Edição 426 | 02 Setembro 2013

''Clara'': a ''pulsação da vida'' nesse diálogo de Schelling

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Márcia Junges

SCHELLING, F. W. J. Clara: acerca da conexão da natureza com o mundo dos espíritos: fragmento de um diálogo (Tradução e notas de Muriel Maia-Flickinger. Ijuí: Unijuí, 2012) Pouco conhecido no Brasil também em função de uma recepção equivocada de sua obra madura, na Berlim da década de 1840, o filósofo alemão manteve em segredo a composição de um diálogo sobre a vida após a morte em uma época cujo discurso dominante era o racionalismo objetificador das ciências“, acentua Muriel Maia-Flickinger

“O momento especial, que deu origem à filosofia do Idealismo alemão, forjou também uma nova sensibilidade, um novo modo de percepção da realidade, com um senso muito apurado para os subterrâneos do Eu tanto em seu potencial produtivo, quanto destrutivo“, explica a professora Muriel Maia-Flickinger, em entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line. Foi dentro desse contexto que nasceu a primeira filosofia de Schelling, autor de Clara: acerca da conexão da natureza com o mundo dos espíritos: fragmento de um diálogo, traduzido pela pesquisadora e publicado no ano passado. A relação com Hegel com esse pensador é um dos aspectos mencionados: „Hegel lecionou 13 anos na Universidade de Berlin, formando gerações de estudantes no que, a partir da assunção do poder pelo rei da Prússia, em 1840, era entendido como „as sementes de dragão do panteísmo hegeliano“. O novo regime convocava Schelling para ajudar a enfrentar e desenvolver para melhor tais sementes e, „com sua sabedoria, experiência e força de caráter“, ficar ao lado do rei“. A conexão existente entre o pensamento de Schelling e aquele de Hölderlin também é indicada por Maia-Flickinger na entrevista à IHU On-Line: „Tal como Hegel, Hölderlin partilhou, por um tempo, o mesmo quarto com Schelling no período de seus estudos em Tübingen. Sua relação durou até a fase em que Schelling passou a lecionar em Jena, onde Hölderlin já acompanhava as aulas de Fichte mesmo antes de Schelling aí chegar“. Levada a Schelling em passo „de caranguejo“, via Nietzsche e Schopenhauer, Muriel Maia-Flickinger descobriu no „oceano schellinguiano“ uma “fonte oculta sabida ou não sabida daqueles dois filósofos. Topei com o diálogo‚ Clara‘ por acaso e fascinou-me a pulsação de vida que percorre esse escrito“, pontuou.

Muriel Maia-Flickinger é graduada em Filosofia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, mestre em Filosofia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul – PUCRS e doutora em Filosofia pela Universidade de Kassel, na Alemanha, com a tese Jenseits des Willens zum Leben, traduzida como A Outra Face do Nada (Vozes: Petrópolis, 1991). Publicou artigos em livros e revistas no Brasil e na Alemanha; é professora emérita da UFRGS desde 1997 e, em sua vida acadêmica, ocupou-se sobretudo com a filosofia de Schopenhauer, a qual talvez retome agora, examinando-a sob o aspecto  de sua relação com a Pedagogia.

Confira a entrevista.

 

IHU On-Line - Qual o contexto filosófico em que floresce a filosofia de Schelling ?

Muriel Maia-Flickinger - O contexto é um dos mais fervilhantes da História da Filosofia. Rudiger Safranski foi muito feliz ao dizê-lo "os anos selvagens da filosofia". Kant  pusera a auto-cosciência no ápice da filosofia e a Revolução Francesa prometia igualdade e liberdade a uma geração composta de jovens intelectuais, literatos, poetas, artistas e cientistas, que se sentia humilhada e subjugada pela vigência de uma estrutura ainda feudal, leviana e prepotente, nas cortes alemãs.  É conhecido o entusiasmo de Goethe  pela filosofia do Eu, de Fichte , embora, de modo muito saudável, desconfiasse dos filósofos. A verdade é que, tal como o poeta, toda essa geração reconheceu na por ele empreendida exacerbação da auto-consciência kantiana em um  Eu cujo poder incondicionado põe o mundo na presença, a sua própria força criadora inconsciente como que magicamente iluminada pelo olhar apaixonado do filósofo. Para Goethe, como para os Românticos, Fichte tornou-se o 'filósofo artista' ou o decifrador da força oculta da Imaginação divina presente em cada ser humano. De fato, toda uma geração de filósofos e intelectuais passou a acreditar que estaria vivendo um momento sem par na história humana.  Estavam convictos de que a consciência humana vinha sofrendo uma espécie de metamorfose sagrada, sim, que a ela se abririam em breve os segredos da vida e do todo. 

