Edição 424 | 24 Junho 2013

Pentecostalismo brasileiro no Peru

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Márcia Junges

Organizada como uma empresa, com estratégias de marketing, a Igreja Pentecostal Deus é Amor “construiu pontes discursivas com elementos do imaginário popular limenho” marcado por crenças ou mitos vinculados a demônios, práticas de cura e bruxaria, adverte Dario Paulo Barrera Rivera

“Majoritariamente católica e com privilégios constitucionais para a Igreja Católica, a sociedade peruana continuava olhando para as ‘outras igrejas’ como estranhas. Especialmente os pentecostalismos são considerados como religião de pobres e pouco instruídos”. A reflexão é do pesquisador Dario Paulo Barrera Rivera na entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line. Em seu ponto de vista, não se pode falar de um “diálogo” entre a sociedade peruana e a Igreja Pentecostal Deus é Amor – IPDA. “A IPDA descobre aos poucos que no Peru não faz sentido falar do Diabo em geral, e menos do panteão afro-brasileiro. Por outro lado está o fator, a meu ver muito importante, da afinidade linguística entre o que chamo de ‘portunhol’ dos pastores brasileiros da IPDA e o espanhol do migrante andino para a cidade de Lima. As semelhanças são surpreendentes, e felizes tanto para a IPDA como para os migrantes, para os ‘serranos’ estigmatizados pela sociedade limenha”.

Dario Paulo Barrera Ribera é graduado em Ciências da Religião pela Universidade Nacional de Heredia, na Costa Rica, onde também cursou mestrado em Filosofia e Letras. É doutor em Ciências da Religião pela Universidade Metodista de São Paulo – UMESP com a tese Pautas para uma sociologia da transmissão religiosa. Da transmissão por tradição à transmissão por emoção nas religiões pentecostais na América Latina e pós-doutor pela mesma instituição, onde atualmente leciona. 

É autor de Tradição, transmissão e emoção religiosa. Sociologia do protestantismo contemporâneo na América Latina (São Paulo: Olho d'àgua, 2010) e um dos organizadores da obra Evangélicos e periferia urbana em São Paulo e Rio de Janeiro. Estudos de sociologia e antropologia urbanas (Curitiba: Editora CRV, 2012). Escreveu o artigo Brazilian Pentecostalism in Peru: Affinities between the Social and Cultural Conditions of Andean Migrants and the Religious Worldview of the Pentecostal Church “God is Love”, publicado na coletânea The Diaspora of Brazilian Religions (Netherlands: Brill, 2013).

Confira a entrevista.

IHU On-Line – Qual é o contexto de transnacionalização do pentecostalismo brasileiro no Peru?

Dario Paulo Barrera Rivera – Tratam-se dos últimos anos da década doe 1970. A ditadura militar está chegando ao fim. No ano de 1978 realizam-se eleições por uma nova Carta Constitucional, e no ano 1979, ano em que a Igreja Pentecostal Deus é Amor – IPDA começa suas atividades no Peru, há eleições nacionais. A direita política volta ao poder depois de ter sido destituída pelos militares dez anos atrás. No mesmo ano de 1979 um partido de esquerda radicaliza-se ideológica e militarmente e parte para a luta armada. Trata-se do Partido Comunista Sendero Luminoso (SL), que se autodenomina inicialmente como marxista-leninista-maoísta. Esse fato é de interesse para a questão em pauta porque a luta armada gerada pelo SL, e depois de 1984 também pelo Movimento Revolucionário Tupac Amaru, de tendência “guevarista”, acelerará o processo migratório de diversas regiões andinas do interior do país em direção das cidades do litoral e especialmente da capital Lima. 

IHU On-Line – Como a sociedade peruana dialoga com essa confissão religiosa?

