Edição 426 | 02 Setembro 2013

A secularização como uma das possibilidades da modernidade

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Márcia Junges

Um Estado laico não é sinônimo de anti-religiosidade, da mesma forma como a busca pelo sagrado não tem uma vinculação direta com as instituições religiosas, observa Taís Silva Pereira, a partir do pensamento de Charles Taylor

“A secularização não pode ser mais encarada como um processo cuja culminação é o Estado neutro”, afirma a pesquisadora Taís Silva Pereira, na entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line. E acrescenta: “Taylor se afastará em boa medida da ideia, inspirada em Weber, acerca de uma crescente racionalização nas sociedades modernas pós-industriais. A consequência desse raciocínio é o declínio das visões religiosas, relegando o sagrado a assunto fundamentalmente privado. Em contraposição, o filósofo canadense defenderá a secularização não como ausência ou privatização do sagrado, mas como uma mudança significativa nas condições da crença, ou seja, quando não crer torna-se uma, mas não a única, possibilidade na modernidade”.

Taís Silva Pereira é graduada, mestre e doutoranda em Filosofia pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro – UERJ, estudiosa do pensamento de Charles Taylor. Leciona no Centro Federal de Educação Tecnológica Celso Suckow da Fonseca, UnED Nova Iguaçu, em Nova Iguaçu, Rio de Janeiro. É uma das organizadoras da obra Esfera Pública e Secularismo: Ensaios de Filosofia Política (Rio de Janeiro: EdUERJ, 2012).

Confira a entrevista.

 

IHU On-Line - Em que aspectos a filosofia de Charles Taylor traz um aporte para o debate entre secularização e o aprofundamento do liberalismo em nossas sociedades?

Taís Silva Pereira - A discussão em torno da secularização no pensamento de Taylor aparece já em seus escritos da década de 1980, notadamente em As fontes do self: a construção da identidade moderna, de 1989. Isto é importante por situar o problema do secular no interior de suas investigações acerca da constituição ética do agente moral moderno, através da relação de uma relação indissociável entre o self e bens. Ali o que está em jogo é a necessidade de se considerar a motivação, enquanto fontes morais, um ponto central para qualquer estudo sobre a filosofia prática. No caso de Taylor, ele o faz a partir do que chamo de uma ontologia temporalizada da moral, isto é, pretende evidenciar o arcabouço substantivo (enquanto bens orientadores) sobre o qual o pensamento moderno de uma forma geral se apresenta historicamente. Seu posicionamento a respeito da relação que o papel dos bens tem em nossa época traz consequências importantes tanto no que tange aos estudos sobre secularização quanto para o debate em torno do liberalismo. 

Secularização: uma possibilidade na modernidade

Neste sentido, a secularização aponta para dois aspectos interdependentes, a saber, uma alternativa aos modelos de explicação para a dinâmica das sociedades seculares e a própria ideia de história a ela subjacente. Taylor se afastará em boa medida da ideia, inspirada em Weber, acerca de uma crescente racionalização nas sociedades modernas pós-industriais. A consequência desse raciocínio é o declínio das visões religiosas, relegando o sagrado a assunto fundamentalmente privado. Em contraposição, o filósofo canadense defenderá a secularização não como ausência ou privatização do sagrado, mas como uma mudança significativa nas condições da crença, ou seja, quando não crer torna-se uma, mas não a única, possibilidade na modernidade. 

Ao deslocar o problema sobre o secular para condições de existência de crenças em seus diferentes aspectos, levando-nos a ideia de “múltiplas modernidades”, Taylor tem de contar também com um modelo alternativo de pensar a história de constituição dessas crenças, tarefa esta já encetada no livro de 1989. A explicação anacrônica dos eventos na modernidade levará menos em conta as mudanças de superestrutura, ou mesmo de instituições, e mais as conexões de bens possíveis em meio às práticas. É, pois, esta mesma linha explicativa que permite Taylor pensar o liberalismo através de suas próprias fontes motivacionais, pretendendo revelar suas imbricações éticas na explicação do campo político. Isto pode ser observado já nos debates da década de 1980, na querela entre liberais e comunitaristas. 