Subterrâneos do Eu

Não devemos esquecer que as ciências, desde Newton , vinham revelando dimensões ocultas aos sentidos naturais. E agora, em especial, com as investigações acerca da eletricidade e do magnetismo em conexão com processos fisiológicos, fazia furor sobretudo a "eletricidade galvânica", por apontar à transmutação de energia química em elétrica; concluiu-se daí uma "eletricidade animal", que resultou na crença de que breve se decifraria a gênese da vida.  Crença de que nasceu, por exemplo, mais tarde e de um enclave famoso entre gênios românticos ingleses, o "Frankenstein" de Mary Shelley .

De fato, a tradicional teoria do "gênio" sofreu, nesta época, uma virada perigosa, porque se passou a atribuir ao gênio científico e artístico os poderes (erroneamente deslocados para o eu empírico) revelados no Eu absoluto de Fichte; o que levaria muitos indivíduos dessa geração a sentir-se como espécie de deuses, trazendo à presença criaturas e mundos nascidos de um imaginário incontrolável. Não por acaso, Napoleão  tornou-se, então, a própria encarnação daquele Eu, um gênio da história, capaz de destruir e recriar o mundo à sua medida. Só aos poucos foi-se percebendo que o gênio encarnado em sua figura seria antes o representante do inferno e do mal, não o agente sonhado da transformação do mundo em um lugar mais elevado. Enfim, o momento especial, que deu origem à filosofia do Idealismo alemão, forjou também uma nova sensibilidade, um novo modo de percepção da realidade com um senso muito apurado para os subterrâneos do Eu tanto em seu potencial produtivo quanto destrutivo. Safranski definiu perfeitamente a raíz dessa nova sensibilidade enquanto o "prazer de ser um Eu". 

 

IHU On-Line - Normalmente, Schelling é situado entre Fichte e Hegel  quando se estuda o Idealismo alemão. Qual o motivo dessa delimitação e em que aspecto se apresenta a influência de Kant em sua obra? 

Muriel Maia-Flickinger - Fichte foi o filósofo que, a partir da descoberta de um nível indeterminado na autoconsciência kantiana, abriu a filosofia do Idealismo alemão. Schelling o seguiria e, por muito tempo, acreditaria ou desejaria acreditar, tal como o próprio Fichte, estar desenvolvendo a filosofia do mestre. Hegel, mais velho que Schelling, conviveu intimamente com este durante os estudos em Tübingen, ainda que por breve período e, ao contrário deste, custou a chegar ao seu próprio pensamento, seguindo-o até aí. Há quem veja em Hegel aquele que completou a filosofia de Schelling, outros invertem essa relação: Schelling teria mostrado os limites da filosofia do Idealismo alemão, abrindo à reflexão os temas mais contundentes da filosofia após ele. 

É impossível pensar o Idealismo alemão sem a filosofia de Kant. Foi este que deslocou a força gravitacional da filosofia para o interior do homem, ao afirmar a autoconsciência como seu ponto mais alto. E, embora fechasse, com isso, a porta à metafísica e às verdades absolutas, foi também ele que, nessa proibição, provocou o desejo e a busca, na própria autoconsciência, de uma saída para o indeterminado. Pois foi justamente nela, que essa nova geração de pensadores encontrou a 'falha' de Kant na sua crítica. A saber, na 'apercepção transcendental', à qual, segundo eles, Kant teria chegado sem consciência do que, com isso, havia efetivamente conquistado para a filosofia. O que eles reclamam na autoconsciência é um nível de imediatez aberto em uma 'intuição intelectual' pré-reflexiva, no qual dá-se um conhecimento anterior a todo pensamento empírico. 

Limiar perigoso

Kant recusava e negava a possibilidade de uma tal intuição, porque, segundo pensava, a ela seria dado produzir por força própria os seus objetos; coisa de um deus, portanto. Ao que Fichte e Schelling objetam que só a 'consciência' pressupõe objetos, não, entretanto, a 'intuição intelecutal'; esta só é possível por não ter objeto algum, sendo justamente por isso o que torna possível a 'consciência', cuja característica é estar voltada, permanentemente, aos mesmos. E aqui temos o limiar perigoso, chegados ao qual e sem saber discernir o transcendental do empírico, muitos gênios criadores deixaram-se arrastar, então, pelos delírios da fantasia. Contudo, com o 'Eu absoluto' da 'intuição intelectual' nem Fichte nem Schelling pensavam em um ato a partir do qual seriam extraídos, do nada, os objetos intramundanos, como o interpretaram aqueles. Trata-se, no 'Eu absoluto' da 'intuição intelectual', do lado interior e possibilitador da consciência na linha de demarcação do mundo exterior. Os dois estavam ademais convictos de que toda a filosofia de Kant era, na verdade, o resultado daquela intuição, sem que esse se tivesse dado conta disso.    