Dario Paulo Barrera Rivera – Algumas características socioculturais da sociedade peruana ajudam a abordar a questão. Majoritariamente católica e com privilégios constitucionais para a Igreja Católica, a sociedade peruana continuava olhando para as “outras igrejas” como estranhas. Especialmente os pentecostalismos são considerados como religião de pobres e pouco instruídos. As igrejas protestantes históricas nunca passaram de minorias aliadas a setores políticos liberais que poucas oportunidades tiveram no poder político. Em uma perspectiva a sociedade em geral olha para a IPDA como uma igreja brasileira, diferente do pentecostalismo. De outro lado no campo evangélico, protestantes e pentecostais consideram, ainda hoje, a IPDA como uma seita com sérias deturpações de aspectos essenciais do cristianismo. A própria IPDA nunca mostrou interesse em ser reconhecida pela instituição que representa, desde os anos 60, os evangélicos frente ao Estado: o “Concílio Nacional Evangélico del Perú”. Pode-se dizer, então, que não há um “diálogo” entre a sociedade peruana e a IPDA. O diálogo surge e flui a partir de elementos culturais andinos em afinidade eletiva (para utilizar uma ideia de Max Weber ), não intencional, com práticas mágicas/religiosas características das celebrações religiosas da IPDA. 

IHU On-Line – Que peculiaridades o pentecostalismo brasileiro assumiu no país andino? Em que difere daquele tipo de pentecostalismo realizado aqui?

Dario Paulo Barrera Rivera – Uma pesquisa defendida no departamento de antropologia da PUC de Lima em 1994 (Hernández), que considero pioneira nos estudos sobre a IPDA, tem no subtítulo: “demonismo, brujería, milagro y fundamentalismo”. A IPDA construiu pontes discursivas com elementos do imaginário popular limenho fortemente marcado por crenças ou mitos (Mircea Eliade ) vinculados a demônios, a práticas de cura e especialmente à bruxaria. O discurso da IPDA interage, “dialoga” e luta com a simbologia e a mitologia própria do mundo andino. A IPDA descobre aos poucos que no Peru não faz sentido falar do Diabo em geral, e menos do panteão afro-brasileiro. Por outro lado está o fator, a meu ver muito importante, da afinidade linguística entre o que chamo de “portunhol” dos pastores brasileiros da IPDA e o espanhol do migrante andino para a cidade de Lima. As semelhanças são surpreendentes, e felizes tanto para a IPDA como para os migrantes, para os “serranos” estigmatizados pela sociedade limenha. O migrante andino que por um ou outro motivo assiste um culto da IPDA em Lima não deixa de notar essa afinidade que se lhe apresenta como espaço de liberdade para falar e para se expressar. 

Esse encontro foi “natural”, não planejado, ainda, acho eu, nunca imaginado pelos líderes da IPDA. Não há como tentar imitar o sotaque de um migrante, os erros frequentes de sua fonética marcada pela língua materna. Sem sabê-lo os pastores brasileiros conseguiam fazer algo próximo disso. Um dos resultados disse fenômeno não poderia ser outro que o fascínio do migrante andino. Os detalhes de essa afinidade linguística estão no texto que motivou esta entrevista. Cabe destacar que a força da fonética da língua materna permanece ainda na terceira geração, isto é, nos netos dos migrantes.

IHU On-Line – Quais são as afinidades entre as condições sociais e culturais dos migrantes andinos e a visão de mundo religiosa da igreja pentecostal “Deus é amor”?

