Edição 426 | 02 Setembro 2013

O nexo entre política do reconhecimento e secularização

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Márcia Junges

Para Luiz Bernardo Leite Araújo, ambos fenômenos “se colocam a partir de uma realidade política caracterizada pela tendência natural a um desacordo razoável entre os indivíduos quanto à definição do bem viver”

“Contrapondo-se à cegueira de um liberalismo insensível às diferenças, a política do reconhecimento reivindica, para além dos iguais direitos jurídicos e políticos, aos quais foram adicionados elementos sociais e econômicos ao longo do século passado, a incorporação de direitos culturais como realização mais acabada, digamos, do princípio da igualdade afirmado pelos regimes democráticos modernos”. A reflexão é do filósofo Luiz Bernardo Leite Araújo na entrevista que concedeu, por e-mail, à IHU On-Line. Em seu ponto de vista, Taylor afirma, ao modo de Rawls, que estamos “condenados a viver em um ‘consenso sobreposto’, quer dizer, que a coesão social nas democracias modernas, caracterizadas pela diversidade de perspectivas religiosas, filosóficas e morais que se chocam e se fragilizam mutuamente, depende de uma ética da cidadania firmada por comunidades cujas razões divergem umas das outras, requerendo uma justiça política equidistante das diferentes posições e uma linguagem pública isenta de premissas extraídas de uma ou outra forma de crença e também - o que é importante - de descrença”.

Graduado em Filosofia pela Faculdades Associadas do Ipiranga, é mestre em Filosofia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro – PUC-Rio e doutor e pós-doutor em Filosofia pela Universidade Católica de Louvain, na Bélgica, com a tese Modernité, Raison Communicationnelle et Tradition. Un essai de systématisation de la théorie critique de la religion chez Jürgen Habermas. Na Universidade do Estado de Nova Iorque e na Universidade Federal de Santa Catarina – UFSC cursou pós-doutorado. Leciona no Departamento de Filosofia da Universidade do Estado do Rio de Janeiro – UERJ e é autor, entre outros, de Religião e Modernidade em Habermas (São Paulo: Edições Loyola, 1996) e Pluralismo e Justiça: Estudos sobre Habermas (São Paulo: Edições Loyola, 2010).

 

Confira a entrevista.

 

IHU On-Line - Qual é a diferença entre laicidade e secularização? E o que podemos compreender por pós-secularismo?

Luiz Bernardo Leite Araújo - São termos aparentados, muitas vezes utilizados como sinônimos. A secularização é algo mais abrangente, comportando um processo multifacetado no qual a laicidade é um componente importante. Este último conceito, até mesmo por sua costumeira utilização a partir do contexto republicano francês (laïque, laïcité), remete principalmente ao aspecto político de uma teoria da secularização. Como demonstra Charles Taylor, em sua monumental obra Uma Era Secular, o “secular” é uma categoria que se desenvolveu dentro da cristandade latina, remetendo ao tempo profano ou mundano (saeculum) em contraste com tudo aquilo que se referia ao eterno, sagrado, constituindo um termo de uma díade cujo significado foi sendo transformado à medida que seu contraponto se alterava, de maneira que a separação clara entre uma ordem imanente e outra transcendente, de cunho eminentemente religioso, preparou paradoxalmente o terreno para uma afirmação de autossuficiência do secular. Assim, a laicidade traduz, sobretudo, a doutrina política da separação entre Igreja e Estado, uma espécie de viga mestra da secularização moderna, não sendo demasiado lembrar que as revoluções americana e francesa deram lugar a dois modelos narrativos distintos, quer no sentido de distanciamento entre as instituições governamentais e as instituições religiosas, quer no sentido de controle das primeiras sobre as segundas. 

