Edição 426 | 02 Setembro 2013

Laicização, secularização e comunitarismo

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Márcia Junges

Há um nexo entre a secularização e o comunitarismo no entendimento de que a comunidade dos crentes passa a ter pouco ou nenhum papel na estrutura política estatal, observa Inácio Helfer. Mas não é isso que ocorre no Brasil contemporâneo, pondera

“O estado laico é aquele que não conduz a coisa pública em nome de Deus ou de uma crença religiosa”, e que “respeita todas as formas de expressão religiosas como práticas desenvolvidas pelos cidadãos, por intermédio de suas convicções, sem que elas sejam atos estatais propriamente ditos”. Já a secularização é um fenômeno bem mais amplo, explica o filósofo Inácio Helfer na entrevista que concedeu, por e-mail, à IHU On-Line. De acordo com o pesquisador, pode ser observada uma conexão entre secularização e o comunitarismo: “o entendimento de que a comunidade dos crentes passa a ter pouco ou nenhum papel na estrutura política estatal. Não é bem isso que se passa no Brasil contemporâneo, onde o presidente da Comissão de Direitos Humanos da Câmara do Congresso Nacional tem uma forte identidade com os valores de sua comunidade de crença. No entanto, olhando para a maioria dos países ocidentais contemporâneos, a influência das comunidades dos crentes na cena política é realmente pautada pelo processo de secularização”.

Graduado em Filosofia pela faculdade de Filosofia Nossa Senhora da Imaculada Conceição – FAFISIC, é mestre em Filosofia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS. Na Universidade Paris 1 – Pantheon-Sorbonne, em Paris, na França, cursou mestrado e doutorado em Filosofia com a tese La philosophie de l'histoire de Hegel: la fin de l'histoire. Na Universidade de Montreal, no Canadá, cursou pós-doutorado. Leciona no Centro de Ciências Humanas da Unisinos e na Universidade de Santa Cruz do Sul – Unisc. É vice-presidente da Sociedade Hegel Brasileira. Juntamente com Celso Candido organizou a obra Política e liberdade no século XXI (Nova Petrópolis: Nova Harmonia, 2011).

Confira a entrevista.

 

IHU On-Line - A partir da perspectiva de Charles Taylor, há um nexo entre a secularização e o comunitarismo?

Inácio Helfer - A secularização, de um modo geral, é identificada como o processo histórico ocidental de separação entre as esferas do exercício do poder político, do governo propriamente dito, e da religião. Isto significa que se numa época houve uma proximidade estreita entre as duas dimensões, de tal forma que o profano e o sagrado estivessem em grande medida unidos, com a secularização promoveu-se um distanciamento. Ou seja, o exercício do poder político tornou-se secular, mundano, não religioso, e a esfera religiosa deixou de ter uma presença ativa no exercício dele, deixou de influenciar institucionalmente nas decisões governamentais, ela se concentrou nas dimensões da vida e práticas religiosas propriamente ditas. 

Como afirma Taylor ao discorrer sobre um dos sentidos da secularização que se perpetuou a partir da passagem do estado pré-moderno para o estado moderno, “embora a organização política de todas as sociedades pré-modernas estivesse de algum modo conectada a, embasada em ou garantida por alguma fé em, ou compromisso com Deus, ou com alguma noção de realidade derradeira, o Estado ocidental moderno está livre dessa conexão. As igrejas encontram-se hoje separadas das estruturas políticas (com algumas exceções, em países britânicos e escandinavos, que são tão inexpressivos e de tão pouca demanda a ponto de não constituírem exceções realmente). A religião, ou a sua ausência, consiste em grande medida numa questão privada” . Sendo assim, um sentido explícito da secularização é a separação entre as estruturas políticas e as igrejas.

“Comunidade de referência”

O comunitarismo pode ser interpretado como uma forma de leitura e prática social que destaca ou se interessa pela importância dos espaços e vivências comunitárias das sociedades humanas como centrais em suas vidas, em contraposição às formas de vivências sociais impessoais, passageiras e sem compromissos, onde as pessoas normalmente se encontram isoladas. O comunitarismo se interessa pelo sentido da estruturação dos espaços sociais num sentido mais amplo, como o de uma “comunidade de referência” que possa contribuir na atuação desta pessoa. Viver em comunidade significa pertencer a um grupo de pessoas que compartilham interesses, trocam informações, se engajam por alguma causa, sabem que ao estarem inseridos neste meio receberão apoio e acolhida. As experiências comunitárias, por exemplo, de instituições de ensino comunitárias, da polícia comunitária, de uma rádio comunitária, de uma comunidade local de vizinhos de uma região rural ou de um bairro, são todos espaços propícios para o fortalecimento das ações destas pessoas na cena pública, ou, tão somente, na configuração mais íntima de suas vidas.  

