Edição 426 | 02 Setembro 2013

Laicidade, secularização e o lugar na religião na sociedade

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Márcia Junges

De acordo com Pablo Holmes, não podemos mais falar em sociedades tradicionais e modernas, pois a sociedade mundial é “única, secular e moderna”. Vivenciar a religião nessa sociedade secular pode acontecer de diferentes formas

Secularização e laicização são fenômenos diferentes e que precisam ser compreendidos em sua singularidade. “O que chamamos de secularização tem relação com uma crescente diferenciação, que faz surgirem esferas da vida social, que não são estruturadas a partir de uma narrativa tradicional, comum e vinculante para todos”, destaca Pablo Holmes na entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line. Por outro lado, quando se fala em laicização “nos referimos, sobretudo, ao direito e ao Estado”. E acrescenta: “Em verdade, a laicização do Estado não exige uma extinção do tema religioso da sociedade, e nem mesmo da esfera pública. Essa foi a experiência de alguns países, sobretudo na Europa”. Holmes pondera que um bom exemplo de como a religião permanece existindo na modernidade, mas como sua centralidade é relativizada pela secularização é a relação entre liberalismo econômico e religião. “A presença marcante de religiosidade não se opõe de modo algum à liberalização da economia. Aliás, difícil pensar em um contexto social em que a religião é vivida tão intensamente como aquele dos Estados Unidos da América, a maior economia nacional do mundo, apontada sempre como exemplo de economia liberal”.

Pablo Holmes é graduado e mestre em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco – UFP com a dissertação Da violência à solidariedade: as lutas por reconhecimento e a formação do Estado Democrático de Direito. Cursou doutorado em Sociologia pela Universidade de Flensburg, na Alemanha com a tese Verfassungsevolution in der Weltgesellschaft: Differenzierungsprobleme des Rechts und der Politik im Zeitalter der Global Governance (Baden-Baden: Nomos Verlag, 2013). Leciona teoria política no Instituto de Ciência Política da Universidade de Brasília – UnB.

Confira a entrevista.

 

IHU On-Line - Em que medida a laicização e a secularização se imbricam e alteram o cenário político do Ocidente?

Pablo Holmes - Eu diria, primeiramente, que é importante esclarecer os dois conceitos, tão utilizados, mas, ao mesmo tempo, pouco problematizados. Muitas vezes, secularização e laicização são tratados como sinônimos, ou como resultado de um mesmo processo: uma consequência, digamos, do “esclarecimento” ou de um “desencantamento do mundo” realizado pela modernidade na cultura ocidental. Do ponto de vista de uma sociologia da religião, contudo, eles não se implicam necessariamente.

O que chamamos de secularização tem relação com uma crescente diferenciação, que faz surgirem esferas da vida social, que não são estruturadas a partir de uma narrativa tradicional, comum e vinculante para todos. Um conjunto de coincidências fez com que em uma parte do globo tenha surgido formas de manuseio do direito, do poder, do dinheiro e da verdade que não mais se deixavam regular diretamente por uma única lógica: mais precisamente, por uma lógica estruturada simbolicamente a partir de uma narrativa de caráter teológico soteriológico, ou que fizesse referência a uma ordem imanente estruturada a partir de uma base transcendente. Até certo momento histórico, a Europa tinha em comum com todas as outras regiões do mundo exatamente essa característica: a estruturação da vida social a partir de uma narrativa com referência a uma ordem transcendente.

Curiosamente, é bem possível que uma peculiaridade relevante da Europa tenha sido exatamente a existência de uma instituição religiosa tão complexa e hierarquicamente estruturada, que necessitava de uma forma específica de racionalidade organizatória. 

