Edição 424 | 24 Junho 2013

A secularização gradativa no País de Gales

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Márcia Junges | Tradução de Luís Marcos Sander

De acordo com pesquisas de Sara Delamont e Neil Stephens, não há manifestações de candomblé ou umbanda no País de Gales, somente referências advindas da capoeira

Não é possível encontrar no País de Gales o sincretismo religioso característico do Brasil, destacam a professora Dra. Sara Delamont e o professor Dr. Neil Stephens na entrevista que concederam por e-mail à IHU On-Line. De acordo com suas pesquisas, no País de Gales “a tendência geral é uma passagem de ‘cristão’ para ‘sem religião’, portanto uma secularização gradativa. Isso se dá no contexto de uma crescente privatização das crenças religiosas. Se temos sincretismo como fenômeno amplamente disseminado, ele está nos momentos em que pessoas deixam de ser cristãs e passam a não ter religião”. Por outro lado, alguns aspectos da cultura brasileira podem ser percebidos em Cardiff, entre eles a manifestação das religiões diaspóricas brasileiras. Contudo, acentuam Delamont e Stephens, trata-se de “referências débeis feitas através do clube de capoeira de Cardiff, que pode ser visto realizando rodas ao ar livre nos meses de verão e se apresentando em bares e restaurantes nos meses de inverno”.

Sara Delamont é graduada em Antropologia Social pelo Cirton College Cambridge. Fez seu Ph.D em Edinburgo e desde 1976 leciona na Universidade de Cardiff, onde é decana de Ciências Sociais. De sua vasta produção bibliográfica, citamos Appetites and Identities: An Introduction to the Social Anthropology of Western Europe (Routledge: London, 1994) e Feminist Sociology (Sage: London, 2003).

Neil Stephens é graduado em Economia e Sociologia, com pós-graduação em Métodos de Pesquisa em Ciência Social e Ph.D com a tese Why Macroeconomic Orthodoxy Changes So Quickly: The Sociology of Scientific Knowledge and the Phillips Curve. Leciona na Universidade de Cardiff, no País de Gales. De sua produção bibliográfica, citamos o artigo que escreveu em parceria com Sara Delamont na obra The diaspora of Brazilian religions (Leiden: Brill, 2013), intitulada Mora Iemanja? Axé in Diasporic Capoeira Regional.

Confira a entrevista.

IHU On-Line – Como se apresenta a diáspora das religiões brasileiras no País de Gales?

Neil Stephens e Sara Delamont – As religiões diaspóricas brasileiras têm muito pouca importância no País de Gales atualmente. O censo de 2011, que é um questionário enviado a todos os residentes no Reino Unido, sugere que as estatísticas referentes à religião das pessoas são as seguintes: cristãos, 57,6%; sem religião, 32,1%; muçulmanos, 1,5%; outras religiões, 0,4%; hindus, 0,3%; budistas, 0,3%; siques, 0,1%; e judeus, 0,1%. As religiões diaspóricas brasileiras comporiam apenas uma parte dos 0,4% que têm outras religiões. É interessante observar nessas cifras que o número de pessoas que dizem não ter religião aumentou de 18,5% em 2001 para 32,1% num período de dez anos, o que representa uma grande mudança.

Aspectos da cultura brasileira podem ser bastante visíveis no País de Gales. Aqui na capital, Cardiff, temos restaurantes brasileiros, grupos musicais que tocam samba e bossa nova, e não é incomum ver galeses usando camisetas ou sandálias Havaianas com a bandeira brasileira ou um jogador de futebol brasileiro estampados nelas. Com efeito, tanto a seleção brasileira masculina de futebol quanto a feminina jogaram em Cardiff durante a Olimpíada de 2012. 

Mas o único lugar onde vemos uma manifestação das religiões diaspóricas brasileiras em público é em referências débeis feitas através do clube de capoeira de Cardiff, que pode ser visto realizando rodas ao ar livre nos meses de verão e se apresentando em bares e restaurantes nos meses de inverno.