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O termo pós-secularismo é de uso mais recente, correspondendo a uma mudança de mentalidade segundo a qual a autocompreensão secular da modernidade, que em princípio não é colocada em questão malgrado as interpretações divergentes, não deveria ser norteada pelo secularismo ou laicismo enquanto ideologia ou visão de mundo. A ideia adquiriu importância crescente nas discussões acadêmicas atuais, em parte devido à influência do pensamento de Jürgen Habermas , o qual em sua obra Entre Naturalismo e Religião usa a expressão para denotar sociedades que se tornaram conscientes da persistência da religião, de sua relevante contribuição para a vida política, da necessidade de eliminar sobrecargas mentais e psicológicas desmesuradas para cidadãos crentes, e ainda do imperativo de acomodação das vozes religiosas na esfera pública democrática. Não é muito diferente, resguardadas as diferenças conceituais, da ênfase de Taylor num novo sentido de secularidade que permita compreender as condições em que se dão a aspiração humana de completude e a relação com a transcendência em uma época caracterizada pela erosão da certeza imediata e pelo fim da fé religiosa ingênua, ou seja, para além dos significados tradicionais da secularidade como esvaziamento da religião no espaço público e como declínio das crenças e das práticas religiosas.

 

IHU On-Line - Sendo a democracia “herdeira” política do cristianismo, na concepção de Nietzsche , como podemos compreender o fenômeno da laicidade?

Luiz Bernardo Leite Araújo - É de fato inquestionável, a meu ver, essa afinidade eletiva, para utilizar um termo tão caro a Max Weber, entre os ideais cristãos de igualdade entre todos os seres humanos, porque criados à imagem e semelhança de Deus, de responsabilidade solidária pelo destino de cada um, de uma moral da consciência individual autônoma e emancipada - entre outros que poderiam se resumir na ideia de dignidade humana -, e os princípios básicos das democracias liberais modernas. Por outro lado, onde tal ordem democrática se impôs, ela não resultou de uma relação harmônica entre poderes mundano e supramundano, mas de uma tensão permanente entre a religião e as diversas esferas de ação e de pensamento. Daí a importância dos estudos weberianos sobre a emergência da modernidade como processo de racionalização e de desencantamento do mundo, mutuamente relacionados. Ora, um aspecto saliente dessa análise é exatamente o da progressiva diferenciação e autonomização das esferas de valor nas sociedades modernas secularizadas, nas quais a laicização da autoridade política está vinculada à instauração de um pluralismo religioso e à adoção de um regime de tolerância entre credos e doutrinas divergentes. É por essa razão, no fundo, que John Rawls, na obra O Liberalismo Político, enuncia como o problema fundamental da filosofia política moderna a possibilidade ou não da existência de uma sociedade democrática formada por pessoas razoáveis que se encontram, no entanto, profundamente divididas por doutrinas religiosas, filosóficas e morais concorrentes e incompatíveis entre si. A secularidade é, nesse sentido, uma resposta do Estado democrático à ampla diversidade de crenças, religiosas e não religiosas.

 

IHU On-Line - Quais são os principais aspectos que mudam na política a partir da perspectiva da laicidade?

Luiz Bernardo Leite Araújo - São vários os aspectos, mas todos eles derivados da grande mudança representada pela perda, ou ao menos pelo descrédito, das metanarrativas de legitimação do poder político. Trata-se da questão espinhosa da justificação normativa de princípios que devem reger a estrutura básica de uma comunidade política, sabendo-se de antemão que tais princípios não podem estar baseados em concepções do bem sujeitas à controvérsia entre cidadãos que se veem como livres e iguais. Em outras palavras, qual é o modelo aceitável de justificação de uma concepção independente ou autônoma de justiça política no contexto irremediavelmente pluralista da modernidade? Há uma convergência notável entre os autores citados quanto à centralidade do recorrente problema teológico-político relacionado à coerência dos ideais fundamentais das sociedades democráticas modernas quando divorciados de suas origens religiosas. É curioso observar, por exemplo, que Taylor afirma, ao modo de Rawls, estarmos condenados a viver em um “consenso sobreposto”, quer dizer, que a coesão social nas democracias modernas, caracterizadas pela diversidade de perspectivas religiosas, filosóficas e morais que se chocam e se fragilizam mutuamente, depende de uma ética da cidadania firmada por comunidades cujas razões divergem umas das outras, requerendo uma justiça política equidistante das diferentes posições e uma linguagem pública isenta de premissas extraídas de uma ou outra forma de crença e também - o que é importante - de descrença. Bastante similar é a contenda ocorrida em 2004 entre Habermas e o então Cardeal Joseph Ratzinger , hoje Papa Emérito Bento XVI, acerca dos fundamentos morais pré-políticos de um Estado livre, na qual o pensador laico, como se poderia esperar, defende uma justificação pós-metafísica e não religiosa das bases normativas da democracia constitucional.

