Edição 424 | 24 Junho 2013

A despedida da religião e a dedicação ao amor que sustenta tudo e todas as coisas

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Por Márcia Junges / Tradução: Walter O. Schlupp

O avanço da modernidade irá destronar o Deus nas alturas, sentencia o jesuíta Roger Lenaers. O futuro, portanto, será “a-teísta”. “Somos centelhas desse fogo eterno que é o protoamor; e que o continuaremos sendo também no além”

Um Deus que está em tudo é a compreensão do jesuíta belga Roger Lenaers, que abertamente admite o panenteísmo que lhe é intrínseco. Referindo-se à ideia da criação como autoexpressão do Espírito, ele afirma, na entrevista que concedeu por e-mail à IHU On-Line, que “essa é a única maneira de falar sobre a criação”. Apenas dessa forma é possível “evitar a noção pré-moderna de um Deus fora do cosmos, isto é, de um Deus teísta, que fora de si próprio faz do nada o cosmos. Na Era Moderna não há mais lugar para um Deus desse tipo”. E acrescenta: “Eu O vejo e ouço e cheiro em tudo que vejo e ouço e cheiro, e não só fora de mim; Ele é intimior intimo meo, Ele é mais eu mesmo do que eu mesmo sou. Isso ilumina e deixa translúcidos o mundo e minha própria existência”. Em seu ponto de vista não faz mais sentido se falar em conceitos como pecado, culpa, castigo, penitência, confissão e sacrifício da cruz, já que são “oriundos de uma noção de Deus pré-moderna. Pressupõem inconscientemente um theós antropomórfico, um Senhor concebido segundo o modelo de potentados humanos, que se ofende com facilidade e, depois das ofensas, precisa ser apaziguado mediante expiação, mediante confissão de culpa, que espera e reconhece o castigo, com a diferença de que nós mesmos devemos levar a cabo nossa punição”. Para Lenaers, os “presentes” e sacrifícios que devemos oferecer a esse Deus para que Ele nos acolha novamente são “tentativas de suborno”.
A entrevista foi inspirada na obra Gläubiger Abschied von der Religion (Kleve: Anderswo, 2012), versão alemã da segunda parte do original holandês, cuja primeira parte fora publicada um ano antes em alemão com o título In Gott leben ohne Gott . Graças ao trabalho de Carlo Tursi em Fortaleza, as duas metades foram novamente integradas num único livro em português sob o título Viver em Deus sem Deus (São Paulo: Paulus, 2011), que corresponde ao título da primeira metade alemã.

Roger Lenaers é jesuíta, teólogo, pároco de dois vilarejos nas montanhas do Tirol, na Áustria. Segundo ele próprio, por preocupação pastoral escreve coisas “tão óbvias” que fica espantado sobre como é que nem todos veem o que ele vê. Por essa razão Gläubiger Abschied von der Religion não apresenta recursos científicos como notas e bibliografia, acentua o sacerdote.
Confira a entrevista.

IHU On-Line – Em que consiste a principal incompatibilidade no campo religioso entre a visão pré-moderna e a visão pós-moderna de mundo?

Roger Lenaers – Essa pergunta me deixa perplexo. Como haveria incompatibilidade entre a visão moderna do mundo e a pós-modernidade? Por que o enfoque religioso haveria de mudar alguma coisa nisso? Será que entendi mal a sua pergunta? A meu ver a pós-modernidade não passa de uma reação crítica à modernidade, porém no seio da modernidade, seria a bem dizer sua autocrítica. Por isso só falo sempre de fé moderna, não como a pergunta, de fé pós-moderna.

IHU On-Line – Em que medida a consciência do fiel pós-moderno sobre a antropomorfização da divindade impacta em sua concepção de transcendência?

Roger Lenaers – O caráter antropomórfico da noção de Deus é uma característica da fé pré-moderna. Naturalmente todo e qualquer discurso sobre Deus não tem como evitar certo antropomorfismo. Quando se fala, como eu, de protoamor, protomilagre, protorrealidade, trata-se de uma tentativa de mais ou menos conceber o inconcebível por meio de conceitos humanos. Esse também é o caso quando chamo o cosmos em evolução de autoexpressão crescente desse protomilagre. Ao que me parece, somente se fala de caráter genuinamente antropomórfico quando se atribuem qualidades e funções humanas a essa protorrealidade, como falar, ver, ouvir, atender, julgar, punir, recompensar etc. O fim do antropomorfismo forçosamente leva à conclusão de que a pessoa de fé moderna precisa considerar que não têm valor algum todas as atribuições que faz sobre o além (toda a conversa de recompensa e punição, felicidade, luz etc.): sabemos somente aquilo que está sendo agora; parte disso é, ao menos na minha imagem moderna de Deus, que somos centelhas desse fogo eterno que é o protoamor; e que o continuaremos sendo também no além.