É importante ainda indicar, rapidamente, a diferença que, desde aí, se desenhou entre a concepção do 'Eu absoluto' por Fichte e por Schelling, porque foi esta que levou à ruptura final entre ambos. Se os dois concordam que a 'intuição intelectual' (que garante a identidade absoluta da consciência) é irreflexiva, com Schelling, no entanto, ela contém desde o início um ser que antecede todo o pensamento e toda representação. Torna-se, assim, muito mais radicalmente irreflexiva do que o é em Fichte; porque, por excluir toda relação de algo com algo, fica acima da consciência e, mais ainda, não mais se identifica com a autoconsciência, como acontece em Fichte (conf. in Frank, cap. 2). 

 

IHU On-Line - Qual a importância e o impacto da amizade de Schelling com Hölderlin ?

Muriel Maia-Flickinger - Tal como Hegel, Hölderlin partilhou com Schelling, por um tempo, o mesmo quarto, no período de seus estudos em Tübingen. Sua relação durou até a fase em que Schelling lecionou em Jena (a última vez em que se viram foi quando do casamento do filósofo com Caroline, em Murrhardt), onde Hölderlin já acompanhava as aulas de Fichte bem antes de Schelling aí chegar. Sabe-se que a solução encontrada por Schelling ao aprisionamento de Fichte no círculo fechado da autoconsciência (reescrevendo permanentemente a sua "Doutrina da Ciência") foi, na verdade, dada a ele por Hölderlin. Este havia chegado a essa solução em 1794, na concepção de um "ser transreflexivo" anterior à consciência e regido por uma "harmonia pré-estabelecida" entre ideal e real. Schelling assumiu plenamente essa solução e conta-se que, em encontro entre os dois, Hölderlin lhe teria assegurado a sua (de Schelling) superioridade sobre Fichte. Ainda assim, ficou-lhe clara a hesitação do amigo em assumir a diferença que o separava do filósofo. Quando Schelling o fez, afinal, e poderia agora recorrer a Hölderlin para trabalharem juntos, este se havia recolhido a sua torre nas margens do Neckar. De fato, Schelling pouco fez pelo amigo e, pedindo a Hegel que dele se ocupasse, este recusou. (conf. in Frank, cap. 3) 

 

IHU On-Line - Em que consiste a "Filosofia da Natureza" de Schelling?

Muriel Maia-Flickinger - Para Fichte a natureza é um Não-Ser frente ao Eu que a conhece e determina. Nada existe nela por detrás do ser objeto do sujeito cognitivo, de modo que o  conhecimento científico lhe é adequado e a esgota. Schelling, pelo contrário, volta-se a ela a partir do pensamento fundamental da Identidade entre espírito e natureza, sujeito e objeto, conhecimento e ser, ideal e real. Ele está certo de que é possível ultrapassar a crença generalizada de que a natureza seria algo meramente dado à consciência; mais ainda, ele afirma existir um idealismo da natureza, do qual aquele da consciência é, na verdade, derivado. Da perspectiva da consciência só conhecemos os objetos no instante em que a penetram; sua proposta para conhecê-los na sua primeira formação, é  despotencializar o Eu, isto é, torná-lo natureza e reiniciar, então, com ele o seu processo. Munido do que chamou uma 'física especulativa' ele se debruçou sobre esse Eu da natureza e do cosmo pensando-o como uma estrutura orgânica incondicionada. 

Foram os seus estudos de matemática, ciências e medicina, além dos resultados a que chegavam a física, a química e a medicina da época, que o levaram a pensar numa unidade oculta das forças da natureza no orgânico e inorgânico. E o que aí sublinhou foi a ideia da natureza como um todo, em oposição consciente à concepção do materialismo mecanicista, segundo o qual o organismo seria uma consequência do mecanismo.  

Ecos inexistentes

O abismo entre o inorgânico e orgânico, Schelling tentou ultrapassá-lo deslocando para a matéria o princípio do organismo e afirmando que todos os fenômenos da natureza são produto da permanente metamorfose orgânica do universo. Ele imprimia, assim, ao cosmo, contra a ideia vigente de uma natureza morta, os sinais de uma vida profunda; de modo que, se abordada diferentemente do modo cognitivo limitado das ciências empíricas (atomístico-mecanicista), a natureza entregaria de bom grado ao homem os segredos mais ocultos de seus processos. Contra Kant, que também via nas leis matemáticas uma necessidade geral, Schelling só aceitava a aplicação dos cálculos matemáticos ao que não é essencial nos fenômenos, mas meramente empírico, como o movimento e as distâncias entre os astros, o tempo de seus movimentos, etc. Acerca da essência desses movimentos ou do em si dos mesmos, porém, as formas matemáticas nada diriam, por até aí representarem um formalismo vazio, não aplicável à verdadeira ciência da natureza. 