 

IHU On-Line - A partir do horizonte da laicidade, como podemos compreender a consolidação e representatividade da bancada evangélica no Congresso brasileiro?

Luiz Bernardo Leite Araújo - Talvez existam motivos para preocupação no tocante a uma possível instrumentalização do político pelo religioso, ou vice-versa, mas eu penso que deveríamos desdramatizar o assunto. Há um sem número de interesses que levam à convergência mais ou menos sistemática entre os agentes políticos, não é mesmo? E isso não apenas no Brasil, como se pode ver no caso recente da não aprovação pelo Senado dos Estados Unidos da emenda proposta pelo presidente Barack Obama visando a um maior controle sobre a venda de armas naquele país, rejeição que contou com o apoio de alguns senadores democratas, do partido de Obama, embora saibamos da maior proximidade dos senadores republicanos com a poderosa e extremista Associação Nacional do Rifle americana. Poderíamos multiplicar os exemplos, alguns mais outros menos noviços, aqui e alhures, para simplesmente ressaltar que a existência de uma bancada desse ou daquele tipo não é o problema, e sim a eficácia dos mecanismos democráticos de controle institucional. Tudo vai depender, nessa indagação, de como se compreende o horizonte da laicidade. Evidentemente, se ele for tomado como exclusão mútua entre religião e política, pautada na visão de acordo com a qual as doutrinas religiosas não deveriam desempenhar nenhum papel em discussões políticas e em tomadas de decisões públicas, a formação de uma bancada evangélica, ou de qualquer outro segmento religioso, seria preocupante e até mesmo ilegítima. Nesse caso, contudo, teríamos de adotar uma interpretação assaz restritiva da ideia de razão pública, sobre a qual pesaria o ônus de uma distribuição assimétrica dos deveres recíprocos da cidadania democrática. É claro que há restrições importantes, mas elas não deveriam onerar particularmente os cidadãos religiosos, e é mister que sejam definidos com clareza os fóruns nos quais se aplicam com justeza as restrições da razão pública democrática, o que de resto também é motivo de desacordo entre os estudiosos.

 

IHU On-Line - Em que sentido há um nexo entre laicidade e liberalismo? Esta é uma das premissas que fundamenta esse sistema político? Por quê?

Luiz Bernardo Leite Araújo - É possível supor um regime secular que não seja liberal, mas certamente o liberalismo possui como uma de suas premissas básicas a laicidade. Isso porque o liberalismo se apresentou, desde suas origens históricas, como uma nova possibilidade de sociedade não mais interpretada como unida por suas doutrinas abrangentes - religiosas, filosóficas, morais - e seus amplos valores em torno de todos os aspectos da existência humana, e sim por sua concepção política de justiça que presumivelmente poderia contar com a adesão dessas doutrinas na medida de sua razoabilidade, funcionando assim como base de um acordo público respeitoso das liberdades individuais e da diversidade das visões particulares do bem. A ideia de “laicidade” ou “secularidade” tornou-se um componente essencial de uma nova concepção política fundada em alguns princípios básicos compartilhados por cidadãos que divergem em suas crenças religiosas e não religiosas, as quais aspiram notadamente à verdade inteira. Voltando a Taylor, embora o termo “secular” não exclua necessariamente a dimensão religiosa, sendo inclusive - como já apontado - uma categoria que tem sua origem na cristandade latina, a ordem moral moderna se desenvolve dentro de uma estrutura imanente, distinta e separada de uma ordem transcendente da qual se torna progressiva e lentamente independente.

 

IHU On-Line - Em que medida os valores que norteiam a vida social moderna se baseiam em critérios seculares?