IHU On-Line – O que é o “a-teísmo” ao qual o senhor se refere em Gläubiger Abschied von der Religion? Em que sentido esse conceito se contrapõe ao ateísmo?

Roger Lenaers – Não se trata de uma diferença de conteúdo, mas de uma diferença meramente psicológica. O termo “ateísmo”, historicamente, tem a conotação de hostilidade para com Deus, como a senhora indica na quarta questão. Em si, a palavra apenas significa que a pessoa deixou de ter uma imagem teísta de Deus. Gläubiger Abschied von der Religion, “Despedida crente da religião”, é exatamente isto: abandonar o teísmo (= religião) para se dedicar ao protoamor que está por detrás da imagem teísta de Deus; crer, portanto, no sentido cristão original da palavra, que em sua essência (dada sua etimologia e origem) é a dedicação do coração, e não (aliás: muito mais do que) confiar em informações religiosas e assimilá-las. A formulação a-teísmo pretende expressar que não se trata de postura ímpia [impietas], mas apenas daquela despedida.

IHU On-Line – Em que sentido caminhamos para uma forma de “a-teísmo”?

Roger Lenaers – Minha conjetura é a seguinte: o paulatino avanço da modernidade, num processo não de décadas, mas que pode durar séculos, vai suplantar as civilizações teístas com sua adoração de um Deus nas alturas (ou vários deles), suplantando portanto também as ainda fortíssimas religiões do mundo (como o islamismo, hinduísmo), da mesma forma como a modernidade atualmente está suplantando o cristianismo. Se essa conjetura estiver correta, o futuro será a-teísta. Meu único temor é que então o ateísmo poderá ter-se transformado em impietas, postura ímpia, como foi o caso no nazismo, stalinismo, maoísmo, em vez de se transformar em fé. Portanto, poderia vir a ser uma despedida descrente, com gigantesco prejuízo para a humanidade.

IHU On-Line – É possível aproximar a concepção de “a-teísmo” com uma noção panenteísta?

Roger Lenaers – Com certeza. No fundo, minha visão é uma espécie de panenteísmo: “Deus” tudo em tudo.

IHU On-Line – Como é possível “viver em Deus sem Deus”? Essa é uma prerrogativa dos cristãos do futuro? Por quê?

Roger Lenaers – Essa expressão é de Dietrich Bonhoeffer . Talvez eu a entenda de uma forma um pouco diferente que ele. Para mim a expressão “viver em Deus” significa deixar-se determinar pelo protoamor, de modo que nossos atos não sejam determinados por leis provenientes de um theós (Javé, Alá...) ou de alguma instância humana que alega decretá-las em nome desse deus (códigos alimentares, matrimoniais, litúrgicos, ou referentes ao vestuário...). E, sim, que sejamos determinados pelo protoamor, que nos induz a amar, ou concretamente: a cuidar, ajudar, dividir, perdoar, etc., inclusive nos amando a nós próprios ao tentar levar uma vida a mais valiosa possível. Desse cuidado para com a nossa humanização também faz parte a oração, não tanto em forma de orações como em forma de dedicação, deixando-nos mover por ela em direção ao semelhante. Isso para o cristão não é um privilégio, e sim tarefa sua, justamente para ele como cristão, pois graças a seu encontro com Jesus justamente ele tem uma conjetura de como deve ser a protorrealidade. Porque “quem o vê, vê o Pai”.

IHU On-Line – Em que aspectos devemos pensar a criação em termos de autoexpressão do Espírito?

Roger Lenaers – Essa é a única maneira de falar sobre a criação, porque somente assim consigo evitar a noção pré-moderna de um Deus fora do cosmos, isto é, de um Deus teísta, que fora de si próprio faz do nada o cosmos. Na Era Moderna não há mais lugar para um Deus desse tipo. Deus deixa de ser a inferência de um raciocínio (do tipo “O universo precisa ter uma causa”), ou, por outra, uma verdade que alguém me apresenta e a qual preciso aceitar. Não, eu O vejo e ouço e cheiro em tudo que vejo e ouço e cheiro, e não só fora de mim; Ele é intimior intimo meo, Ele é mais eu mesmo do que eu mesmo sou. Isso ilumina e deixa translúcidos o mundo e minha própria existência.

IHU On-Line – Qual é o sentido, hoje, numa sociedade marcada pela secularização e pelo individualismo, em se falar de pecado, culpa, castigo, penitência, confissão e sacrifício da cruz?