O filósofo não nega, portanto, a precisão e a capacidade de previsão do formalismo matemático, mas sim o seu valor para o conhecimento da natureza em si mesma; porque a interpretação abstrata que aquele formalismo dá da matéria ignora tudo o que nela é subjetivo (espírito), a sua vida perceptiva íntima, debruçando-se unicamente sobre o que nela é nulo. 

Tendo isso em vista e abrindo-nos aos sinais de alerta que a natureza nos vem de há muito enviando, parece-me importante salientar a posição de Jochen Kirchhoff, sensível intérprete de Schelling, que lamenta a inexistência de ecos de sua concepção da natureza nos meios científicos e alerta a que as chances de sobrevivência da humanidade dependeriam de uma 'revolução cultural', que nos fizesse repensar, radicalmente, os fundamentos do real, levando a inteligência científica a uma nova concepção da natureza e do cosmo (conf. in Kirchhoff).

 

IHU On-Line - Que relação pode ser estabelecida entre a concepção da natureza por Schelling e o que se convencionou chamar de panteísmo?

Muriel Maia-Flickinger - O conceito 'panteismo' surgiu no início do século XVIII e se formulou na afirmação de que a matéria do mundo, a natureza ou o conjunto de todas as coisas seria o único e o mais elevado Deus. Por isso, os panteístas passaram a ser tomados, em geral, por materialistas (hyloteistas), e consequentemente, ateístas. Na Alemanha acontecia, ao tempo, uma forte discussão em torno à filosofia de Spinoza  ("Deus sive Natura" ou 'Deus enquanto Natureza'). No seu perfeito racionalismo, essa filosofia era considerada um panteísmo ateu e fatalista, passando a usar-se os conceitos de 'spinozismo' e 'panteísmo' enquanto sinônimos. Schelling reconhecia que toda pespectiva racional haveria de sentir-se de algum modo atraída pela doutrina panteísta; e ele mesmo chamou para si a alcunha de 'panteísta' ao qualificar (nos escritos para as aulas ministradas em Jena) sua própria "filosofia da natureza" como um "spinozismo da física". Ainda assim, vimos que ele não pensava a natureza como matéria morta, senão como um organismo vivo autoprodutivo, logo, como sua própria causa e efeito. O que, contudo, sua "filosofia da natureza" não resolvia, provocando a acusação de ateísmo (perigosa à época e já tendo custado a Fichte a cátedra em Jena), era o 'como' de o mundo não ser apenas uma pura produtividade divina infinita (natura naturans), senão um mundo corpóreo finito (natura naturata). 

Panenteísmo

Foi isso que levou Schelling a considerar o que se oculta sob o conceito de 'matéria' um dos maiores mistérios da filosofia. A  virada no seu pensamento aconteceu quando ele encontrou, no conceito de liberdade, a possibilidade de fundamentar uma separação entre o Ser Absoluto e a finitude material do mundo a partir de uma "queda". Segundo o filósofo, é o Absoluto ele mesmo que empresta ao que dele se separa, por sua própria liberdade, não só a essência de si mesmo, senão também a autonomia que lhe permite rebelar-se contra ele. Com essa "queda" livremente querida de uma imagem oposta ao Absoluto e a partir de dentro do mesmo, escorre junto, na matéria do mundo fenomênico, o que voltará a aparecer enquanto 'liberdade' no processo de seu desenvolvimento. Liberdade que é tanto a última pista do divino no interior do mundo finito, quanto a marca do mesmo na finitude a ele oposta. Com isso, Schelling desloca para Deus a possibilidade do mundo finito, mas põe, simultaneamente,  dentro deste último o seu próprio fundamento de realidade. Isso fica claro a partir de seu "Escrito sobre a Liberdade" (1809), quando passa a falar em uma "natureza em Deus", logo, em um fundo obscuro dentro desse, o qual não é ele mesmo e de onde se arranca o mal como obra da liberdade humana. 

É preciso acrescentar, ainda, que o fim a que leva a 'queda' ou o fim do desdobramento do espírito no mundo ("Odisséia do Espírito") é a união também livre com Deus não só do homem, mas da natureza e do cosmo. Com isso, fica impossível entender a filosofia de Schelling como um 'panteísmo', no sentido indicado; antes se poderia falar em um 'panenteísmo' ou 'tudo em Deus', cujo conceito nasceu também naquele período (ver tbém. in Baumgartner/Korten e Sandkühler). 