Luiz Bernardo Leite Araújo - Eu faria uma distinção entre vida social e vida política, limitando a querela sobre a qual nos ocupamos ao domínio do político, isto é, à questão rawlsiana de como as doutrinas abrangentes dos mais diversos tipos - religiosas e seculares - podem coexistir e cooperar de modo razoável e justo numa democracia constitucional, ou ainda quais são os pressupostos comuns para uma atuação aceitável dessas doutrinas distintas e incompatíveis na esfera pública. Por óbvio, não é uma questão de fácil solução, porquanto o pomo de discórdia reside na compatibilidade pelas razões corretas de uma concepção política liberal e não religiosa com as doutrinas abrangentes razoáveis não liberais e religiosas. Que estas últimas existam, tenham atuação destacada na vida política e possam exercer seu direito de cidadania não está em discussão. Nesse sentido, Rawls é incisivo quanto à aplicação da razão pública a elementos constitucionais essenciais e a questões de justiça básica da “cultura política pública”, que diz respeito à sociedade política onde os cidadãos agem como se fossem legisladores, em contraste com a “cultura de fundo”, formada pelas instituições e associações da sociedade, como a família, empresas, igrejas, universidades, sindicatos, entre outras, cuja cultura do social - e não do político - é permeada por razões não públicas, e nessa medida não estão sujeitas aos limites da razão pública, salvo quando afetam direitos e liberdades fundamentais da cidadania. Em suma, se os critérios seculares se definem por um tipo de argumentação que se baseia em doutrinas não religiosas abrangentes, eles fogem ao escopo de uma concepção puramente política que se encontra dentro dos limites do conteúdo da razão pública, estando sujeitos às mesmas restrições impostas pelo critério de reciprocidade democrática. Evita-se assim, uma identificação abusiva entre “razão pública” e “razão secular”.

 

IHU On-Line - Quais são os nexos entre o racionalismo da ética argumentativa em face da secularização moderna?

Luiz Bernardo Leite Araújo - Uma hipótese fundamental da teoria habermasiana da modernidade, que pode ser encontrada em sua obra Teoria do Agir Comunicativo, é a de uma dissociação do medium da comunicação, correspondente à separação entre as esferas do sagrado e do profano. O simbolismo religioso é interpretado como uma raiz pré-linguística do agir comunicativo, expressando um consenso normativo tradicional estabelecido e renovado na prática ritual. Tal consenso constitui o núcleo arcaico da integração social. A ideia de “verbalização” do sagrado - que traduz uma laicização racional do vínculo social primitivo na força ilocucionária da linguagem profana, uma espécie de fluidificação comunicativa do consenso religioso básico - significa, para Habermas, uma dominação progressiva do agir comunicativo: as funções elementares de reprodução simbólica do mundo da vida, originariamente preenchidas pelo rito e fundadas no domínio sacral, seriam paulatinamente transferidas para a comunicação linguística. Ora, a ideia de desencantamento do âmbito sacral é desenvolvida particularmente com base na evolução do direito e da moral, desde a imbricação entre a ética mágica e o direito revelado das sociedades arcaicas, passando por certa distinção entre a ética da lei e o direito tradicional, até a separação entre as éticas da convicção e da responsabilidade e o direito formal das sociedades modernas. Ainda segundo essa leitura, a moral autônoma e o direito positivo se diferenciam e passam a constituir uma relação de complementaridade recíproca após o desmoronamento dos fundamentos sagrados da normatividade. Assim, no contexto de uma substituição da autoridade da fé pela autoridade de um consenso racional visado pela comunicação, a moral é, dentre as esferas culturais de valor - cuja diferenciação entre elas e a autonomização de cada uma delas na modernidade é assinalada com veemência por Habermas -, a mais importante a ser considerada. A posição sustentada por ele é a de uma ética argumentativa que retoma a substância das tradições religiosas sob uma forma profana, isto é, uma teoria moral que visa traduzir, em linguagem racional e secularizada, as exigências próprias das éticas da convicção, outrora alicerçadas na autoridade do sagrado. A derrocada do fundamento último absoluto não implica, então, a recusa de uma possibilidade de justificação das convicções morais, mas sim uma retomada da universalidade da razão prática através da razão comunicativa. Nessa ótica, a teoria discursiva da moral situa-se na tradição kantiana das éticas cognitivistas que enfrentam, de modo vigoroso, as consequências da ruptura moderna entre o ético e o religioso, pela via de uma fundamentação racional de princípios e procedimentos universais.

 

IHU On-Line - Em que medida a política do reconhecimento está imbricada com o fenômeno da secularização?