Lógica operacional própria

Já no século XIII, como nos mostra muito bem Harold Berman, em seu Law and Revolution, a Igreja Católica Romana havia se tornado a primeira organização da história com uma ordem jurídica própria. Lembremos que, embora houvesse um Estado em Roma, o direito era visto em grande parte como uma ordem comum, um saber técnico que não tinha um caráter, digamos constitucional. Aquilo que, até hoje, no mundo anglo-saxão, eles entendem por common law. E o trabalho dos pretores se dava de modo largamente privado, sem uma estrutura burocrática que lhe desse suporte organizacional, como a que a Igreja foi capaz de organizar. 

A ironia desse processo é que, uma vez funcionando, o direito ganha uma lógica operacional própria. E uma vez que o direito funciona reflexivamente, é possível intervir sobre ele, mas apenas por meio de uma ação destrutiva. Qualquer intervenção externa à lógica de funcionamento interna do direito vai ser percebida socialmente exatamente como aquilo que ela é: uma ruptura com o funcionamento operativo daquela esfera, uma intervenção arbitrária. Esse fato tem consequências amplas para a diferenciação de outras esferas da sociedade. 

Pensemos apenas nos casos da política e da economia. A política pode usar o direito para difundir seu poder. Um soberano pode usar o direito para que sua autoridade se difunda no território de modo impessoal. Por outro lado, a conversão do poder político numa forma jurídica retira em grande medida sua fundamentação transcendente, sua validade a nativitate, "mundanizando-o". No caso da economia, a possibilidade de dispor de técnicas de manuseio do direito abre novas possibilidades de reprodução econômica que dispensam regras religiosas como forma de diminuir a contingência dos negócios. As técnicas jurídicas aumentam a estabilidade, a impessoalidade, e a simetria em casos de conflito, desincumbindo os atores da obrigação de travar relações baseadas apenas na confiança pessoal.

Formação da individualidade

No início da modernidade, essa diferenciação entre esferas é reciprocamente alimentada. A economia, a política, a ciência e o direito se diferenciam e apoiam reciprocamente certa autonomização operativa. E, em consequência disso, surge também um potencial inédito de individualização. 

Graças a esse processo de diferenciação de setores funcionais, os indivíduos não podem mais construir sua personalidade a partir de um lugar social imóvel, dado pelo nascimento, estruturado hierarquicamente. Tais ordens sociais eram legitimadas por narrativas religiosas ou metafísicas, mas tinham uma base social estruturada ao redor de uma identidade de grupos que eram fechados reciprocamente por claras relações de hierarquia. A inclusão em um grupo exclui o indivíduo de outro e é a partir dela que se forja a individualidade. A diferenciação em setores funcionais entra em conflito com essa estrutura hierárquica, e então os indivíduos não forjam mais sua individualidade exclusivamente à medida dessas relações de inclusão, senão a partir do significado que ele assume no interior da economia, no interior da política, no interior do direito, no interior da ciência, da educação etc. Eles podem também dispensar, com isso, o recurso a narrativas religiosas ou metafísicas abrangentes, que dão sentido semântico àquelas hierarquias e que estruturam simbolicamente suas personalidades.

Reflexivação do problema religioso 

Ora, esse é o processo que está por trás do fenômeno que chamamos secularização. Mas ele não quer dizer, de modo algum, um desaparecimento da religião da vida social. Muito pelo contrário, num sentido teórico mais preciso, a religião, como experiência social (vivida individual e coletivamente) voltada para a transcendência, surge como problema específico apenas graças a esse processo. A autonomização de esferas sociais e cada vez mais reflexivas atinge também a religião. Esse processo culmina com uma reflexivação do problema religioso, fazendo com que não seja mais possível confundi-lo com outras esferas da vida. Se a religião não é mais responsável por estruturar o comportamento, a economia, o exercício do poder, e legitimar estruturas hierárquicas, ela pode ser vivida como algo que tem a ver com perguntas fundamentais a que ela, e apenas ela, se dirige: como lidar com aquilo que foge à compreensão da comunicação imanente? O que está além daquilo que podemos comunicar? A religião se ocupa socialmente com a transcendência, assim como o direito com o lícito e o ilícito, a ciência com a verdade e a economia com o dinheiro. 