 

IHU On-Line - E quanto à amizade com Hegel, como esta proximidade resulta importante para o pensamento de Schelling?

Muriel Maia-Flickinger - Schelling só passou a defender abertamente sua própria posição recusando a de Fichte, a partir de 1801; isso aconteceu quando da concepção de sua 'Filosofia da Identidade' e de algum modo motivado por Hegel. A esse tempo, ele e Hegel estavam muito próximos;  este encontrava-se em Jena e se posicionava francamente a seu favor, no seu primeiro escrito aí publicado ("A Diferença dos Sistemas da Filosofia de Fichte e Schelling"). Foi, de fato, esta publicação que tornou pública a controvérsia entre Schelling e Fichte, até aí limitada a cartas, nas quais ambos tentavam persuadir um ao outro da justeza da própria posição. Schelling e Hegel ainda trabalharam juntos por algum tempo, influenciando-se mutuamente, embora filosoficamente Schelling ainda dominasse a relação; trabalharam em parte também paralelamente, construindo o Sistema da Identidade (no qual o existente no seu todo é pensado a partir da identidade absoluta de pensar e ser, razão e realidade). 

Enquanto Schelling insiste, porém, em sua "filosofia da natureza", Hegel volta-se, cada vez mais, à "filosofia do espírito". Segundo Schmied-Kowarzik , o que levou à separação progressiva de ambos foi o fato de Hegel tentar alcançar a unidade do pensar e do ser por meio do processo do pensamento, Schelling, no entanto, procurar demonstrar a unidade de ambos no processo da realidade. 

Auto-engano da consciência

A separação definitiva entre os dois só ocorreu mesmo após a publicação da "Fenomenologia do Espírito" (1807), na qual Hegel critica ironizando - para alguns intérpretes talvez não intencionalmente - a posição de Schelling. O que mais feriu a este no episódio foi, porém, o não encontrar, nesse escrito de Hegel, qualquer menção  a uma possível aliança entre natureza e história. Schelling sentiu-se traído e, em seu "Escrito sobre a Liberdade" (1809), tematizou, segundo Schmied-Kowarzik "en pointe contra Fichte e Hegel", o auto-engano da consciência humana que, levada pela soberba e o egoísmo, confunde-se na sua liberdade a ponto de destruir em si o laço da criaturidade (que a liga ao divino), empurrando-se para o Não-ser (conf. in S-K).

 

IHU On-Line - Como compreender, ainda, a nomeação de Schelling para suceder Hegel? 

Muriel Maia-Flickinger - Hegel lecionou 13 anos na Universidade de Berlin, formando gerações de estudantes no que, a partir da assunção do poder pelo rei da Prússia,  em 1840, era entendido como "as sementes de dragão do panteísmo hegeliano". O novo regime convocava Schelling para ajudar a enfrentar e desenvolver para melhor tais sementes e, "com sua sabedoria, experiência e força de caráter", ficar ao lado do rei. Naturalmente isso gerou uma forte oposição a Schelling. Na sua fala inaugural, quase na data da morte de Hegel, dez anos antes, estavam presentes Engels , Kierkegaard , Bakunin , J.Burckhard , que assistiram também ao ciclo de suas palestras do primeiro semestre de 1841/42. Schelling ofereceu aos alunos sua "Filosofia da Revelação", e o fez com a autoconsciência de quem vinha completar a filosofia até aí. O espanto foi grande diante de tal atitude e de tal conteúdo;  Berlim encheu-se de uma vida ferina, publicando-se uma série de textos sobre o tema Schelling-Hegel, em debate que não poupava ironias e piadas sobre o 'intruso'. As aulas de Schelling se esvaziaram aos poucos até mesmo de seus seguidores, tão "inquietante, monstruosa, disforme" pareceu aos ouvintes essa parte de sua doutrina (como registrado por Burckhardt, então). Pode-se afirmar, sem dúvida, que o fracasso de Schelling em Berlin foi total. 

Foi só no século XX que se começou a perceber o que essa filosofia tardia tem de antecipatória não só no que que diz respeito à concepção da vontade por Schopenhauer  e ao pensamento dionisíaco por Nietzsche , senão também no que se refere à filosofia da existência, à psicanálise e à moderna investigação dos mitos (conf. in Kirchhof).

 

IHU On-Line - Quais foram os maiores desafios e peculiaridades de traduzir "Clara"? Quais as temáticas fundamentais dessa obra e qual sua importância na filosofia desse pensador?