Roger Lenaers – A mim parece que esses conceitos não fazem mais sentido algum. Todos os conceitos mencionados são oriundos de uma noção de Deus pré-moderna. Pressupõem inconscientemente um theós antropomórfico, um senhor concebido segundo o modelo de potentados humanos, que se ofende com facilidade e, depois das ofensas, precisa ser apaziguado mediante expiação, mediante confissão de culpa, que espera e reconhece o castigo, com a diferença de que nós mesmos devemos levar a cabo nossa punição (penitência como autopunição, embora o termo alemão para penitência, büssen, signifique etimologicamente “corrigir”, e não “torturar a si mesmo”); e se isso não for observado, o castigo viria depois desta vida. E ao Senhor nas alturas devemos dar presentes para Ele graciosamente nos acolher novamente. É preciso corrompê-lo com sacrifícios. Ora, sacrifícios, no fundo, são tentativas de suborno. Dessa forma chegamos à terrível opinião de que o theós precisa exigir e efetivamente exige sacrifícios humanos (ao menos os considera indispensáveis), bem concretamente até a morte por tortura de uma pessoa humana, Jesus, antes de ele poder perdoar ou se dispor a perdoar. Para o crente moderno toda essa terminologia é tão vazia e indignante quanto para a sociedade moderna descrente.

IHU On-Line – Como a mensagem de esperança e fé do Ressuscitado ecoa e faz sentido na pós-modernidade?

Roger Lenaers – Com certeza não faz sentido se entendermos a ressurreição como sair da sepultura, porque isso é completamente inconcebível para o ser humano moderno, seja ele crente ou não. O próprio termo já é enganoso, porque pressupõe uma antropologia judaica antiga, a qual depois, tardiamente (não antes do século II antes de Cristo), foi fecundada por uma ideia teísta de Deus; essa antropologia hoje nos causa estranheza e foi ela que produziu essa noção de retorno da sepultura.

Em se partindo daquela ideia de Deus moderna, acima descrita, ou seja, do protoamor criativo, e em se considerando que a quintessência do ser humano faz parte da autoexpressão desse protoamor, então essa quintessência será igualmente eterna, indestrutível, imortal como o próprio protoamor. O enganoso conceito de ressurreição então aponta para essa unidade permanente com o protoamor. Quanto mais a pessoa, no aquém, deixar-se conduzir, impregnar, arrebatar por esse protoamor, ao efetivamente amar seus semelhantes (cf. Mateus 25,31-36), tanto mais ela é, ela vive, tanto mais é suprida sua necessidade de eternidade.

Trata-se de uma mensagem de enorme esperança. O cristão não poderá provar que não se trata de autoengano ou ilusão, mas é algo em que se confia com fundamento. O fundamento dessa confiança é sua experiência de ele já agora tanto mais ser, viver, realizar-se quanto mais ele se achar nessa postura desinteressada, que é a impressão digital do protoamor em nós.

IHU On-Line – Qual é a contribuição da espiritualidade inaciana para suas reflexões acerca da transcendência e do “a-teísmo”?

Roger Lenaers – O pensamento de Inácio é pré-moderno; por isso aquilo que ele escreve, por exemplo, em seus exercícios, para mim aos poucos foi se tornando uma espécie de língua estranha. Entretanto, sua experiência mística o conduziu ao enunciado acima descrito, que também é acessível para a modernidade: que devemos buscar e encontrar a “Deus” em todas as coisas. Aí também entram nossas atividades. Essa atitude foi justamente o ar que eu respirei na ordem dos jesuítas. Ela influenciou meu pensamento.

IHU On-Line – Quais são os principais desafios que o Papa Francisco encontra na Igreja de nossos dias a partir do diagnóstico que o senhor faz sobre o “a-teísmo”?

Roger Lenaers – Nem o Papa Francisco nem todos os outros papas são a cabeça da igreja para mim: Jesus é a sua cabeça. O Papa também não é representante dessa cabeça, porque Jesus não precisa de representantes, porque ele próprio sempre está vivamente presente. Quando muito, o Papa Francisco é porta-voz, secretário-geral do ramo (principal) católico da igreja. Nessa função ele só deve fazer uma coisa: ficar lembrando o Evangelho, e não governar, mandar, criar normas. E ele deve observar que a tradução concreta da mensagem evangélica deve variar segundo a diversidade das civilizações. Acontece que a modernidade ateísta é uma civilização fundamentalmente diferente da anterior, teísta. Por isso ele não deveria propagar mensagens uniformes, como as encíclicas, por exemplo. Por conta do passado romano e do seu próprio passado pessoal, elas assumirão conotação teísta. Ele deve, sim, empenhar-se no sentido de que as duas alas da Igreja Católica reconheçam como de igual valor o modo de pensar e o ideário da outra ala e vivam segundo o Evangelho, que é um Evangelho da fraternidade. Só receio que o pensamento do papa Francisco seja tão teísta que ele infelizmente terá pouca compreensão para a modernidade. Motivo para esse receio é, por exemplo, sua postura diante do homossexualismo. Onde se encontra essa postura em Jesus?

IHU On-Line – Gostaria de acrescentar algum aspecto não questionado?

Roger Lenaers – Tudo mais que penso, espero, temo e quero mostrar para todas as pessoas, encontra-se nos meus livros que também foram publicados em português: Outro Cristianismo É Possível (São Paulo: Paulus, 2011) e Viver em Deus sem Deus. Espero ter acertado a grafia dos títulos em português.

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