Charles Taylor  aponta a ambiguidade do termo secularização quando observamos a ideia de crença religiosa não desde o ponto de vista das narrativas religiosas (ou científicas), mas como experiência concreta. Para ele, é possível, sim, evitar a pergunta acerca da transcendência. Mas evidentemente é impossível eliminar essa questão e, curiosamente, a sua imanência na vida social. Ela permanece, como experiência, e ganha até mesmo uma autenticidade infungível na modernidade. 

Estado laico

Já o que chamamos de "laicização", acredito ter um alcance teórico mais limitado. Aqui se faz referência sobretudo a particularidades da semântica da política moderna. E, sobretudo, à semântica política no Atlântico Norte e da sua periferia econômica e geopolítica. Falamos em laicização quando nos referimos, sobretudo, ao direito e ao Estado. As palavras “laico” e “laicismo” nos indicam algo como uma “gag rule”: uma proibição de tematizar problemas religiosos, ou a experiência da transcendência, nas esferas políticas e jurídicas da sociedade. 

Como a entendo, a palavra laicização tem um sentido muito regional (ela se limita a uma experiência política concreta de uma parte do mundo). Por outro lado, a secularização, tem um caráter paradoxal do ponto de vista de sua difusão geográfica. Apenas num sentido muito limitado pode-se dizer que a modernidade é europeia. 

A modernidade que talvez tenha dependido de algumas particularidades europeias, depende, exatamente, da constituição de uma sociedade mundial operando sincronicamente: centro e periferia, colônia e metrópole, norte e sul só fazem sentido desde a abertura de um espaço social comum, simultâneo, em que todos habitam ao mesmo tempo. Não há mais sociedades tradicionais e modernas. A sociedade mundial é única, secular e moderna. E isso tem que levar em conta exatamente as diferenças que convivem simultaneamente na mesma sociedade: as assimetrias de poder, as novas formas de exclusão, a necessidade de que diferentes populações estabeleçam relações de convivência e coexistência etc. 

Ora, embora seja possível realizar contratos ou fazer investimentos em qualquer lugar do Oriente Médio islâmico, o tema religioso me parece ter mais presença na esfera pública e, sobretudo, nas instituições jurídico-políticas nesses contextos. Poderíamos falar aí de secularização, mas dificilmente pode-se falar em laicização, no mesmo sentido que falamos no Atlântico Norte e em sua periferia econômica e política. 

 

IHU On-Line - Quais são os principais desafios políticos que existem hoje, tomando em consideração a laicização do Estado e o liberalismo econômico?

Pablo Holmes - Em verdade, a laicização do Estado não exige uma extinção do tema religioso da sociedade, e nem mesmo da esfera pública. Essa foi a experiência de alguns países, sobretudo de países europeus. Mas se olhamos, por exemplo, para os Estados Unidos da América, a religião sempre teve um papel marcante, inclusive no debate público político, embora possamos dizer que as instituições estatais e jurídicas tenham em grande medida se mantido laicas. Como disse anteriormente, a experiência religiosa ganha uma dimensão nova, em uma sociedade secular. E, do ponto de vista específico da política e sua semântica de conflitos, quando ela emerge como um tema relevante, ela costuma ganhar, muitas vezes, um caráter “identitário”, para usar esse vocabulário que esteve na moda na década de 1990. 

A vivência da religião numa sociedade secular pode se dar de diversos modos. Há aqueles que vivem a religião como uma experiência mística individual, algumas vezes pouco teológicas, inclusive. E há aqueles que vivenciam a religião de modo coletivo, bastante teológico. Estes, em certos casos, podem moralizar de modo radical os conteúdos de sua teologia. E essa moralização pode ganhar uma dimensão política, manifestando-se na esfera pública e estruturando uma posição capaz de disputar posições de poder no processo legislativo, por exemplo. Certamente há uma importante fragmentação moral na sociedade moderna. Mas em nenhum momento da história da modernidade o papel coletivo de identidades morais coletivas desapareceu completamente. A dificuldade é que, desde o ponto de vista da ética (como forma de reflexão das diversas perspectivas morais de uma sociedade), preferências se organizam muitas vezes como valores inegociáveis. E, aqui, surgem os problemas que costumamos identificar com conflitos religiosos na política.