Muriel Maia-Flickinger - O maior desafio foi, naturalmente, o fato de ser minha primeira tradução do alemão - língua que aprendi bastante tarde; também o não querer 'modernizar' o escrito, mantendo a forma hoje pouco natural de construção das frases. Isso torna a leitura mais difícil, sobretudo para quem não tem familiaridade maior com a filosofia. Não sou o que se diria uma conhecedora da filosofia de Schelling. Cheguei a ele num percurso de caranguejo, a partir de Nietzsche, na juventude, que me levou a Schopenhauer, na maturidade, desembocando, através deste, no oceano schellinguiano, no qual descobri a fonte oculta sabida ou não sabida daqueles dois filósofos. Topei com o diálogo "Clara" por acaso e fascinou-me a pulsação de vida que percorre esse escrito, sobretudo a ousadia do tematizado em um tempo dominado pelo racionalismo objetificador das ciências. Foi sempre, aliás, contra esse impulso peculiar à época, que Schelling se opôs em sua filosofia, de modo porém ainda mais radical naquela que expôs em Berlim, a partir de 1841, para escândalo de seus ouvintes. As ciências exatas iniciavam, então, sua marcha vitoriosa no domínio do saber; e se Schelling as havia utilizado largamente em sua 'filosofia da natureza', passou agora a realizar seu projeto de juventude no sentido de criar uma nova mitologia, arrancando-a enquanto verdade ao oceano no qual se gestou a consciência dos povos. 

Suspeita de reacionarismo

Desde 1810, em suas "Aulas particulares de Stuttgart", tal como no seu sempre silenciado diálogo "Clara", ele passou a utilizar-se de textos místicos e teosóficos, nos quais tencionava recuperar um solo de racionalidade difícil de tornar claro, acabando, com isso, por intensificar a desconfiança que se tinha da metafísica, desde Kant. Schelling acabou tornando-se suspeito de reacionarismo. Na verdade, ele estava querendo reintegrar ao discurso filosófico toda uma tradição repudiada do discurso esotérico, tal como se tem naquelas correntes ditas 'animistas' que, por séculos, circularam às margens dos caminhos régios do pensamento científico e filosófico; correntes que encontraram acolhida em alguns pensadores excepcionais durante a Renascença italiana (na Corte dos Medicis) e no pensamento de G. Bruno, ou naquele enclave excepcional que a cidade de Praga viveu no século XVI, sob Rodolfo II,  mas que, em geral, só ganhou expressão na literatura e nas artes desde a Idade Média até a Modernidade. Nos seus escritos de então, o filósofo buscava recuperar esse discurso popular a nível filosófico refletido, não objetificador, como ocorria nas ciências. Por isso mesmo escolheu o 'diálogo' como forma de expressão no texto "Clara". Não foi dele, aliás, a inclusão do nome da heroína no título, senão de  seu filho, na edição em separado do fragmento, no ano 1865 (conf. in Ehrhardt).

 

IHU On-Line - De que forma Schelling 'elabora' seu luto nesse escrito?

Muriel Maia-Flickinger - Deixada de lado a controvérsia quanto a data em que Schelling teria escrito esse texto e aceitando-se a data em torno a 1810 /12, isso teria ocorrido poucos anos após a morte de Caroline, sua primeira esposa. A relação entre ambos foi apaixonada e de grande afinidade, embora cercada de maledicência, mal-querenças e marcada pela morte da filha de Caroline, Auguste. Recentes e absolutamente confiáveis investigações, por Walter Ehrhardt (in Auguste), indicam que a jovem teria nascido de uma relação relâmpago, em noite de embriaguez, entre Caroline e Goethe. 

O Diálogo tem como tema a morte e a vida após a morte, e nele Schelling dá forma romanceada à indagação filosoficamente concebida acerca da imortalidade; utiliza-se, para tanto, de antigas tradições mitológicas esotéricas, crenças populares desmerecidas pela soberba acadêmica, mas que ele sempre soube 'ouvir' com humildade. Mais do que nunca, aqui, a narrativa mítica deve substituir aquela da ciência, porque há verdades, como aquela da 'queda', que não podem ser demonstradas abstratamente; embora, como neste caso, a natureza toda dê-nos seu contundente testemunho. Todos os personagens, no texto, são de algum modo o próprio Schelling, mas é em Clara que ele expressa a sua própria dor na dor da amante à perda do amado. É essa perda que abre a reflexão sobre a sobrevivência de uma essência humana ideal, que entretanto não deixa atrás de si a natureza em que se enraiza; ela antes a afirma e celebra, carregando-a consigo como parte inalienável. 