Dario Paulo Barrera Rivera – Uma visão encantada de aspectos da realidade cotidiana da vida das pessoas e comum nos migrantes. Veja bem que não falo em uma visão encantada da realidade ou do mundo. Não há como abordar aqui, nem é o caso, o conceito de “desencantamento do mundo”, magistralmente desenvolvido por Max Weber. Cabe destacar apenas o que considero seu aspecto básico: a visão mágica do mundo, da realidade, da vida, vai perdendo lugar central estruturador. Essa mudança não foi nem homogênea nem rápida. E poderíamos propor que nas sociedades com visão de mundo mais mítica o desencantamento foi mais vagaroso e provavelmente permanece latente. Não mais para reconstruir uma visão encantada do mundo e sim para reencantar situações críticas, limites, como o estigma social cuja causa carrega-se na própria fala, ou problemas de saúde, etc. Bem, como outros pentecostalismos brasileiros a IPDA elaborou uma verdadeira “demonologia” do mundo. O exorcismo constitui elemento central de seus cultos. A expulsão do demônio, do corpo das pessoas, que causa doença, sofrimento, infortúnio, etc. A mitologia andina é povoada de seres sobrenaturais vinculados a antepassados, à natureza, e ao catolicismo popular. O estudo dos mitos andinos revela a força dessas crenças desde períodos pré-coloniais. Em poucas palavras a ação de forças sobrenaturais, inexplicáveis, agindo em parcelas da realidade do dia a dia, é um elemento em comum entre a IPDA e as culturas andinas (no plural). 

Nem a IPDA nem seus seguidores escapam a uma necessária racionalidade da vida urbana moderna. A IPDA age como uma empresa, com estratégias de marketing especialmente na rádio e, mais recentemente, na internet. Embora administre milagres nos seus cultos seu sucesso no crescimento não resultado de um milagre. Os seguidores da IPDA no Peru, a maior parte deles migrantes andinos moradores das periferias urbanas, de vida dura, difícil, de longas jornadas de trabalho, não vivem uma vida nem encantada (no sentido weberiano) nem encantadora (no sentido do senso comum). Não é uma vida encantadora porque a IPDA não resolve os problemas sociais como a exclusão social, o analfabetismo, o desemprego, entre outros. Esses problemas são as próprias pessoas, como a maior parte da sociedade peruana, que encaram. A vida mundana, “econômica”, a atividade pautada no “cálculo racional”, como diria Weber, não é encarada com magia, e sim com trabalho duro, dedicação e criatividade para dar conta do “arroz e feijão” do dia a dia.

IHU On-Line – Em que aspectos se dá a transmissão por tradição e a transmissão por emoção nas religiões neopentecostais da América Latina?

Dario Paulo Barrera Rivera – Analisei essa questão no meu livro Tradição, transmissão e emoção religiosa. No ano 2011 saiu uma segunda edição (a primeira é de 2001). Antes de entrar na questão gostaria de fazer um esclarecimento. Eu não utilizo o termo “neopentecostalismo”. O termo é fraco conceitualmente. Fiz essa crítica em vários outros textos incluindo o livro mencionado. É como dizer que o pentecostalismo é um “neoprotestantismo”. Não dá conta da complexidade do fenômeno. É um termo que “pegou”, circulou, passou a ser utilizado quase como senso comum. Como conceito, não presta. Mas, os conceitos estão para ser testados e criticados. A realidade é sempre mais complexa. Bem, vamos à pergunta.

A sociologia da religião explica a transmissão das tradições religiosas pela eficácia do trabalho dos especialistas, das lideranças, na conservação das tradições. O trabalho mais importante, porque disso depende a sobrevivência de sua identidade, das instituições religiosas é conservar a tradição fundadora a qualquer custo. Subsídios teóricos muito ricos para pensar essa questão se encontram no pensamento de Maurice Halbwachs , pouquíssimo conhecido, ainda, no Brasil, sobre a dinâmica da memória social. No livro mencionado dediquei o primeiro capítulo à sociologia de Halbwachs. Em poucas palavras, conservar a tradição é vital para a instituição religiosa. Mas, o mundo moderno coloca também a necessidade não menos vital de ajustar a tradição à realidade em mutação. As religiões de “tradição forte” (chamo eu) resolvem esse dilema apresentando a mudança como continuidade da tradição, diz Halbwachs. As religiões de “tradição fraca”, de “memória fraca” como a IPDA, contornaram esse dilema de outra forma: simplesmente não ligam para a conservação da tradição fundadora. Explico isso com um exemplo eloquente, a eucaristia que é fundamental na tradição cristã ocupa lugar secundário no sistema religioso da IPDA. O milagre no culto desses pentecostalismos não se torna nunca memória porque acontece novamente em cada culto. O extraordinário fundador, original é ofuscado pelo milagre presente em todos os cultos. E esses cultos são carregados de emoção. Daí a minha hipótese que não se transmite tradição. Se algo se transmite é emoção, forte, intensa, mas, sempre, substituível por outra que pode acontecer e acontece num culto próximo.