Obscurantismo

Em certos contextos, identidades religiosas se opõem à "gag rule" laicista que caracterizou a experiência política de algumas regiões, o que parece, num primeiro momento, ameaçar o próprio processo de diferenciação que costumamos chamar de “secularização”. Se entendemos, porém, o processo de secularização menos a partir das estruturas de crenças, e sem admitir uma problemática centralidade da política na sociedade, e mais como resultado de um processo profundo de diferenciação social fundado em lógicas reflexivas como o direito, a ciência, a economia, a educação, a medicina e a própria religião, esse temor acerca de um “obscurantismo” religioso a ameaçar a modernidade, ou mesmo o Estado de Direito, pode ser desdramatizado, dissipando-se em grande medida. 

Sou cético quanto à capacidade de instrumentalização de uma “política religiosa” frente ao direito ou à economia. Aliás, eu me preocuparia mais com a instrumentalização do direito e da política pela economia.

Evidentemente, se olhamos os jornais ou a pauta do Congresso, e lá está um projeto como o Estatuto do Nascituro, é normal, e salutar, que haja uma politização reativa por grupos políticos específicos: setores urbanos mais orientados a partir de uma cultura individualista, grupos feministas etc. Mas isso faz parte da política democrática: uma certa escandalização, a tentativa de mobilizar a esfera pública contra um adversário etc. Um olhar sociológico poderia se perguntar: isso tem viabilidade jurídica? De que maneira as famílias vão incorporar essa norma? Será que outras esferas da vida vão ser atingidas por essa tendência? Claro que uma peça legal como essa pode ter repercussões jurídicas e políticas graves uma vez aprovada. Sobretudo em termos da perda de direitos, no caso das mulheres. Mas dizer que isso significa a emergência de um poder religioso pré-moderno ou contra o Estado de Direito me parece exagerado. Isso é resultado do processo político ele mesmo. E do fato de que a política é, nesse sentido, secularizada. Se não o fosse, não poderíamos nem mesmo ver a contingência de decisões como essa, mobilizando formas de protesto e politização. 

Liberalismo econômico e religião

Conflitos identitários e a ligação entre religião e política tornam-se ainda mais visíveis quando conflitos religiosos assumem dimensões étnicas. Algo que ocorre tanto em regiões mais pobres, do chamado sul global, como em alguns países europeus, em que a exclusão de imigrantes, com raiz eminentemente política e econômica, passa a ter uma dimensão religiosa, aproveitada muitas vezes politicamente. Talvez devêssemos perguntar, então, se conflitos políticos que aparecem como conflitos religiosos também não podem ter raízes em outro ponto da sociedade, relacionados por exemplo a problemas de exclusão social.

Do ponto de vista da política, evidentemente que é mais simples lidar com conflitos quando eles são formulados na linguagem dos interesses. Nós podemos negociar interesses. Mas muitas vezes não sabemos como negociar valores. Quando o conflito toma uma dimensão religiosa, custa mais à política lidar com ele. Mas ainda assim me parece improvável que a religião, sozinha, tenha força para levar a um retrocesso no processo de “secularização”. Se há algo como um retrocesso, ele viria muito mais de um novo arranjo das esferas sociais diferenciadas elas mesmas do que de uma ação “desdiferenciante” da religião.

Isso nos leva, exatamente, ao outro ponto da questão. Um bom exemplo de como a religião permanece existindo na modernidade, mas como sua centralidade é relativizada pela secularização é a relação entre liberalismo econômico e religião. A presença marcante de religiosidade não se opõe de modo algum à liberalização da economia. Aliás, difícil pensar em um contexto social em que a religião é vivida tão intensamente como aquele dos Estados Unidos da América, a maior economia nacional do mundo, apontada sempre como exemplo de economia liberal.