Esse escrito há de ter tido uma função terapêutica importante para o filósofo nessa fase difícil, de fronteira no próprio pensamento. O que o sustenta e imanta de força é o sentimento dessa perda, imprimindo-lhe uma intensidade e vida que o tornam singular não só na obra de Schelling, senão no universo filosófico como tal.

 

IHU On-Line - Quais são as temáticas fundamentais dessa obra e qual é a sua importância dentro do contexto da filosofia desse pensador?

Muriel Maia-Flickinger - O tema por excelência aí trabalhado é o da morte. Sua preocupação central é com a sobrevivência de uma essência espiritual corpórea após a morte e sua passagem a um "mundo dos espíritos", do qual Schelling descreve a arquitetura, com seus muitos lugares e moradas. Tal tema, por mais que possa surpreender, integra-se sistematicamente em sua filosofia, porque, como vimos, esta parte do princípio da Identidade entre real e ideal. E assim como esse pensamento exige uma "filosofia da natureza", para investigar e compreender o real, ele exige também uma "filosofia do mundo dos espíritos", que investigue e compreenda o ideal. Na verdade, no diálogo "Clara" o filósofo busca tornar palpável o para nós  não só inimaginável, mas também indizível.  Se, contudo, atentamos ao que, no final de seu "Sistema do Idealismo transcendental", ele diz da natureza, descrevendo-a como "um poema cifrado em escrita secreta", torna-se talvez menos difícil entender o que ele parece estar intentando ao acercar-se, aqui, do "mundo dos espíritos". A partir de material extraído à velha sabedoria popular, mistica e esotérica, ele cria uma dramaturgia interior ou 'ideal', também cifrada, que emerge na cena de um diálogo acerca da morte. Não para que a tomemos ao pé da letra, parece-me, senão - tal como Freud vai aos poucos cristalizando em torno a um núcleo de energia real invisível, um processo em si irreconstruível em 'cenas originárias' inspiradas na literatura e nos mitos - para a irmos igualmente interpretando e decifrando segundo uma 'razão' que ultrapassa em muito a mera racionalidade.

Incompletude

O fato de Schelling não ter concluído esse texto e determinado ao filho que o destruísse - embora o houvesse trabalhado e retrabalhado, fazendo quatro cópias do mesmo - dá-nos uma ideia da tragédia desse pensamento, que não conseguiu alcançar o objetivo buscado. Um dos exemplos dessa incompletude encontra-se nas suas 'Idades do Mundo', em textos magníficos, escritos, reescritos e ficados também inconclusos. Mas é, talvez, na inconclusão que se encontra sua força. Esses fragmentos precisariam ser lidos com vagar, trabalhados e retrabalhados de modo quase divinatório para, quem sabe, descobrir-se neles uma e outra vereda na decifração de conteúdos, cuja escrita parece ter paralisado ao próprio assombro.

 

IHU On-Line - Como podemos compreender que esse Diálogo não tenha sido finalizado?

Muriel Maia-Flickinger - Isso não nos deve espantar, já que, a partir do "Escrito sobre a Liberdade", Schelling deixou inacabados ou fragmentários todos os textos que iniciou. Desde a 'traição' de Hegel ele mergulhou em dúvidas acerca de seu próprio pensamento, até o completo abandono de sua 'Filosofia da Identidade'. Só agora ele viu com clareza a discrepância existente entre o que se propunha como a essência do real e do temporal naquela filosofia e o processo realmente vivido por nós. A questão do tempo, presente desde o início em sua reflexão sobre a natureza, aprofundou-se, o tempo ganhando seu ponto de emersão no interior de cada coisa individual, logo, aninhando-se no cerne do indivíduo humano e dele fazendo o 'lugar' de decisão acerca da relação natureza e espírito. Como dizê-lo, porém? Como apanhar esse 'feito inteligível' do homem, que veio violar a relação originária da criação? Seja como for, naquele momento, o que interessa o filósofo é o indivíduo singular, independentemente de seu destino como espécie sob a ameaça permanente do mundo exterior; é sua essência interior que o preocupa, e ele passa a investigar as potências e forças que o movem. 

“Fundo da existência“

É quando desenvolve uma Psicologia (nas "Aulas particulares de Stuttgart"), cujas considerações são antecipatórias da Psicanálise. Além de compreender o desejo como a primeira manifestação do espírito e a fonte onde devemos buscar conhecê-lo verdadeiramente, Schelling concebe o primeiro impulso de vida, a excitação mais antiga no homem (Sehnsucht = saudade voltada ao passado e ânsia voltada ao futuro) como uma força gravitacional interna ao indivíduo; força essa, que embora o impulsione a viver, traz em si um peso de melancolia e depressão que o arrasta para baixo, para um "fundo da existência" independente da vida, no que acredito encontrar uma pré-concepção do 'instinto de morte' de Freud (conf. tbém. em seu "Escrito sobre a Liberdade"). Foi em 1809 que Schelling publicou seu último texto. Todos os demais - e ele continuou trabalhando até a morte, em 1854 - ficaram fragmentários; de modo que não nos deve espantar o ter deixado inconcluso também esse Diálogo. 