O País de Gales é um país pequeno de 3 milhões de habitantes, e Cardiff tem cerca de 400 mil. Suas principais comunidades étnicas minoritárias têm herança asiática ou africana, de modo que não causa surpresa que as religiões brasileiras não tenham muita visibilidade. Há um número pequeno de brasileiros em Cardiff, muitos dos quais são alunos e alunas ou docentes/funcionários das três universidades da cidade, mas não há uma comunidade brasileira visível, nem uma loja brasileira, nem um prédio destinado especificamente à prática de uma religião brasileira. Os alunos e alunas brasileiros são principalmente católicos ou kardecistas, se têm alguma filiação religiosa.

IHU On-Line – Como se dá a relação entre os fiéis das religiões brasileiras com a comunidade local, que tem outros tipos de fé?

Neil Stephens e Sara Delamont – Até agora só encontramos um brasileiro que se identifica com o candomblé através de nossa pesquisa sobre a capoeira. Esse indivíduo mantém suas crenças de modo bastante privado. Ele discute de bom grado crenças do candomblé quando solicitado, mas não as explicita com regularidade. Conhecemos quatro kardecistas em Cardiff, que também são bastante reservados.

IHU On-Line – Qual é a importância no País de Gales de referências culturais como o axé e, dentro dele, a capoeira? Como a sociedade dialoga com essa diáspora cultural?

Neil Stephens e Sara Delamont – Trabalhando com Sara Delamont, um de meus focos de pesquisa nos últimos dez anos tem sido a capoeira regional ensinada no Reino Unido. Coletivamente, estudamos mais de 50 mestres de capoeira, incluindo 400 aulas de capoeira dadas por um mestre em particular. No livro “The Diaspora of Brazilian Religions”, usamos essa experiência para explorar a maneira como o conceito de axé é usado nos grupos que estudamos. Dessa maneira, vemos as formas sutis em que as religiões afro-brasileiras como o candomblé e a umbanda moldam as atividades das aulas, apresentações e batizados de capoeira.

Provavelmente seria uma representação equivocada do axé, assim como é entendido nas aulas de capoeira regional no País de Gales, se o chamássemos de crença. Mas ainda podemos perguntar como compreendemos o uso do axé fora do contexto das religiões brasileiras de matriz africana. Os alunos de capoeira no País de Gales entendem o axé como parte da constelação mais ampla da prática que os atrai para passar as noites dos dias de semana ou os fins de semana treinando capoeira e convivendo em torno dela. Isso é incomum e ao mesmo tempo atraente. Junto com o canto, as palmas e os movimentos acrobáticos, tudo faz parte de um hobby e exercício distintivo. Mas, assim como o canto, as palmas e os movimentos acrobáticos, a imensa maioria dos alunos não o identificam como uma crença religiosa.

Capoeira diaspórica

Nossa pesquisa constata que a visibilidade dessas religiões brasileiras de matriz africana é limitada até mesmo no contexto da capoeira regional. Embora o conceito de axé seja objeto de referências frequentes – em canções, em orientações dadas pelos instrutores e em conversas informais entre alunos –, o legado religioso do axé muitas vezes não fica explícito. Raramente se ensina a proveniência religiosa do axé, e o termo geralmente é traduzido por algo assim como “energia positiva”. Entre si, os alunos e alunas muitas vezes descrevem o axé como “semelhante à Força em Jornada nas Estrelas”, ou como Chi ou Qi nas artes marciais asiáticas. Alguns alunos de capoeira investem tempo além das aulas ouvindo música brasileira, lendo literatura sobre a cultura brasileira ou visitando o Brasil, e talvez aprendam mais sobre a história religiosa do axé. Entretanto, é possível para os alunos obter treinamento na capoeira diaspórica por vários anos sem ter qualquer consciência da relação existente entre axé e religião. Portanto, NÃO há manifestações de candomblé ou umbanda no País de Gales.

IHU On-Line – O sincretismo religioso característico do Brasil também pode ser encontrado nesse país da Europa? Em que sentido?

Neil Stephens e Sara Delamont – Não. No País de Gales, como se observa nos números do censo apresentados acima, a tendência geral é uma passagem de “cristão” para “sem religião”, portanto uma secularização gradativa. Isso se dá no contexto de uma crescente privatização das crenças religiosas. Caso tenhamos sincretismo como fenômeno amplamente disseminado, ele está nos momentos em que pessoas deixam de ser cristãs e passam a não ter religião.

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