Luiz Bernardo Leite Araújo - Na medida em que ambos se colocam a partir de uma realidade política caracterizada pela tendência natural a um desacordo razoável entre os indivíduos quanto à definição do bem viver. Em contextos cada vez mais diversos e plurais crescem as demandas de indivíduos e grupos por uma inclusão equitativa baseada na própria noção de cidadania republicana, na qual os cidadãos compartilhariam um conjunto idêntico de direitos. Contrapondo-se à cegueira de um liberalismo insensível às diferenças, a política do reconhecimento reivindica, para além dos iguais direitos jurídicos e políticos, aos quais foram adicionados elementos sociais e econômicos ao longo do século passado, a incorporação de direitos culturais como realização mais acabada, digamos, do princípio da igualdade afirmado pelos regimes democráticos modernos. Não tenho condições de desenvolver aqui a fascinante controvérsia entre multiculturalismo e liberalismo envolvida na temática do reconhecimento - para a qual muito contribuíram Taylor e Habermas, em direções opostas -, mas gostaria de chamar a atenção para o fato de que ela recoloca em novas bases a questão do secularismo. Com efeito, o que está em jogo mais uma vez é o sistema moderno de tolerância e seus efeitos assimétricos sobre comunidades e doutrinas tradicionais cujos valores e crenças fundamentais não se encaixam integralmente no quadro político de uma ordem jurídica talhada ao feitio do universalismo igualitário.

 

IHU On-Line - Em que aspectos as ideias de Rawls e Habermas fornecem elementos para pensarmos o papel da religião na esfera pública?

Luiz Bernardo Leite Araújo - Como acabamos de perceber, um aspecto importante do debate contemporâneo em filosofia política incide na razoabilidade ou não dos custos que indivíduos e grupos devem assumir para uma adaptação à modernização cultural e social. Ora, em que medida são aceitáveis as restrições assimétricas decorrentes das normas, mesmo supondo-as fundadas no princípio democrático de igualdade cívica? Sem tê-la comentado, aludimos anteriormente à noção adotada por Rawls de um “consenso sobreposto”, segundo a qual a base da unidade social em um regime democrático constitucional é a concepção política de justiça que constitui o foco de um acordo normativo entre as doutrinas abrangentes razoáveis. Em seus últimos escritos, Habermas demonstra um especial interesse pelo papel da religião na esfera pública, procurando responder às objeções comumente levantadas contra aquela ideia rawlsiana de “razão pública”, seja a de que cidadãos religiosos carregariam um fardo injusto de autocensura ao terem de separar as suas identidades religiosa e não religiosa, seja ainda a de que os deveres de cidadania seriam desigualmente distribuídos entre cidadãos crentes e seculares. Trata-se da possível estreiteza da estratégia de tradução defendida por Rawls, a qual, se de modo algum impede a introdução de doutrinas abrangentes na discussão política, impõe a cláusula que consiste em traduzir argumentos não públicos para a linguagem política. Ambos os filósofos defendem uma visão inclusiva da razão pública democrática. Nessa discussão sobre a religião na esfera pública, o liberalismo político é reconhecido como a abordagem padrão por estar apoiado em noções de legitimidade política e de ética da cidadania claramente vigentes nas democracias constitucionais bem estabelecidas. Em breves palavras, é a abordagem que - adotando uma justificação normativa não sectária fundada em razões publicamente acessíveis, por um lado, e requerendo dos cidadãos certa moderação no uso de argumentos direta e exclusivamente religiosos ao tratarem do exercício do poder coercitivo e dos termos fundamentais da cooperação política, por outro - acarreta uma interpretação restritiva do papel político da religião. A teoria discursiva, por seu turno, ao buscar confrontar-se com as objeções empírica e normativa erguidas contra a cláusula restritiva, propõe um modelo diferente de implementação da ressalva de tradução, estabelecendo uma cláusula de tradução institucional - aplicável apenas à esfera pública formal dos parlamentos e dos tribunais, do governo e da administração, nos quais contam somente argumentos seculares - como solução mediadora entre o exclusivismo e o inclusivismo na questão da religião na esfera pública, algo que se lhe afigura necessário para uma garantia simétrica da liberdade de religião constitutiva do exercício democrático do poder político. Habermas advoga, assim, uma tradução cooperativa de conteúdos religiosos, que remete a uma ética da cidadania cuja realização depende de enfoques epistêmicos mediante os quais as dissonâncias cognitivas sejam tratadas como desacordos razoáveis entre todas as partes engajadas em processos de aprendizagem complementares.

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