 

IHU On-Line - A que se atribuiu o pouco conhecimento de Schelling no Brasil?

Muriel Maia-Flickinger - O pouco interesse despertado pela filosofia de Schelling não se reduz ao Brasil. A recepção de seu pensamento foi marcada pelo período que ele lecionou em Berlin, isto é, pela reação negativa imediata que provocou, passando a ser considerado reacionário por insistir em uma metafísica tida, desde Kant, como inaceitável. No Brasil, especialmente, onde a filosofia de Hegel teve grande acolhida, parece que - segundo Hans-Georg Flickinger (especialista em Hegel) - a não repercussão da filosofia de Schelling deve-se a uma preferência pela tradição da filosofia enquanto sistema, com a qual se afina o pensamento acabado de Hegel; tradição esta que se agrava no Brasil, devido ao longo domínio do pensamento neotomista no país. Na Alemanha, o interesse pela filosofia de Schelling nos meios acadêmicos vem crescendo desde o século passado, nos anos 80, sendo que, desde 1986, existe uma "Internationale Schelling-Gesellschaft" ("Sociedade Internacional Schelling"), com sede em Leonberg, onde nasceu o filósofo. Também no Brasil esse interesse tem crescido nas últimas décadas.

Bibliografia Consultada

Para Schelling utilizei-me da Obras Escolhidas em 5 volumes, organizada por Manfred Frank e publicada pela Suhrkamp taschenbuch Wissenschaft, Frankfurt am Main, 1995. Em português, há trechos da obra do filósofo traduzidos para a série Os Pensadores, da Abril Cultural, uma tradução do 'Escrito sobre a Liberdade' da Ed. Vozes e uma tradução recente, feita em Portugal, das 'Ideias para uma Filosofia da Natureza'. Em 2012 saiu a tradução do diálogo "Clara; acerca da conexão da Natureza com o Mundo dos Espíritos", pela Editora UNIJUÍ. 

- Sobre o verdadeiro conceito da filosofia da natureza e a forma correta de resolver seus problemas (1801)

- Sobre a essência da liberdade humana ou 'Escrito sobre a Liberdade' (1809)

- Aulas privadas de Stuttgart (1810)

- Clara, acerca da conexão da Natureza com o Mundo dos Espíritos (entre 1809-12)

- As Idades do Mundo. O Passado (1811)

- Filosofia da Mitologia (1842)

 

Obras de interpretação de que lancei mão para a entrevista:

1.Baumgartner/Korten, Schelling, Beck, München, 1996  cit:Baumgartner/Koten

2.Frank, M., Eine Einführung in Schellings Philosophie. Suhrkamp Verlag: Frankfurt am Main 1985.   cit.: Frank

3. Kirchhoff, Jochen, Schelling. Rowohlt Verlag: Hamburg, 1994 cit.: Kirchhoff 

4.Erhardt, W., Goethe und Auguste Böhmer. War sie vielleicht Goethes natürliche Tochter? Akademie Verlag: Berlin, 2006.  cit.: Auguste

5.Ehrhardt, W., Schellings Clara, in Die Wahrheit meiner Gewissheit suchen. hg. von U. Irrgang und Wofgang Baum: Würzburg, 2012. cit: Ehrhardt

6.Ehrhardt, W., Schelling über Fortdauer und künftiges leben. Neue Belege über falsche Datierung des Clara-Gesprächs und deren Fatale Folgen, in Berliner Schelling Studien. Negativität und positivität. Internationale Tagung 2006: Heft 9. cit.: Ehrhardt

7.Safranski, R. Romantik. Eine deutsche Affäre. Carl Hanser Verlag: München, 2007.

8.Sandkühler, H.J. (Hrsg.), F. W. J. Schelling. Verlag Metzler: Stuttgart-Weimar, 1998 cit.:  Sandkühler

9.Schmied-Kowarzik, W., A alma humana enquanto ponto central enigmático entre natureza e espírito. Texto por sair no primeiro semestre de 2014, na revista Kriterion, da UFMG, Belo Horizonte. cit.: S-K

10.Schmidt, J., Die Geschichte des Genie-Gedankens, Bd.1, Wissenschaftliche Buchgesellschaft: Darmstadt, 1988.

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