A crítica ao procedimentalismo (presentes no pensamento de John Rawls e Jürgen Habermas, por exemplo) não é uma rejeição completa ao liberalismo, mas como você menciona, um aprofundamento do mesmo, enquanto a expressão de uma rede significativa que confere sentido às ações compartilhadas. Como bem diz Taylor em A política do reconhecimento, de 1992, “o liberalismo é mais um credo em luta”, e não uma configuração necessária. E isto, naturalmente, envolve novas considerações sobre seu modo de atuação.

 

IHU On-Line - Em que medida a concepção de sagrado, como aquela proposta por Durkheim, precisa ser discutida face ao fenômeno da secularização?

Taís Silva Pereira - Dois aspectos da concepção durkheimiana nos oferecem um aprendizado importante para as discussões em torno da secularização em nossa época. São eles: a objetividade do sentimento do sagrado e a ideia de que nossas sociedades são constituídas por conteúdos advindos da religião. O primeiro ponto diz respeito à crítica de que a relação do homem com o sagrado pode ser entendida apenas como uma projeção ou delírio sobre o mundo. Portanto, tendo caráter subjetivo. A isto corresponderia a compreensão de secularização enquanto declínio das formas religiosas em prol de um desenvolvimento linear e progressivo da razão. Entretanto, se, ao contrário, tomarmos a ideia de sagrado como uma tentativa de conferir sentido à realidade, ou seja, como orientação, se pressuporá uma explicação da conduta humana no interior de suas práticas, ao fim e ao cabo, compartilhadas. Explicação esta que aspira à verdade. O segundo ponto é, em certa medida, um desdobramento do primeiro. Uma vez que o sentimento do sagrado é objetivo, ele oferece por meio de sua prática explicações sobre o modo de nos conduzirmos e, neste sentido, não pode ser afastado de sua própria configuração social.  A despeito da teoria específica de Durkheim, esses aspectos ganham uma tremenda atualidade quando olhamos as discussões sobre o próprio significado da secularização, posto que ela nos remete à noção de sociedade, convivência comum e construção de laços de pertencimento. Este, inclusive, parece ser o ponto de Taylor ao verificar a manifestação sagrado enquanto constituinte das fontes motivacionais, e em alguma medida epistemológicas, da modernidade. 

O que ele observa, no entanto, é que embora as religiões ainda possam estabelecer compreensões comuns a respeito da orientação, haveria em nossa época, nutrida pelo individualismo moderno, a possibilidade de crenças individuais sem uma relação direta na constituição de formas sociais (o filósofo as denomina de pós-durkheimianas, na obra Uma era secular). Neste sentido, coloca-se a questão, a partir de Taylor, sobre até onde as religiões podem construir compreensões públicas comuns na contemporaneidade.

 

IHU On-Line - Quais são os limites e possibilidades que surgem para a política e para a vida em comunidade a partir da secularização?

Taís Silva Pereira - Se pensarmos a partir de sociedades democráticas, alguns desafios se impõem, dos quais parecem merecer destaque: a relação entre laicização e secularização, e a dinâmica da participação pública. O primeiro ponto diz respeito à necessidade de distinção entre os termos citados. A separação entre Estado e Igreja, presente na maioria das sociedades ocidentais, não significa a marginalização do sagrado ao âmbito privado. Em outras palavras, um Estado laico não pode ser, por definição, um Estado antirreligioso, assim como a própria busca do sagrado não está necessariamente vinculada, hoje, a instituições religiosas. Ademais, a secularização não pode ser mais encarada como um processo cuja culminação é o Estado neutro. Disso não se segue, naturalmente, que o governo tenha de tomar alguma forma ética específica nos momentos de decisão. Mas, dado os eventos que vivemos no mundo, seja no Ocidente ou no Oriente, não podemos esperar que a relação entre governante e governado tenha como horizonte a laicização. Isto de certo modo nos impele a pensar sobre novas formas de se estabelecer uma compreensão pública comum, nutridas em boa medida por conteúdos (chamados muito genericamente) espirituais. O segundo desafio parece se apresentar no embate entre os discursos na esfera pública acerca de problemas que dizem respeito ao bem comum. 

