, em 2010, ainda mais organizações em outra carta similar. Aqui, mais do que em qualquer outro lugar, é onde aparece a necessidade de construir o que o filósofo da ciência Philip Kitcher  chamou de “ciência bem ordenada”, isto é, uma ciência na qual os cidadãos possam exercer um verdadeiro controle da agenda de pesquisas e na qual a sua voz, transmitida através de procedimentos democráticos, e seus verdadeiros interesses sejam levados em conta.

 

IHU On-Line - Impedir a morte e o envelhecimento são dois antigos sonhos da humanidade. Em que sentido estas ideias encontram ressonância na biologia sintética?

Antonio Diéguez-Lucena - Na realidade, não são objetivos imediatos das pesquisas neste campo. Mas é muito provável que cedo ou tarde o sejam. Na medida em que descobrirmos modos de alongar a nossa vida, quer pela manipulação de nossos genes, quer pelo desenvolvimento de técnicas regenerativas de tecidos ou de reprogramação celular, isto se converterá em uma das principais finalidades da biologia sintética.

 

IHU On-Line - Que limites e possibilidades são constatados a partir do “melhoramento humano”, que se pode aplicar à biologia sintética?

Antonio Diéguez-Lucena - Não é possível dar uma resposta clara a esta pergunta no momento. A medicina de “melhoramento” (enhancement) não passa, atualmente, de uma promessa. Deixando de lado a questão de se todos esses “melhoramentos” que alguns desejam são realmente melhorias para o ser humano, a pergunta a se fazer é se estaríamos dispostos, como defendem os pós-humanistas, a levar esses melhoramentos para além de um ponto em que já não podemos mais dizer que somos a espécie biológica que temos sido. Com outras palavras, teríamos que nos questionarmos se gostaríamos de desaparecer por conta de querer “melhorar” a nossa espécie e colocar outra no lugar da nossa. É lógico que semelhante perspectiva repugna muita gente, por mais que se diga que a nova espécie será descendente da nossa.

 

IHU On-Line - Gostaria de acrescentar algum aspecto não questionado?

Antonio Diéguez-Lucena - A biologia sintética, como qualquer programa de pesquisa científica, encerra certos pressupostos filosóficos que não são imediatamente visíveis. Para mencionar apenas os mais evidentes, pode se defender que por trás dela há, em geral, uma concepção mecanicista da vida, que faz com que a célula seja entendida como um ente computacional, uma máquina biológica, na qual cada peça é estritamente regulada segundo um programa genético (modulado pelo ambiente). O informacional cobra prioridade sobre outros aspectos dos seres vivos, como a autonomia ou a autopoiesis . Craig Venter defendeu que a vida não é mais que informação digital codificada no genoma, que pode inclusive ser teletransportada. A isto se pode acrescentar a presunção estabelecida programaticamente de que as propriedades emergentes poderão ser controladas em sua totalidade. É importante que estas hipóteses sejam assinaladas e analisadas com atenção.

Talvez necessitemos que alguém coloque um contraponto filosófico a algumas das pretensões e hipóteses que foram assumidas neste campo. Esta seria uma tarefa análoga àquela que John Searle  ou Hubert Dreyfus  realizaram em décadas passadas em relação aos pressupostos e fins da Inteligência Artificial. Há, de fato, argumentos poderosos para pensar que algumas destas hipóteses são questionáveis inclusive desde colocações provenientes da própria biologia. No momento, esta tarefa está pendente. Este tipo de análise me parece mais interessante do ponto de vista filosófico do que daquele puramente ético. Com muita frequência se recorre, nestes casos, à filosofia em busca de orientação ética, mas apenas quando se tem em conta que a análise epistemológica, e inclusive metafísica, da ciência pode render frutos para a própria ciência, como aconteceu com os trabalhos de Hubert Dreyfus.

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