Mas pensemos no processo de crescimento e liberalização econômicos da Turquia nos últimos anos. Muitos falam abertamente em uma "re-islamização" turca, graças à hegemonia conservadora do AKP, um partido de clara orientação muçulmana – inclusive legislativa. Ainda assim, a economia nacional turca cresce a números impressionantes e tem sido largamente liberalizada. Mais uma vez, me parece que muitos supervalorizam o papel da política nos processos sociais. E a associação entre política e religião lhes parece então uma lógica avassaladora, quando na realidade ela é muito bem associável a outras lógicas paralelas, como aquela da economia, por exemplo. Mais uma vez, não quero dizer que uma tal associação não tenha consequências concretas: para os direitos das mulheres, por exemplo. O que digo é: talvez isso não seja tão oposto assim aquilo que costumamos chamar de modernidade e de secularismo, pois a diferenciação de esferas permanece. 

 

IHU On-Line - Em que aspectos as mudanças ocasionadas pelo Estado laico se refletem no sistema jurídico global?

Pablo Holmes - Uma pergunta que se coloca aqui é se o nível de laicização de um Estado ou uma região particular consegue impulsionar ou obstruir a tendência à secularização que é global e alcança toda a sociedade mundial moderna. Em todos os países do mundo, hoje, nós temos algum tipo de constituição jurídica. Há em quase todos os lugares do globo organizações econômicas capitalistas, mercado monetarizado, organizações estatais (mesmo que simbólicas, como no caso dos chamados "failed states"), universidades, escolas, polícia, hospitais, museus, canais de TV e rádio. Claro que há assimetrias entre regiões, e até mesmo na mesma cidade existem assimetrias absurdas: e não apenas no Cairo, em Recife ou São Paulo, mas também em Nova Iorque e Londres. Mas me custa pensar que em alguma cidade do Irã (para citar o clichê mais conhecido) alguém consiga sobreviver sem dispor de dinheiro. Sabemos bem que em Teerã não prospera qualquer tipo de economia de subsistência. Lá tampouco alguém pode dirigir um automóvel sem uma específica licença, ou mulheres grávidas com alguma complicação recorrem a um curandeiro tribal. Claro, eles têm problemas sérios com o sistema político. Mas isso é típico de uma ditadura, o que não os faz ser uma sociedade pré-moderna. O Brasil teve uma ditadura até 1985. A Alemanha viveu em diferentes momentos sob uma ditadura, e isso nem faz tanto tempo assim. Outros países europeus também tiveram momentos extremamente autoritários politicamente (Espaha, Portugal, Itália).

Renascimento dos conflitos políticos

Uma das questões mais urgentes de hoje é, porém, é a emergência de estruturas jurídicas transnacionais, que são reproduzidas de modo paralelo às estruturas políticas dos Estados, sobretudo por atores privados. O caso da Lex Mercatoria, o direito das empresas transnacionais é bem conhecido. Mas pensemos também em formas de estandardização impostas por empresas privadas, a partir de seus interesses, e que tem grandes repercussões na reprodução do sistema econômico globalmente e, logo, nas nossas vidas cotidianas. 