IHU On-Line – Qual é a relação entre os evangélicos no Peru e a política?

Dario Paulo Barrera Rivera – Essa pergunta não remete à IPDA nem às igrejas pentecostais no Peru, e sim a igrejas evangélicas cuja origem e liturgia estão, ou estavam, mais próximos do protestantismo histórico. A relação entre evangélicos e política “esquentou” no início da década de 1990 com o inesperado surgimento do desconhecido Alberto Fujimori  e perto de 20 evangélicos que com ele entraram ao Executivo e o Legislativo. De lá para cá muita coisa mudo nessa relação. Fujimori condenado à pena perpetua por crimes graves, deixou a herança de um “fujimorismo” que ainda é apoiado por setores evangélicos bastante conservadores. Não vou me alongar nesta questão. Pesquisei essa relação entre evangélicos e o “fujimorismo”. Publiquei vários artigos e um, mais recente, sobre as eleições de 2011 sairá ainda neste semestre na revista Estudos de religião.

IHU On-Line – A partir do nexo religião e modernidade, quais são as principais mutações que constata nos protestantismos brasileiros e latino-americanos?

Dario Paulo Barrera Rivera – Penso que as mudanças rápidas da sociedade contemporânea, globalizada, desafiam, exigem mudanças de todas as instituições sociais. Os diversos pentecostalismos, especialmente os mais recentes, se adaptam mais facilmente a essas exigências. Parece uma ironia. Os ditos “conservadores” mudam mais e mais facilmente se desprendem de tradições. Isso tem muito a ver com a “memória religiosa fraca”, mas, não vou voltar a essa questão. As igrejas evangélicas protestantes resistem mais as mudanças, mas, mais tarde ou mais cedo ou são atropeladas por novas liturgias, novos ritmos, novas expressões corporais de todo tipo, ou obrigadas a recriar sua liturgia incorporando elementos mais latino-americanos, a abrir mais espaço para os leigos, etc. Podemos, ainda, dizer para completar o quadro, que a Igreja Católica tenta resistir tenazmente às mudanças, mas, estão aí as mais diversas “novas comunidades católicas” que a instituição não consegue nem controlar, nem liderar. Não se pode deixar de registrar, também, que as religiões ditas “não cristãs” (expressão horrível!) também mudam nessa modernidade contemporânea. As afro-brasileiras se adaptaram ao mundo urbano. O espiritismo kardecista não é mais apenas kardecista. A família Gasppareto o reinventou. Os exemplos poderiam se multiplicar.

IHU On-Line – Gostaria de acrescentar algum aspecto não questionado?

Dario Paulo Barrera Rivera – As perguntas colocadas me levaram a refletir sobre a religião na sua instabilidade, na sua mutação; por deslocamento de um lugar para outro diferente social e culturalmente, ou por ter se desenvolvido em outras condições. Este último aspecto é de singular importância na pesquisa que ocupa minha atenção nos últimos anos. As práticas religiosas nas periferias urbanas de América Latina têm aspectos ainda pouco conhecidos pela pesquisa. Não são muitas as pesquisas sobre religião nas periferias urbanas, nas favelas. Isso demonstra que a associação fácil entre pobreza e religião não tem consistência. Entrei nessa temática há cinco anos e encontramos muita coisa inesperada. No ano passado publiquei o livro Evangélicos e periferia urbana em São Paulo e Rio de Janeiro. Estudos de sociologia e antropologia urbanas (Curitiba: Editora CRV, 2012), com resultados de pesquisa do grupo de pesquisa que coordeno “Religião e Periferia Urbana na América Latina”. O ponto em comum com o tema desta entrevista é a presença do migrante na periferia. Mas, isso é outro assunto. 

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