Relação assimétrica

Embora a democracia sugira um espaço para discussões de posicionamento com bases diferentes (científica, religiosa, filosófica, jurídica, para citar algumas), desde que não neguem este mesmo espaço, o peso que cada discurso ganha tem implicações diretas no momento decisório. Muitas vezes o problema não reside na defesa e na possibilidade da “pluralidade de vozes”, para tomarmos a expressão de Habermas, mas na relação assimétrica entre os diferentes discursos já de saída. Parece existir, a despeito da pluralidade, a pressuposição de uma linguagem mais adequada para o espaço público, embora ela mesma seja também paroquial, caso da linguagem do especialista. A consequência que parece advir gira em torno tanto de uma questão de tradução de linguagens para o entendimento mútuo (de uma linguagem específica para uma linguagem comum aos cidadãos) quanto de pretender eleger uma delas como mais fundamental ou basilar, com o fito de abarcar outros tipos de discursos. Isto fica claro se pensarmos em temas cuja defesa ou crítica parte de linguagens divergentes e concorrentes. 

Um bom exemplo me parece o julgamento sobre a constitucionalidade de pesquisas com células-tronco embrionárias, ocorrido no Brasil há alguns anos. Ali boa parte do problema parecia residir em como traduzir e julgar à luz da constituição um assunto que tem lugar próprio a partir da linguagem particular do especialista. Tal linguagem que detinha a explicação do tema era também um dos lados nos debates erigidos à época para uma decisão jurídica. Assim, toda democracia, cujo horizonte é o consenso bem informado de seus cidadãos, terá de lidar com o julgamento entre discursos de base divergentes.

 

IHU On-Line - Em que sentido a ética da autenticidade “dialoga” com o fenômeno da secularização? E que impasses se colocam a partir dessa interação?

Taís Silva Pereira - O ideal de autenticidade, enquanto uma forma moderna de compreensão moral, se orienta segundo a ideia da existência de fontes morais interiores ao sujeito capazes de articular o que pode ser uma existência plena, acarretando na própria definição de ser humano. Como bem observou Taylor, essa “cultura da autenticidade” que se sedimenta em nossa compreensão moral pode se conformar de maneira melhor ou pior. Ela pode se constituir enquanto uma decisão responsável sobre a realidade, decisão esta ancorada em exigências percebidas em si mesmo; ou ainda enquanto um posicionamento individualista, convertendo-se em mais uma perspectiva sobre a realidade, sem a possibilidade do diálogo. Tomada em sua plasticidade, ou seja, pela possibilidade de elaboração e reelaboração a partir de certos bens, a ética da autenticidade tende a contribuir para o fenômeno da secularização se esta não for entendida integralmente como “desencantamento de mundo”. Compreendidas desde a perspectiva de condições da crença, ou seja, em uma investigação acerca dos modos da crença (ou não crença) sedimentados em uma ordenação moderna, a compreensão da secularização também depende de articulações que deem sentido às práticas. Justamente porque Taylor se afasta de um raciocínio de causalidades necessárias às práticas que conformam nossa época, não há único processo de se estabelecer o lugar do sagrado e do profano. Neste sentido, um dos grandes dilemas que se colocam diante de nós reside nos limites permissíveis de justificação das crenças e das metas a elas relacionadas no plano político. E, embora lembremos primordialmente da prática religiosa quando mencionamos o termo crença, ela não é a única forma de explicação de sentido na contemporaneidade, assim não é a única com possibilidade de destruição da convivência entre cidadãos. 

Cultura da autenticidade

Autores como Taylor e Habermas contribuíram de forma crucial nos últimos anos para este posicionamento. A “cultura da autenticidade” incide no modo de pensar moderno como um todo, e não a parte dele. Significa dizer que os chamados fundamentalismos e individualismos não estão necessariamente vinculados à prática religiosa porque o conceito de tolerância também pode ser articulado no interior de uma religião específica. Um exemplo disso (para sairmos do âmbito do cristianismo) encontra-se na própria tradição indiana, como demarca Amartya Sen . As fronteiras que marcam sociedades seculares são mais fluidas do que podem parecer ao primeiro olhar, por conseguinte, urge pensarmos sobre os pilares políticos que podem circunscrever as práticas compartilhadas. E isto exige, como aludi, uma análise acerca do lugar e da linguagem do político.

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