Aqui é ainda mais improvável que a política, associada à religião, possa ter grande espaço de ação que não seja, meramente, reativo. Se há algum papel para religião, aqui, ele se dá, na minha impressão, em consequência de fenômenos conectados à exclusão social de processos de integração econômica, política, jurídica e científica globais e transnacionais. Eles se expressam, então, na forma de um renascimento de conflitos políticos com traços identitários, com claro caráter reativo – ou "reacionário". Eu penso no norte-americano médio, do Meio Oeste, não muito educado, mas que historicamente dispôs de uma elevada autoestima. Ao observar que as decisões políticas, econômicas e jurídicas relevantes são tomadas não por meio das estruturas políticas nacionais, mas cada vez por uma elite transnacional urbana, desvinculada dos jogos de interesse da política nacional, na qual ele estava representado, ele reage. Como? Pode recorrer a uma associação entre valores identitários religiosos e nacionalistas, para se fazer ouvir e mobilizar a política nacional. Algo parecido ocorre no Brasil, por razões diferentes. Afinal de contas temos uma história mais antiga e naturalizada de exclusão social das decisões políticas. Mas se a política nacional, quero dizer, os Estados, perdem sua centralidade nos mecanismos jurídicos de regulação transnacionais, qual o poder real que tem esse tipo de movimento? Provavelmente apenas reativo: eles não são capazes de determinar o sentido das transformações históricas, talvez apenas a sua velocidade.

 

IHU On-Line - Quais são as peculiaridades da laicização americana e francesa? Em que aspectos se aproximam e divergem?

Pablo Holmes - Parece-me que na Europa, de modo geral, a laicidade assumiu proporções mais positivas. A gag rule que proíbe a tematização de questões religiosas nas instituições passou a valer para além do Estado, abrangendo qualquer manifestação na esfera pública. Na França, assim como na Alemanha, país que conheço melhor, a religião é tratada como um problema eminentemente privado. Claro, que aqui se mostra um paradoxo. O paradoxo é o de que o problema da transcendência pode ser simplesmente ignorado, ou não tematizado. Mas essa é já uma forma de lidar com o problema da transcendência. Ao se propugnar a ideia de que a religião é um tema privado, que não deve ser manifestado publicamente, impõe-se tacitamente um modo particular de lidar com o problema. Aos olhos daqueles para quem o problema da transcendência tem uma importância maior, no autoentendimento individual ou coletivo, isso pode ser sentido como uma imposição.

No caso dos Estados Unidos, claramente, trata-se de um país com um alto nível de secularização, assim como de laicização das instituições político-jurídicas, mas em que o problema da religião é tratado juridicamente no âmbito da primeira emenda à constituição. Quer dizer, a manifestação religiosa pública é parte da liberdade de expressão. Desse modo, traz-se para esfera pública também a liberdade religiosa. Aqui, tem-se que supor, porém, um grau tal de secularização ampla da sociedade, para que seja impossível a alguma identidade religiosa particular impor sua perspectiva teológica às outras. 

 

IHU On-Line - Como se pode compreender a “laicidade de combate” e a “laicidade de tolerância”?

Pablo Holmes - Num primeiro momento, eu diria que ambas as expressões são fortemente carregadas politicamente. E, portanto, é difícil se mover de um lado para o outro, sem que isso não mobilize opiniões de grupo. 

Para aqueles que veem na religião uma experiência relevante, tanto do ponto de vista individual como do ponto de vista coletivo, a ideia de “laicidade de combate” vai fatalmente aparecer como uma redução de direitos. Pensemos não apenas nos evangélicos, mas em populações indígenas ou de origem africana que praticam ativamente sua religião. Por que não poder dar a seus descendentes o direito de aprender elementos religiosos na escola, por exemplo? Por outro lado, um laicismo de tolerância, que pode ser interessante para aqueles que compõem uma minoria religiosa, vai parecer ao mesmo tempo para aqueles que têm uma vivência não teológica do tema da transcendência como uma posição frágil, que lhe obriga a conviver com visões religiosas que o incomodam.

Acredito que algum grau de politização da temática religiosa é inevitável. Diante de problemas crescentes de desigualdade e exclusão da política, em uma sociedade mundial que se transnacionaliza e exclui dos processos de decisão vastas camadas da população, esses problemas podem inclusive aumentar, como forma de reação. Um olhar cuidadoso para esse tema deveria primeiramente procurar entendê-lo, antes de politizá-lo precipitadamente. Somente compreendendo o significado da religião na sociedade mundial atual é possível, inclusive, assumir uma posição política adequada e responsável.

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