Normalmente se atribui às religiões a priorização e fortalecimento da vida comunitária. Por exemplo, é comum ouvir a expressão “a comunidade dos cristãos”, justamente por se tratar da referência às pessoas que compartilham uma determinada crença, que praticam certos ritos religiosos, que se engajam em comum em torno de certos ideais e representações religiosas do mundo. Neste sentido, o nexo que pode ser evidenciado entre a secularização e o comunitarismo é o entendimento de que a comunidade dos crentes passa a ter pouco ou nenhum papel na estrutura política estatal. Não é bem isso que se passa no Brasil contemporâneo, onde o presidente da Comissão de Direitos Humanos da Câmara do Congresso Nacional tem uma forte identidade com os valores de sua comunidade de crença. No entanto, olhando para a maioria dos países ocidentais contemporâneos, a influência das comunidades dos crentes na cena política é realmente pautada pelo processo de secularização.

 

IHU On-Line - Em que aspectos a ética da autenticidade, proposta por Taylor, é basilar nessa concepção de comunitarismo?

Inácio Helfer - Taylor discorre sobre a ética da autenticidade como uma perspectiva de justificação moral iniciada no movimento romântico (final do século XVIII), acrescida de uma série de outros fatores ao longo de sua história, que põe em relevo o cultivo do homem virtuoso como uma obra de arte. Trata-se do fazer de si, do cultivar a interioridade das convicções como uma obra de arte, como algo de valor, que possa ser explicado por si mesmo, autonomamente, enfim, que tenha caráter. A ética da autenticidade insere-se, por isso, num contexto da “crítica mais ampla ao eu protegido (buffered self), disciplinado, concernente sobretudo ao controle racional instrumental. ” Neste sentido, a vivência numa comunidade de referência pode ser extremamente útil para o aprimoramento destes artistas que somos todos nós em nossas relações morais para auxiliar na definição do que acreditamos, porque acreditamos, onde queremos chegar, independentemente do que os outros pensam ou a racionalidade instrumental preponderante obriga a ser e fazer.

 

IHU On-Line - É possível estabelecer um nexo entre a secularização e o avanço da modernidade?

Inácio Helfer - As sociedades modernas (entendendo-se por este termo também as contemporâneas) são sociedades que crescem com a secularização. Não no sentido de que sem as crenças religiosas o mundo vai melhor, mas no sentido de que o espaço das estruturas políticas, erguido por pessoas crentes e não crentes, por pessoas com crenças diferentes e até dispares, quando se unem na consecução da coisa pública, avança melhor. As estruturas políticas sendo conduzidas pela mão de ferro de aplainamento religioso sempre provocaram sofrimento, guerras e embrutecimento da conduta humana. 

 

IHU On-Line - Em que medida a laicização e a secularização são dois processos concomitantes em nossa época?

Inácio Helfer - O estado laico é aquele que não conduz a coisa pública em nome de Deus ou de uma crença religiosa. O estado laico é aquele que respeita todas as formas de expressão religiosas como práticas desenvolvidas pelos cidadãos, por intermédio de suas convicções, sem que elas sejam atos estatais propriamente ditos. Elas são atos de cidadãos que têm o direito de cultivar e expressar suas convicções religiosas, seja em espaços privados ou mesmo públicos, desde que todas as demais crenças tenham o mesmo direito, democraticamente partilhado, de manifestarem a sua presença. 

A secularização é um fenômeno mais amplo que a laicização. Quando se discute a retirada de símbolos religiosos dos espaços públicos, por exemplo, a retirada de todos os crucifixos das repartições públicas do poder judiciário de um Estado, ou da Federação de um país, se quer indicar que o poder público é laico, que não ostenta a defesa de uma crença religiosa que possa, de antemão, constranger um não crente ou alguém que professe outro credo religioso. Esta ação contribui para a secularização. A secularização tem haver com aspectos mais gerais. Como, por exemplo, aborda Taylor no início de seu livro A Era Secular, ao afirmar que existem três sentidos de secularidade: o sentido 1, que trata dos espaços públicos secularizados; o sentido 2, que aborda o declínio da crença e de sua prática em geral; e o sentido 3, que é o interesse principal de seu livro, e que trata das novas condições de crença. Como afirma Taylor, “o que pretendo fazer é examinar nossa sociedade como secular nesse terceiro sentido, o que talvez seja possível sintetizar da seguinte maneira: a mudança que quero definir e traçar é aquela que nos leva de uma sociedade na qual era praticamente impossível não acreditar em Deus para uma na qual a fé, até mesmo para o crente mais devoto, representa apenas uma possibilidade humana entre outras. ” 

Ou seja, no sentido 3 do tema, a secularização vai além da laicização, pois quer entender o que significa conviver numa sociedade em que, por mais que eu tenha uma crença religiosa extremante clara para mim,  não posso desqualificar em absoluto o ponto de vista e o modo de viver de alguém que não a tem. Como diz Taylor sobre este modo de viver, “não posso simplesmente descartar como depravado, cego ou sem valor” somente porque não tem fé.

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